Às
vezes me perguntam como aprendi o português. Respondo geralmente que
não o aprendi e provavelmente nunca hei de aprendê-lo. Mas a
pergunta me evoca o meu primeiro encontro com o idioma em que, por
circunstâncias de todo imprevisíveis, passei a exprimir-me com
naturalidade e até a pensar.
Naquela
época eu ensinava latim e italiano num ginásio de Budapeste. Uma
vez por semana frequentava um café onde se reuniam meus amigos
linguistas. Um deles estudava o sogdiano, outro preparava um ensaio
sobre os pronomes voguis, um terceiro acabara de publicar dois
grossos volumes de contos tcheremissos. Só interessados em idiomas
exóticos, tinham verdadeira paixão pelas línguas difíceis e
desprezavam minhas modestas excursões no domínio neolatino.
— Mas,
afinal, você sabe espanhol? – perguntei certo dia a um deles,
perito em linguística fino-úgrica.
— Ora
essa! – respondeu-me.
— Mas
sabe mesmo? – insisti.
— Ainda
não experimentei – replicou altivo, como se se tratasse de andar a
cavalo ou de bicicleta.
Calei-me,
humilhado. Realmente o espanhol não se comparava com nenhum daqueles
dialetos fabulosos. De mais a mais, era falado por um número
excessivo de pessoas, e os meus amigos só apreciavam idiomas
extintos ou, quando muito, falados por meia dúzia de pescadores
analfabetos.
Assim,
nem tive coragem de relatar-lhes que principiara a aprender o
português – tanto mais que essa língua me parecia, de início,
fácil demais: um desses começos de namoro em que tudo corre bem e
nada faz prever as atrapalhações subsequentes.
Lembro-me
ainda do dia em que o primeiro livro português me veio ter às mãos.
Foi a antologiazinha As cem melhores poesias líricas da Língua
Portuguesa, de Carolina Michaëlis. Possuíra outras antologias
da mesma coleção: a francesa, a italiana, a espanhola. Inferi que
devia haver uma portuguesa também, e mandei-a vir da Livraria
Perche, de Paris.
O
livrinho chegou-me às nove da manhã num dia das férias de Natal.
Às dez, já eu tinha descoberto o único dicionário português
existente nas livrarias de Budapeste, o de Luísa Ey, com tradução
alemã. Atirei-me então às poesias com sôfrega curiosidade. Às
três da tarde, o soneto “Sonho oriental”, de Antero de Quental,
estava traduzido em versos húngaros; às cinco, aceito por uma
revista, que o publicaria pouco depois.
De
todos os escritores húngaros que eu conhecia, Desidério Kosztolányi
era o único que se aventurara a abordar o estudo do português.
Certa vez falou-me nesta língua, que lhe parecia alegre e doce como
um idioma de passarinhos. A mim, sob seu aspecto escrito, dava-me
antes a impressão de um latim falado por crianças ou velhos, de
qualquer maneira gente que não tivesse dentes. Se os tivesse, como
haveria perdido tantas consoantes? E olhava espantado para palavras
como lua, dor, pessoa, veia, procurando apanhar o que nelas restava
das palavras latinas, cheias e sonoras.
Era
aliás justamente a pronúncia que me causava algum medo.
As
nasais, tão numerosas, arrepiavam-me, tanto mais que a gramática,
arranjada não sei onde, as cercava do maior mistério. É
impossível, diziam Gaspey, Otto e Sauer, explicar a pronúncia de
tais sons; a única maneira de aprendê-la era pedir a um natural do
país que os pronunciasse grande número de vezes. Mas como ia eu
arranjar em Budapeste um natural de Portugal? E entrei a meditar
sobre enigmas fonéticos, como, p. ex., os diversos valores do x, que
em húngaro nem existe e mesmo nas outras línguas não passa de uma
letrinha à toa, ao passo que em português se encarnava de quatro
maneiras diferentes.
Lembro-me
ainda de algumas reações minhas ante os fenômenos do novo idioma.
Foi com certa impaciência que acolhi ilogismos que ela me oferecia,
totalmente esquecido dos que engolia sem protestos, a cada instante,
na minha própria língua. Não me conformava, em particular, com o
gênero feminino da palavra criança. Nem queria admitir que
nomes tão franceses como chapéu ou paletó pudessem
ser incorporados ao português sem mais nem menos. Mas reconhecia com
alvoroço palavras cuidadosamente guardadas da velha estirpe latina e
que outros idiomas românticos tinham malbaratado: lar e ônus
vinham familiares, embelezados pela longa tradição. Vozes em que
reencontrava vestígios da formação latina, como bebedouro e
nascedouro, e mesmo horrendo e nefando,
sorriam-me. Os vocábulos de origem árabe se apresentavam solenes,
muito mais presos à origem do que realmente são; parecia-me até
impossível que um alfaiate cortasse paletós e calças pelo
modelo inglês, em vez de só fazer albornozes.
