sexta-feira, 16 de agosto de 2024

I. Cabo das Tormentas



No ano de 1956 se publica Grande sertão: veredas, romance escrito por Guimarães Rosa. Como um monstro, ele emerge intempestivamente na discreta, ordeira e suficientemente autocentrada vida cultural brasileira, então em plena euforia político-desenvolvimentista. Guimarães Rosa o escreve monstro para que sua qualidade selvagem se destaque com nitidez na paisagem modernizadora do Brasil, tal como configurada pelo Plano de Metas da Presidência da República, que maximiza a indispensável e rápida industrialização de país até então reputado subdesenvolvido. E também para que sua beleza selvagem seja mais bem apreciada se lida e analisada – em ambiente linguístico, social e político, que lhe é refratário, insista-se – como objeto estético insólito, uma pedra-lascada, e não uma pilastra em concreto armado, geometricamente perfeita. Uma pedra lascada difícil de ser compreendida pela mera revisão acrítica do passado pátrio. Intolerável, se lida no seu presente anacrônico. E indigesta, se assimilada espontaneamente pelo leitor compulsivo, ou às pressas pelo medíocre estudioso das letras nacionais.
Anote-se este detalhe revelador. O topônimo “rio de-Janeiro” (naquela época, nome da capital federal do Brasil) é várias vezes citado no romance, mas se refere apenas a afluente do rio São Francisco.
Naquele momento histórico, o monstro rosiano desorganiza e desnorteia o ideário em pauta da nacionalidade porque ele sobrevive confinado em circuito estreito e fechado, autêntico enclave arcaico dentro da jovem nação brasileira. Segundo as palavras do presidente da República, o Brasil se modernizaria 50 anos em apenas 5 anos de governo. Bem desenhadas na região conhecida por Alto São Francisco, as fronteiras do enclave monstruoso não bloqueiam o transpasse dos limites naturais e imprecisos por viajantes estrangeiros ou por visitantes brasileiros. Pelo contrário, atiçam a curiosidade e ambição dos estranhos. Cite-se o caso dos cientistas a catalogar espécimes raros em biologia, dos mineradores em busca de pedras preciosas, das tropas militares em luta contra os coronéis e dos artistas, de que foi exemplo o contista Afonso Arinos e é exemplo notável o romancista João Guimarães Rosa.
São os olhos dos pesquisadores estrangeiros, dos visitantes brasileiros e dos ambiciosos de poder que, em pleno século 20, transformam o grande sertão mineiro – o Alto São Francisco, ou o “rio dos currais”, segundo o historiador Capistrano de Abreu – em multifacetado Gabinete de Curiosidades (Wunderkammern), ou seja, um amplo e comprimido salão em que se organiza e se exibe em bricabraque uma multiplicidade de objetos raros e arcaicos, coletados por exploradores europeus e brasileiros nos três ramos da biologia (animalia, vegetalia e mineralia). Uma miniatura exemplar do Gabinete de Curiosidades – metáfora-viva – é a caixa que se encontra na coleção Brasiliana do Itaú Cultural. Lê-se no catálogo: “esta caixa chegou até nós, tal como foi montada pelo príncipe Maximiliano, com amostras colhidas durante sua expedição ao Brasil, de 1815 a 1817. Contém ovos, presas e caveiras de cobras, ainda embalados num jornal alemão da época. No interior da caixa foi também deixado um desenho original do príncipe naturalista descrevendo parte do seu conteúdo”.
Temo usar o termo vanguarda para caracterizar o modo inédito de o monstro rosiano afrontar o gosto do público brasileiro letrado nos anos 1950, embora da vanguarda o romance traga o susto que ele prega nos seus leitores, valor que enobrece toda e qualquer obra de arte no século 20. Lembre-se do título dado pelos cubofuturistas russos ao seu manifesto: “A bofetada no gosto público” (1912). O romance é, antes de mais, uma bofetada no Homem. Meu temor em usar o termo vanguarda para caracterizá-lo se reforça pelo fato de Guimarães Rosa não ter sido colaborador de suplemento literário em moda nem pertencer a igrejinhas europeizadas (não pela sua falta de competência para tal, frise-se). Tendo exercido a Medicina desde os anos 1920 e sendo diplomata de carreira a partir de 1934, o romancista é considerado como o oposto dos que se dizem profissionais das letras e das artes (que, na realidade, não o são). Refiro-me aos mais gloriosos e menos gloriosos escritores diletantes, vaidosos e ditatoriais, que, na capital federal e nos Estados mais importantes da União, se reúnem em torno de manifesto literário, de suplemento e de revista, e se articulam entre eles na base de produção estética coletiva, porque geracional.
Quando publica Grande sertão: veredas, Rosa é um romancista solitário, relativamente desconhecido tanto na imprensa tradicional quanto na emergente imprensa nanica. É por isso que, tão logo lançado o livro, tem de se insinuar estrategicamente pelas brechas da vida literária nacional, fantasiando-se de solitário cavaleiro andante em defesa da insólita e exclusiva causa estética, política e social, seu monstro.
