Na
semana passada chegou a Primavera; na semana que vem são as
eleições, e no futebol já teve início o returno; eia, pois,
ergue-te, cronista, e cumpre o teu dever.
Mas
o cronista sonha; nem as açucenas primaveris nem a cívica peleja
nem o clamor do Maracanã o despertam; será morfina, será maconha,
será amor?
Será
amor? Talvez apenas um vago sonho de amor. Ele sorri; alguém lhe
falou da bem-amada de um amigo, a que se vestia de rendas negras e
tinha ao ombro uma rosa-chá; sorri como quem manda em silêncio um
recado: sede felizes. Para si mesmo ele não pretende isto; nem
pensa.
Ama?
Animula vagula, blandula essa que ama, sonâmbulo. Muito antigamente
já terá sido mulher, e amor. Mas ficou tão longe, se fez tão
longe, que é uma sombra junto a si, pairando... Amiga? Ele se
humilha. A amiga é feito a crase, no tempo em que Ferreira Gullar
era poeta e, no lugar de dizer ema lema eva leve leva leme, dizia: “a
crase não foi feita para humilhar ninguém”, e ouvia o galo
cantar, e sabia aonde; agora ninguém sabe mais. Talvez saibam, não
digam.
Importa
pouco. Os galos cantam em direção do Oriente; dê sua direita ao
amor, fique de frente para o passado, terá o remorso à esquerda e a
sombra da morte às suas costas. A boa sombra; a que virá crescendo
devagar, e então você não sonhará, não desejará sequer beijar o
pé da amada, não se angustiará, não será mais.
Esta
é, na verdade, a grande consolação. Mas entrementes ainda estamos
vivos, todos nós, mesmo ele, o sonâmbulo; e na vida há sol, há
ventos, rios correndo, ondas a estourar nas pedras. Isso não
desperta o sonâmbulo, mas o agita. Está dopado de amor.
Como
lhe devolver a dignidade? A ele, que já teve gestos ásperos; e ia
calado; ia; topava; era duro, viril. Amar não é viril. Isto é,
amar assim, sem esperança de ser amado, amor de menino burro ou
doente. O sentimento que ele tem de estar sobrando na vida, de
ninguém precisar dele: vaga estima, tolerância amiga. Viajou. “Ah,
viajou? Mas escute, você já viu esse filme do Metro?” Ou: “Falar
nisso, e aquele amigo dele que esteve na Rússia, como é que se
chama?” Enfim, qualquer frase serve de necrológio ao desamado
ausente.
Certo,
Manuel Bandeira fala de uma “limpa solidão”, ou alguém disse
isso dele. Não creio. Solidão limpa só com vassoura e aspirador
permanente: a solidão do homem é cheia de detritos, lembranças,
pequenos fantasmas que são como objetos inúteis, quebrados, em um
porão, nomes riscados em um caderno de telefones, teias de antigas
aranhas.
Mas
por que lamentar o sonâmbulo? Ele sorri. Neste momento, ao menos,
está feliz. Seus dedos movem-se, como se acariciassem os cabelos da
amada, a esquiva nuca. Murmura: vem... Isso, entretanto, nos corta o
coração. Podíamos prendê-lo em um banho turco para suar suas
melancolias, mandar-lhe um jato de água fria, atacá-lo para que
reaja, despertá-lo com gargalhadas para que acorde banhado em
ridículo e chore, leve um tapa na cara, tome dexamyl spansule, morda
pimenta-malagueta, viva! Ou apelaremos para a psicanálise, o
hipnotismo, a lavagem de cérebro, a propaganda subliminar durante o
banho de mar?
Na
verdade, temos outras coisas a fazer e desistimos tacitamente de
jamais recuperar o sonâmbulo; vamos disfarçando, disfarçando até
que um dia ele morra e então diremos sem muita hipocrisia: coitado.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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