Não
somente o vocabulário: fenômenos sintáticos também me provocaram
reações sentimentais. A descoberta do infinitivo pessoal foi uma
surpresa e abalou-me bastante o orgulho patriótico, pois julgava-o
riqueza exclusiva do húngaro. Afeiçoei-me logo às formas
mesoclíticas dos verbos: falar-te-ei, lembrar-nos-íamos
apresentavam-me como que em corte anatômico palavras já
irreparavelmente fundidas no francês ou no italiano, e faziam supor
dotes de análise e síntese em todos os que as empregavam. Admirei
também a sábia economia que se manifestava em expressões compostas
de dois advérbios, como demorada e pacientemente, só
imagináveis numa língua que teimasse em não se afastar de suas
raízes etimológicas.
Aos
poucos, sem ainda saber ler em voz alta, ia adivinhando no português
uma melodia nova e diferente, e continuava familiarizando-me com o
volumezinho das 100 poesias. Traduzi “Os cinco sentidos”, de
Almeida Garrett, a romança da “Nau Catarineta”, e um punhado de
quadras, das quais a começada por “O anel que tu me deste” ainda
hoje me parece um milagre de simplicidade patética.
O
problema consistia em arranjar outros livros. De Estrasburgo consegui
um exemplar de Os Lusíadas, na Biblioteca Românica. Graças
a uma boa tradução húngara e as reminiscências de Virgílio e de
Tasso, pude tê-los sem grande dificuldade. Mas ainda não tinha
conseguido um texto contemporâneo, um documento de português vivo.
Foi
quando um dos livreiros, alertado por mim, desensebou um volume roto
e sujo, de um autor português moderno – Samuel Ribeiro, se bem me
lembro. Aí a coisa ficou ruim, pois logo na primeira página
apareceram vinte palavras não registradas por Luísa Ey. Era uma
história rústica, provavelmente meio regional, e o autor parecia
divertir-se em chamar os bichos e as plantas pelos seus lindos mas
incompreensíveis nomes alentejanos ou minhotos. Alguém, ao saber do
meu embaraço, me apresentou a um funcionário do Consulado do Brasil
a quem mostrei a página rebelde. Examinou-a com atenção e
declarou-me que ou aquilo não era português, ou então no Brasil se
falava outra língua. Em compensação, pronunciou para mim várias
nasais, que procurei imitar sem muito êxito.
Deixei
de lado o livro de Samuel Ribeiro e pus-me a ler poetas brasileiros.
Meu
primeiro livro brasileiro foi uma Antologia de poetas paulistas,
arranjada por intermédio de uma livraria húngara de São Paulo,
cujo endereço obtivera por acaso. Lembro-me ainda desse volumezinho,
de apresentação péssima, muito mal-organizado (e que depois nunca
mais consegui encontrar aqui no Brasil). Continha os retratos
horrorosos de trinta poetas de São Paulo e uma poesia de cada um
deles, geralmente um soneto. As dificuldades começavam pelo título,
pois o Wörterbuch de Luísa Ey, naturalmente, não continha a
palavra paulista.
Se
não cheguei a entender a maioria dos poemas, adivinhei o sentido de
alguns e acabei traduzindo um poemeto de Correia Júnior, que
publiquei numa revista. Ao reler a minha versão, alguns anos mais
tarde, já aqui no Brasil, descobri humilhado um enorme contrassenso.
O poeta falava da rede na qual descansava a aguardar os sonhos; pois
eu, que nunca tinha visto semelhante objeto, julguei tratar-se de uma
imagem poética e pus no texto húngaro “a rede dos sonhos tecida
pela imaginação”.
Em
seguida “adivinhei” e verti mais alguns poemas do livro. Salvo
uma única exceção, eram todos, como mais tarde verifiquei com
espanto, de autores que no Rio de Janeiro ninguém conhecia. Um acaso
fez cair uma dessas traduções nas mãos do então cônsul do Brasil
em Budapeste, que me chamou, me deu um volume de Bilac, outro de
Vicente de Carvalho e três números antigos do Correio da Manhã.