Quando os primeiros leitores anônimos de Grande sertão: veredas e os escritores brasileiros bem-estabelecidos passam a verbalizar em conversa e nos jornais provocações grosseiras contra o romancista e impropérios contra a obra, Rosa não pode compartilhar o infortúnio com um grupo fechado de companheiros e militantes que o defenderia em praça pública, como é o caso anterior dos poetas da Geração de 45, contestados pelos ideólogos de plantão por serem por demais formalistas; e é também o caso dos vanguardistas da arte Concreta (São Paulo) e da Neoconcreta (Rio de Janeiro), escorraçados pelos leitores tradicionais de poesia, infectados desde sempre pelas bactérias sentimentais do sonetococcus brasiliensis. As hoje consideradas vanguardas históricas, surgidas no início do século 20 e prolongadas como experimentalismo artístico nos anos 1950, sempre trabalharam em ordem unida.
A artilharia dos vanguardistas e dos experimentalistas sempre se manteve segura e firme não só nos ataques contra os diluidores (“diluters”, apud Ezra Pound) de nobre causa estética como na defesa dos legítimos e autênticos inventores (“inventors”, idem). Em época em que o artista enquadra a si e aos demais em altíssimo e inquestionável patamar e o julgamento da obra pelo crítico tem de ser consequentemente fulminante, Guimarães Rosa e seu romance só são o que os outros os deixam ser. Os dois sobrevivem desvalidos, sem apoio de grupo geracional, e à espera de estratégia de lançamento eficiente, a ser assumida às pressas pelo autor, figura relativamente desconhecida na cena artística.
Na América Latina, durante os anos 1950, implanta-se como única a radicalização estética que, desde o Manifesto futurista (1909), vinha sendo legitimada pelos intelectuais vanguardistas que declaram como só sendo autênticas e válidas as categorias críticas elitistas e autoritárias. Naqueles anos e na situação brasileira, destacam-se os escritos críticos de Ezra Pound, entre eles o de mais fácil compreensão do leitor jovem, ABC of Reading (livro traduzido por Augusto de Campos, do grupo concreto paulista, e por José Paulo Paes, e publicado em 1970). As categorias estéticas de Pound, nomeadas e descritas no capítulo IV desse manual prático de leitura, serviram indiscutivelmente para caracterizar o percurso escalonado e altamente competitivo do modo como o noviço nas belles lettres deve movimentar-se a partir do momento em que busca ter acesso ao gradus ad parnassum. Em ordem decrescente, são seis as categorias poundianas que hierarquizam a atividade criativa: (1) “inventores”, (2) “mestres”, (3) “diluidores”, (4) “bons escritores sem qualidades salientes”, (5) “beletristas” (writers of belles lettres) e (6) “lançadores de modas”. No julgamento da produção literária e artística, a autoproclamada empáfia do criador vanguardista ou experimental, bem como a afiadíssima e bárbara navalha do crítico – já então com formação universitária – são talheres de uso cotidiano à mesa da arte.
Guimarães Rosa – assim como os poetas concretos e neoconcretos que lhe são contemporâneos – se enquadra na mais alta categoria poundiana. É um inventor. Porém, ao contrário dos poetas e artistas paulistas e cariocas, não se apresenta ao público por manifesto literário, publicado previamente em suplemento ou em revista. Nada de teórico ou de programático o salvaguarda, ou seja, nenhum a priori estético respalda seus sucessivos e inúmeros escritos em prosa. Rosa não tem companheiros de geração ou de escola a defendê-lo; será, no entanto, estudado e avaliado pela melhor e também pela boa crítica literária brasileira. Algo e muito pouco de sua própria arte poética está disseminado nas entrevistas que passa a conceder aos jornais, nas cartas que escreve aos tradutores e, principalmente, em quatro “prefácios” – assim os denomina o autor – intercalados na coleção de contos TutaméiaTerceiras estórias (1967)(1).
Rosa é um inventor. “Inventores” – recorramos novamente às palavras de Ezra Pound –, “homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”. Rosa está à frente do seu tempo nas literaturas da América Latina, embora não seja correto colocá-lo como autor de vanguarda ou experimental, até porque a primeira revista de cultura que acolhe a obra-prima de modo rico, atraente e circunstanciado, Diálogo (1957), não é tipicamente literária, é antes filosófica, heideggeriana, e não é publicada no Rio de Janeiro, mas por um grupo alternativo de intelectuais paulistas, liderado pelo filósofo conservador Vicente Ferreira da Silva e a poeta Dora Ferreira da Silva, devota leitora e tradutora da poesia de Rainer Maria Rilke, autor da espantosa “Oitava Elegia de Duíno” (2), inspiradora do filósofo heideggeriano Giorgio Agamben.
Às vésperas da publicação do número especial da revista Diálogo, dedicado a ele e sua obra-prima, repito, é tamanha a alegria de Guimarães Rosa que o homem se comporta como criança mimada que na verdade quer palmada. Leia-se este trecho da carta que escreve ao romancista sergipano Paulo Dantas, radicado em São Paulo: “Já estou entusiasmado com o número do Diálogo. (Avise-me, quando for para sair, quero adquirir logo uns 30 exemplares.) Depois, terei de fazer um mês de penitência, para purgar venenos e ranço da vaidade – doença danosa – que vocês estão injetando em mim”(3). Quando o número 8 da revista lhe chega finalmente às mãos, volta a escrever ao amigo sergipano:

