Caros
amigos:
As
línguas servem para comunicar. Mas elas não apenas “servem”.
Elas transcendem essa dimensão funcional. Às vezes, as línguas
fazem-nos ser. Outras, como no caso do homem que adormecia em
história a sua mulher, elas fazem-nos deixar de ser. Nascemos e
morremos naquilo que falamos, estamos condenados à linguagem mesmo
depois de perdermos o corpo. Mesmo os que nunca nasceram, mesmo esses
existem em nós como desejo de palavra e como saudade de um silêncio.
Vivemos dominados por uma percepção redutora e utilitária que
converte os idiomas num assunto técnico da competência dos
linguistas. Contudo, as línguas que sabemos — e mesmo as que não
sabemos que sabíamos — são múltiplas e nem sempre capturáveis
pela lógica racionalista que domina o nosso consciente. Existe algo
que escapa à norma e aos códigos. Essa dimensão esquiva é aquela
que a mim, enquanto escritor, mais me fascina. O que me move é a
vocação divina da palavra, que não apenas nomeia mas que inventa e
produz encantamento.
Estamos
todos amarrados aos códigos coletivos com que comunicamos na vida
quotidiana. Mas quem escreve quer dizer coisas que estão para além
da vida quotidiana. Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta
comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca
houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco.
Sou
biólogo e viajo muito pela savana do meu país. Nessas regiões
encontro gente que não sabe ler livros. Mas que sabe ler o seu
mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto. Não
sei ler sinais da terra, das árvores e dos bichos. Não sei ler
nuvens, nem o prenúncio das chuvas. Não sei falar com os mortos,
perdi contacto com os antepassados que nos concedem o sentido da
eternidade. Nessas visitas que faço à savana, vou aprendendo
sensibilidades que me ajudam a sair de mim e a afastar-me das minhas
certezas. Nesse território, eu não tenho apenas sonhos. Eu sou
sonhável.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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