A
este jornal mandei, com breve carta, um recorte da “primeira poesia
brasileira vertida para o húngaro”. Nunca recebi resposta a essa
carta, mas um dia, com grande surpresa minha, chegou-me um envelope
volumoso coberto de selos exóticos e cheio dos poemas, ainda
inéditos, de um jovem poeta carioca, o qual, depois de ter lido no
Correio um tópico a respeito de minha esquisita mania, me
julgara a pessoa mais idônea para emitir a primeira opinião acerca
de suas composições clandestinas.
Essa
mensagem foi seguida de outras, escritas por outros leitores do
jornal, todos poetas. Daí a pouco recebia regularmente farta
correspondência do Brasil: cartas com versos datilografados ou
recortados de jornais, revistas, livros. Estes me chegavam sem nenhum
sistema, mandados por algumas repartições, por amigos e
desconhecidos. Havia entre eles uns valiosos, outros regulares e
alguns fracos. Mas faltava-me o fio condutor para me orientar naquela
multidão de nomes novos e estabelecer uma escala certa de valores.
De
certos poetas, tradicionalistas na expressão e na forma, não sabia
se eram de 1850 ou de hoje. Ao mesmo tempo, tomava por
originalíssimos alguns poetas de 15 anos (de quem recebia os
inéditos), por lhes desconhecer os modelos. Assim, quando afinal
obtive um volume de Jorge de Lima, a obra deste grande poeta não me
deu mais a surpresa feliz de uma descoberta, pois já conhecera
vários de seus discípulos.
Ao
lado dessas incertezas, havia as da língua, pois ainda continuava
com o dicionariozinho da sra. Ey, e um português-francês, não
muito melhor, de Simões da Fonseca, ambos feitos na Europa, e que
por isso ignoravam totalmente os brasileirismos. Aí tinha de
recorrer de novo ao sistema arriscado das conjecturas.
Nem
todas eram fáceis. No “Acalanto do seringueiro”, de Mário de
Andrade, o uirapuru só podia ser pássaro. Mas quanto tempo
não levei para atinar que o cabra resistente do mesmo
poema não designava bicho, mas homem.
Noutros
casos, a falta de noção equivalente no meio centro-europeu tornava
a tradução quase impossível. Tive de dar tratos à bola para
fabricar um termo composto de três palavras (kaucsukfacsapoló)
para verter o próprio nome do seringueiro. Não me atrevi a
empregá-lo senão depois de experimentá-lo em vários poetas amigos
e verificar-lhes a reação favorável.
O
que, porém, me atrapalhava sobretudo eram as palavras mais
corriqueiras, mais simples. Os sábios glotologistas do meu café,
embora com relutância, tiveram de concordar comigo quando lhes
mostrei que uma das palavras brasileiras mais difíceis de traduzir e
encaixar num verso húngaro era dezembro. O nosso december,
etimologicamente idêntico, mas que evocava noções de gelo, neve e
miséria, não poderia sugerir a nenhum leitor húngaro a imagem de
um Natal carioca, tórrido e abafado. Ou então, que significava a
palavra Nordeste? Foi necessária uma longa carta de Ribeiro
Couto (então cônsul na Holanda) para dar-me uma ideia aproximativa
do complexo sentido geográfico, antropológico, sociológico e,
sobretudo, poético, dessa denominação. Com sua compreensiva
inteligência, o poeta de Província esboçou um sucinto
retrato espiritual da região nordestina, da qual, à falta de outra
documentação, me desenhou um mapa esquemático. Tive menos sorte
com um jovem poeta esquerdista em cujos poemas encontrara inúmeras
alusões aos morros cariocas. Pensando que eu não entendesse a
palavra, respondeu à minha consulta com uma lista de sinônimos:
colina, outeiro etc. Só depois de nova troca de cartas
cheguei a entender que, contrariamente ao que se dava na minha
cidade, onde os morros, cobertos de luxuosos palacetes, só abrigavam
gente rica, no Rio eles eram sinônimos de favelas, isto é,
“conjuntos de habitações populares toscamente construídas e
desprovidas de recursos higiênicos”.