Fiquei deslumbrado, tudo formidável. Vocês me atordoaram, depois direi por inteiro as impressões, sensações, emoções, comoções. Que pilha de ouro de generosidade! Ó gente doida! O mundo, que de tão grande não se entende... Enriqueci, de súbito. Foi uma rebentação cósmica, nem sei dizer as palavras de maior caber.

Palavras semelhantes e exageradas de Rosa serão também transmitidas por Paulo Dantas a Carmen Dolores Barbosa, responsável por importante Salão literário em São Paulo, que vem a premiar o romance – execrado por muitos dos confrades cariocas – como o melhor do ano em 1956. Ei-las: “Gratíssimo, meu caro; e grato a dona Carmen Dolores, principalmente. A ela vão todos os meus sentimentos claros, dos que sempre devemos à Beleza, à Bondade e à Inteligência”.
Pode-se crer também que a euforia sentida pelo romancista ao saber que Grande sertão: veredas está finalmente arrebatando bons e sofisticados leitores (os happy few, de que falam Stendhal e Machado de Assis) seja apenas um prolongamento menos intenso do sentimento de euforia anterior, maior e obsessivo, que tomou conta do diplomata nos meses que antecederam a entrega dos originais do romance ao editor José Olympio. Retiro de carta que escreve ao compadre Antônio Azeredo da Silveira, então embaixador do Brasil em Madri e posteriormente chanceler, o rico e comovente depoimento que transcrevo abaixo. Datada do dia 9 de fevereiro de 1956, a carta foi posta no correio do Rio de Janeiro, onde Rosa responde pela chefia da Divisão de Orçamento (Itamaraty), e nela está dito:

Conto a Você que, na última semana, antes de entregar ao José Olímpio o Grande sertão, passei três dias e duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver cama, sem tomar pervitin(4) nem nenhuma outra droga: foi uma brusca sensação de renascimento, de completa e incômoda liberação, de rejuvenescimento: eu ia voar, como uma folha seca. Imagine, eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente... Daí, veio-me uma forte gripe, naturalmente; e, Você sabe bem, a gripe é uma das mães da humildade.(5)

Publicado o romance, Guimarães Rosa teve de aprender a enfrentar corajosamente a primeira e pouco auspiciosa recepção que lhe é dada. Despe-se da farda diplomática, embora guarde da profissão todos os ensinamentos retóricos que levam à boa negociação entre as partes e a arrematam, e constrói pouco a pouco – pelo recurso à vaidade pessoal e à indefectível gravatinha-borboleta a tremular no pescoço – a persona de escritor de gênio. Nos anos subsequentes à publicação do romance, é essa persona que recebe os admiradores brasileiros e estrangeiros que vão visitá-lo nas majestosas dependências do Ministério das Relações Estrangeiras, antigo e aristocrático palacete situado no centro do Rio de Janeiro. A petite histoire local narra em profusão historietas bem humoradas, saborosas e picantes.
Inicialmente, Grande sertão: veredas abre sorrisos e caretas nos leitores e recebe na cara o silêncio constrangedor dos romancistas e poetas então em destaque na capital federal. Os escritores membros do coro dos descontentes acabam por serem convidados a concederem entrevista ao boletim bibliográfico Leitura, editado no Rio de Janeiro e de nítida inclinação para a esquerda. Os depoimentos são reunidos em torno de título em si agressivo, “Escritores que não conseguem ler Grande sertão: veredas”. Exemplo estranho e alarmante de escritor desgostoso com o romance é o do jovem poeta Ferreira Gullar, autor do originalíssimo A luta corporal (1954) e corajoso crítico de arte da vanguarda. Declara: “Li 70 páginas do Grande sertão: veredas. Não pude ir adiante. A essa altura, o livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os linguistas. Parei, mas sempre fui um péssimo leitor de ficção”. Embora menos alarmante, não será diferente a primeira recepção ao romance pelo crítico uruguaio/brasileiro Emir Rodríguez Monegal. Em depoimento para a parisiense Mundo nuevo (fevereiro de 1968), afirma: “Cada palavra, quase cada sílaba do romance havia sido submetida a um processo criador, que obrigava o leitor a progredir, se progresso havia, a passos de tartaruga. Custei um pouco a vencer a humilhação de crer que havia perdido uma das línguas de minha infância”. Dentre os muitos descontentes, o mais contundente é o romancista baiano Adonias Filho, líder de nova corrente literária regionalista e futuro membro da Academia Brasileira de Letras. Escreve e publica o artigo intitulado “Guimarães Rosa: um equívoco literário”.
1956. Onze anos antes, em 1945, os desesperados e raivosos alicerces ideológicos que vinham sustentando e inspirando os artistas brasileiros desde os anos 1930 tinham sido implodidos com a queda da ditadura Vargas no Brasil e a derrota das tropas nazifascistas no mundo ocidental. Se visto de outra perspectiva, a dos anos 1930, 1945 representa um grande corte anterior a Grande sertão: veredas nas artes brasileiras, já que aquele ano dá por terminada uma época extraordinária em que a produção artística no Brasil se notabiliza pelo engajamento político. Entre 1930 e 1945, destacam-se os livros em prosa participante, como o romance neonaturalista nordestino de Graciliano Ramos (Vidas secas, 1938) e de Jorge Amado (Terras do sem fim, 1943), ou as coleções de poemas empenhados, como os versos de Carlos Drummond de Andrade (Sentimento do mundo, 1942, e A rosa do povo, 1945) e, ainda, as telas impregnadas de denúncia social, como as de Cândido Portinari (a série Os retirantes, 1944).