A
publicação em jornais e revistas de algumas dessas traduções de
poesias brasileiras motivou episódios curiosos. Numa das minhas
aulas de latim, por exemplo, um aluno me pediu, no meio da
expectativa zombeteira de seus colegas, que lhe explicasse um
estranho poema lido por ele na véspera e pôs-se a recitar “No
meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Embora não
gostasse de interromper as minhas aulas, dessa vez não resisti à
tentação e citei outros versos do poeta. Falei da iconoclastia
necessária da poesia moderna, da salutar reação ao “poético”
estereotipado, do valor profundo das sensações primitivas e
virgens; mostrei como as exigências do lirismo e da lógica são
diferentes; insisti sobre o poder emocional do elemento grotesco;
disse da importância da colaboração do leitor com o poeta. A
explicação transformara-se, nessa altura, em animada conversa, e
por fim meus alunos concordaram comigo em que cada época tinha a sua
expressão literária, diversa das anteriores. Chegados a esse
resultado, pudemos voltar à leitura de Horácio. Já então os meus
discípulos leram com interesse muito maior a ode em que o poeta
romano, considerado até então por muitos deles um versificador de
lugares-comuns, se desculpava da ousadia revolucionária com que
introduzira na literatura latina formas e expressões “nunca antes
divulgadas”.
O
aparecimento das traduções num volume intitulado Mensagem do
Brasil foi acolhido pela crítica com o interesse que o momento
permitia. (Estávamos em agosto de 1939.) Pela primeira vez na Europa
Central liam-se versos brasileiros e se podia entrever a existência
no Brasil, até então só conhecido como produtor de café, de uma
civilização digna de estudo e mesmo de admiração. O crítico
Jorge Bálint – que mais tarde os nazistas haviam de assassinar –
deu a seu artigo este título: “O Brasil chegou-se para mais
perto”.
Foi
essa, realmente, a minha impressão durante três dias. No quarto
dia, os tanques alemães cruzaram a fronteira da Polônia. Uma
cortina de fumaça passou a esconder o Brasil, a poesia, a alegria de
viver.
Entretanto,
ao cabo de 15 meses, cujos sofrimentos e angústias não cabem
relatar aqui, lá estava eu de malas prontas para conhecer o Brasil
de perto. A viagem tinha de ser feita através de Portugal, única
saída da Europa já em chamas. Rumei para Lisboa com todas as
preocupações do exilado, mas algo consolado pela interessante
experiência linguística à minha espera. Que mal me podia
acontecer, se já conhecia as formas mesoclíticas e o infinito
pessoal?
Sofri,
porém, decepção tremenda. Passei seis semanas em Lisboa sem que
conseguisse entender patavina da língua falada. Pegava do jornal e
compreendia-o perfeitamente; o porteiro do hotel ou o garçom do café
diziam três palavras, e eu me via outra vez no mato sem cachorro.
Humilhação ainda maior: os intelectuais portugueses, aos quais fui
apresentado, depois de uma tentativa frustrada de falarem a sua
língua comigo, recorreram ao francês. Assisti à representação de
uma peça de teatro (de Carlos Selvagem, se bem me lembro), e saí
tonto, sem ter compreendido o enredo; a uma aula de colégio, sem
saber se os alunos tinham respondido bem ou mal; a uma defesa de tese
na Faculdade de Filosofia, sem descobrir até o fim qual fora o
assunto focalizado pelo candidato. Que diriam os filólogos de
Budapeste, se me vissem em tais apuros?
Durante
a minha permanência na capital portuguesa costumava tomar
diariamente determinado bonde e saltar no mesmo ponto, onde o mesmo
condutor lançava o mesmo grito. Sentava-me perto do homem, apurava
os ouvidos para entendê-lo, tudo em vão. Poderia perguntar, é
claro, mas não seria fair play: preferia saltar envergonhado
e infeliz, até que, na véspera da minha partida, veio a revelação.
O condutor gritava era “Restauradores”; apenas, suprimia três
das vogais da palavra, carregando nos rr e sibilando os ss.
Fui correndo verificar na placa da esquina: tinha acertado! Mas já
era tarde. No dia seguinte embarquei no Cabo de Hornos com
destino ao Rio de Janeiro, atormentado por negros pressentimentos.
Cheguei
uns 20 dias depois. Que alívio logo de entrada! O Brasil recebia-me
com uma linguagem clara, sem mistérios. Ainda não desembarcara, e
já não perdia nenhuma das palavras do carregador, que, em
compensação, perdeu uma das minhas malas. Entendi igualmente o
funcionário da alfândega; e, de tão satisfeito, não lhe rebati a
surpreendente afirmação de que o português e o húngaro eram
línguas irmãs. O deslumbramento continuou na rua, no primeiro táxi,
no hotel. O idioma que eu aprendera em Budapeste era mesmo o
português!
1944
– 194
Paulo Rónai, em Como aprendi o português e outras aventuras
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