Se esses e outros trabalhos de arte comprometidos com o discurso político não colocaram o Brasil no mapa-múndi da arte engajada internacional, pelo menos não nos deixavam fazer feio quando comparados aos que se tornavam os clássicos universais dos anos de guerra mundial, como é o sempre citado painel Guernica, de Pablo Picasso. No contexto das literaturas latino-americanas, a brasileira não chegara a alcançar os píncaros de Gabriela Mistral, de Miguel Ángel Asturias ou de Pablo Neruda (não por casualidade os três são recipientes do Prêmio Nobel de Literatura), mas se fazia conhecer e ser reconhecida no mundo europeu pelo recato e a modéstia que a língua portuguesa – nos versos de Olavo Bilac, “última flor do Lácio inculta e bela / és a um tempo esplendor e sepultura” – lhe confere desde o berço lusitano.
Se Grande sertão: veredas pouco ou quase nada tem a ver com os modestos, sofridos e lacrimosos vinte e seis anos literários e artísticos que o precedem, tampouco engrossa a enxurrada de louvações à mais elogiada – no Brasil e no estrangeiro – obra de planejamento urbano que tem sua idade. Refiro-me à utópica cidade de Brasília(6) que – em desenho de leves, nítidas e belas linhas retas e curvas, de responsabilidade dos arquitetos urbanistas Oscar Niemeyer e Lúcio Costa – salta solitária em concreto branco, vidro e geometria feminina no distante, despovoado e árido planalto goiano. Apesar de obrigar o cidadão brasileiro citadino a pisar também e de modo inesperado o áspero interior do país, Grande sertão: veredas é – ao contrário da nova capital federal – ribeirinho e verde, barrento e encardido, anárquico e selvagem. É acrimoniosa e destemperadamente varonil. Pela soma dessas características, o romance nada tem a ver com a artificialidade do lago Paranoá, cujas águas banham as belas obras arquitetônicas femininas sem jamais tê-las fertilizado. À semelhança de Brasília, acrescente-se, Grande sertão: veredas tem algo e muito de religioso, se não se tomar como única referência a forma cristã da cruz que inspira e conforma o plano piloto da nova capital federal do Brasil(7).
Um mote de Grande sertão: veredas é valido tanto para Brasília quanto para o romance: “Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia” (grifo meu). Apesar de moer no áspero e não fantasiar, Guimarães Rosa nada bebe do econômico construtivismo lógico-matemático e abstrato que se torna marca registrada da primeira e grandiosa Bienal de São Paulo (1951) no momento em que celebra como vencedoras a escultura Unidade tripartida, do suíço Max Bill, e a tela Formas, do brasileiro Ivan Serpa. O romance de Rosa manuseia dicionários reais e estapafúrdios, pessoais e imaginários e, em sintaxe travessa e com pontuação anárquica, esparrama perdulariamente palavras, tocos de palavra e interjeições onomatopaicas pela página em branco. Não preocupa o escritor se os vocábulos se duplicam e, em n vezes, se multiplicam em sinônimos vernaculares ou artificiais, como é o caso, por exemplo, da infindável série que referenda a presença do Diabo nos sertões do Alto São Francisco. A enumeração de sinônimos numa única frase não abastarda o estilo, transforma antes a prosa ficcional de Rosa em forma original e peculiar de ladainha às avessas ou de exorcismo:

E as ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Princi-palmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe!

São 52, se não me engano, os nomes atribuídos à figura do Diabo em Grande sertão: veredas. Equivoca-se quem entra no romance esperando que menos é mais.
O romance de Rosa pouco teria a ver com os poemas precisos e exatos, mãos-de-vaca, de inspiração mallarmaica e valeryana, do contemporâneo e também diplomata João Cabral de Melo Neto, que vão desaguar anos mais tarde na teorização verbivocovisual expressa pelo “Plano piloto da poesia concreta” (1958), de responsabilidade dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari e publicado na revista Noigandres. O monstro rosiano guarda semelhanças evidentes apenas com certo interesse lúdico dos poetas experimentais pelo trabalho na linguagem, feito no molde da criação de neologismos nas línguas anglo-saxônicas, de que são exemplo as invenções em prosa de James Joyce e em poesia de e. e. cummings. Molde este também avançado por Ezra Pound como recurso tomado ao ideograma chinês tal como exposto por Ernest Fennolosa em The Chinese Written Character as a Medium for Poetry (1918). Aliás, Grande sertão: veredas, publicado em 1956, não é citado nas obras elencadas no paideuma concreto divulgado pelo “Plano piloto”, embora o ano da assinatura desse manifesto já seja o de 1958. As afinidades entre os concretos e Rosa são manifestadas tardiamente.
O monstro de Guimarães Rosa nada tem a ver com o singelo, doce e nostálgico balanço da bossa-nova que, tão cool quanto o jazz moderno que o adjetivo inglês tão bem qualifica, assalta as estações de rádio e o mercado fonográfico das capitais em busca de um mercado internacional adocicado pelo bem-estar alcançado no pós-guerra pelas sociedades do Primeiro Mundo. Para as imaginações ilustradas e bem pensantes, Grande sertão: veredas é ácido, corrosivo e principalmente intempestivo. Ao se distanciar “do barquinho a deslizar no macio azul do mar” (Roberto Menescal), dispensa todo e qualquer antídoto contra os absurdos retóricos de que se faz campeão absoluto na avara e impecável língua gramatical de Luís de Camões, de Machado de Assis e de Graciliano Ramos.
Também seria um despropósito comparar o monstro com dois outros bons romances publicados no ano de 1956, O encontro marcado, bildungsroman de Fernando Sabino, e Vila dos Confins, prosa regionalista do também mineiro Mário Palmério. Ambos abrem uma trilha que se tornará populosa em nação que se industrializa ao ritmo do capitalismo avançado – a das narrativas ficcionais escritas segundo o padrão ditado pelo consumismo aliado aos temas da atualidade, padrão exigido pelo mercado editorial e corroborado pela publicação nos suplementos literários da todo-poderosa lista dos best-sellers da semana.
Em 1956, na qualidade de monstro propriamente literário, Grande sertão: veredas interrompe o caudal de leituras do historiador ou do especialista em prosa e poesia brasileira, atravancando o fluxo histórico. Interrompe o percurso linear e cronológico das obras literárias, que descendem da incontornável Carta de Pero Vaz de Caminha, como um rochedo que despenca do alto da montanha em virtude da erosão causada no terreno pelas chuvas torrenciais, e arrasa de vez com a bitola estreita dos trilhos por onde vinha sacolejando tranquilamente o trenzinho caipira da literatura brasileira, modernizado macunainicamente nos anos 1920 pelos participantes da Semana de Arte Moderna. O rochedo interrompe a viagem do trenzinho. Fá-lo descarrilar e o joga para fora dos trilhos, ribanceira abaixo. E passa a exigir – sem muito sucesso, o que é natural já que se trata de algo monstruoso que despenca do alto da montanha – que as locomotivas que daquele momento em diante passem por ali tenham de se adequar à bitola larga, larguíssima da modernidade literária inaugurada pelo inédito Grande sertão: veredas. E tenham de bufar vapor pelas chaminés que nem touro bravio. Que se cuidem o historiador e o crítico da literatura!
Pensem que, de repente, o embalo lírico proposto pela célebre composição musical de Villa Lobos, O trenzinho do caipira, que integra a 2ª Bachiana brasileira (1939) sob a forma de tocata, fosse suplantada pelos ruídos sinfônicos cacofônicos, onomatopaicos e estridentes que escoam da execução de Pacific 231 (1923), do compositor Arthur Honneger.
No panorama da literatura brasileira, Grande sertão: veredas – e, de maneira geral, a prosa mais experimental de Guimarães Rosa – sobrevive como aberração inquietante, perturbadora e solitária, tendo possivelmente como referência única O guesa errante (1868), poema épico romântico escrito por Sousândrade e trazido à baila pela vanguarda concreta à época em que Guimarães Rosa começa a ganhar definitivamente nome entre críticos, professores e leitores(8).
A monstruosidade do romance de Guimarães Rosa guarda metaforicamente os traços fisionômicos do gigante Adamastor, figura épica e mítica que emerge do oceano Atlântico e se insurge contra a audácia da navegação portuguesa pela costa africana. Ao se levantar das águas e ganhar corpo, Adamastor é guardião. Não libera o caminho para que os navegantes possam ir além de Taprobana, como imagina Luis de Camões no poema Os lusíadas (canto V). Neste, lemos:

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

Grande sertão: veredas fala com tom de voz horrendo e grosso, que sai do enclave selvagem. Interrompe a circulação cronológica e progressista da narrativa ficcional brasileira e, caso algum escritor tente transpor a muralha imposta pelo monstro, e alguns poucos o quiseram no mundo lusófono, ele passa a monitorar o próximo e inevitável naufrágio do navegador atrevido ou a indicar como ideal um além, muito além, da navegação linguageira humana. Por ser mais utópico que passível de existir concretamente, o além-do-além em prosa ficcional deixa o romancista pós-colonial em língua portuguesa (que é posterior a Guimarães Rosa no calendário)(9) como que obrigado a engatar uma marcha-a-ré na máquina ficcional e dar para trás, refazendo – em modo cabisbaixo e humilhado – o percurso de volta e salientando tudo o que na verdade Grande sertão: veredas não é, tudo o que ele não deixa que o prolongue por ser, na sua monstruosidade, o final da linha. Com a palavra Carlos Drummond de Andrade:

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Notas:
(1) São eles: “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico”, “Nós, os tremulentos” e “Sobre a escova e a dúvida”.
(2) Cito os versos iniciais da elegia na tradução (1951) de Dora Ferreira da Silva: “Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto. / Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha / se oculta em torno do livre caminho. / O que está além, pressentimos apenas / na expressão do animal; pois desde a infância / desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, / ah, esse espaço profundo que há na face do animal. / Isento de morte. Nós só vemos / morte” (grifo meu).
(3) Paulo Dantas, Sagarana emotiva (Cartas de J. Guimarães Rosa). São Paulo: Duas Cidades, 1975.
(4) Estimulante vendido nas farmácias brasileiras, sem receita.
(5) 24 Cartas de João Guimarães Rosa a Antônio Azeredo da Silveira (edição da família Azeredo da Silveira).
(6) Sua construção se inicia em novembro de 1956 e a cidade é inaugurada no dia 21 de abril de 1960.
(7) Escute-se esta fala de Riobaldo: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende.”
(8) Augusto & Haroldo de Campos. Re-visão de Sousândrade. São Paulo: Invenção, 1964. Sobre o destino do seu livro, escreve Sousândrade, premonitoriamente: “Ouvi dizer já por duas vezes que o Guesa errante será lido cinquenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinquenta anos antes”.
(9) Na literatura africana de língua portuguesa são citados os romancistas Luandino Vieira (Angola) e Mia Couto (Moçambique).

Silviano Santiago, em Genealogia da Ferocidade: Ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa

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