São
duas mil, três mil ou mais? De qualquer maneira o seu número é
exatamente igual ao das que nunca hei de aprender. Confissão triste
e humilhante para quem desde menino sente pelos idiomas uma espécie
de paixão e que, ainda hoje, cada vez que na rua ouve pessoas
falarem uma língua desconhecida, tem estremecimentos de inveja.
Quando,
pela primeira vez em minha vida, vi uma cédula graúda – podia ter
meus sete anos – provavelmente experimentei o desejo de possuí-la,
como qualquer um. Se o tive, esqueci-o. Mas lembro-me nitidamente da
inquieta curiosidade com que me pus a decifrar as duas palavras –
CEM COROAS – que aquela nota ostentava nas oito línguas da desde
então finada Monarquia austro-húngara.
Adolescente,
alimentei em segredo a esperança de assenhorear-me, com o tempo, do
maior número possível de idiomas: vinte, trinta, talvez ainda mais.
Um de meus professores assegurava-me que só os quinze primeiros eram
difíceis. E nos meus passeios pelos sebos da Europa, ia apanhando
cada livro esquisito para dele fazer uso depois, em lazeres que não
poderiam deixar de vir: uma gramática ladina ou reto-romana com a
chave da pronúncia; o malgaxe em vinte lições; um livro de leitura
para o segundo ano primário das escolas de La Valetta, Malta, sem
uma única vogal no título; um manual da língua sueca para
italianos… verdadeiro bazar de alfarrábios disparatados que os
livreiros viam envelhecer na última prateleira e me empurravam quase
de graça.
Mas
o tempo passou, os lazeres não vieram, a minha biblioteca
dispersou-se definitivamente no assédio a Budapeste e todos aqueles
idiomas continuam intactos, não revelados, a troçar de mim. Outro
terá aprendido, em meu lugar, o malgaxe em vinte lições. E
limito-me a sonhar com as oportunidades maravilhosas que perdi.
Num
livro islandês teria talvez encontrado resposta às minhas dúvidas;
o poeta que melhor exprimiu as minhas angústias, talvez o tivesse
feito em haicais japoneses. Mas não nos encontraremos nunca, como se
eles não existissem ou eu mesmo não existisse.
O
que mais me atormenta são as línguas que principiei a estudar e
depois abandonei por falta de tempo, de entusiasmo, de perseverança.
Não
me consolo de não haver aprendido o hebraico, que me ensinaram
durante alguns anos. Ler os profetas, o Cântico dos Cânticos no
original! Mas os meus professores não tinham a menor perícia
pedagógica: cortavam o texto em pedacinhos de quatro ou cinco
palavras e ditavam a correspondente tradução, literal, estúpida. A
gente decorava aquilo e depois recitava-o, soletrando penosamente o
original – e era o bastante para inspirar à criança uma aversão
insuperável por aqueles caracteres hieráticos, que de início a
atraíam tanto.
Outra
língua que perdi, já adulto, foi o finês. Em virtude de um pálido,
longínquo parentesco com o magiar, os candidatos a professor de
húngaro tinham de estudá-lo. Eu era um deles. A gramática finesa
ensinou-me muita coisa: por exemplo, que a minha língua materna
tinha declinações com mais de uma dúzia de casos e que, até
então, usava às mil maravilhas sem suspeitar-lhes a existência.
Invejei os finlandeses por possuírem um verbo de negação que
permite negar de um modo vago, sem especificação do que se nega –
verbo ótimo para senhoras; e lamentei-os por faltarem na sua língua
exatamente a letra f e o som correspondente. Nada disso, porém,
interessava ao meu examinador; ele só queria saber de mim o
desenvolvimento das labiodentais no finês, estoniano, vogul, ostíaco
e zurieno. Passei no exame, mas nunca mais pus os pés na aula desse
famoso linguista, que em apenas cinquenta anos de ensino conseguiu
tirar a um país inteiro a vontade de conhecer outro.
Caso
parecido foi o do sânscrito, pelo qual entrei a sentir um começo de
paixão. Infelizmente, para o meu mestre o santo idioma da Índia não
tinha palavras: era uma coleção de meros radicais. A pedra
enchia-se de flechas, traços e símbolos matemáticos que ligavam à
raiz sânscrita a flor grega ou o fruto latino que dela brotaram. Só
anos depois descobri que o sânscrito também possuía palavras
completas e até frases inteiras; mas já era tarde.
Um
terceiro professor, a quem só vi uma vez, postou-se à porta do
dinamarquês para impedir-me a entrada. Era na primeira aula de um
curso da Sorbonne. Havia, além de mim, mais cinco estudantes, todos
suecos. O professor passou todo o tempo a corrigir-lhes a pronúncia,
eivada de influência sueca. Como a minha pronúncia não estivesse
eivada de coisa alguma, não compareci nem à segunda aula nem às
outras.
Mais
desculpável, acho eu, é a minha ignorância do etrusco. Bem que
havia na Universidade de Perugia um curso de etruscologia. Para nos
dar o gosto de disciplina, o professor levou-nos a ver um famoso
túmulo etrusco nos arredores da velha cidade. Mas os etruscos do
túmulo estavam demasiado mortos, em contraste com uma loura
estudante norueguesa, chamada Solveig. Desisti do etrusco.
O
turco, deixei-o escapar por causa de uma gramática onde havia poucas
regras, menos leituras e nenhum exercício de conversação, mas um
sem-número de provérbios. Uns bonitos até, como este “A morte é
um camelo negro, ajoelha-se a todas as portas”. Eu teria preferido
lições mais práticas e larguei o livro apesar de tanto gostar da
lei da assimilação vocálica, de que resultam palavras de dez
sílabas com outros tantos ii e uu. Talvez a coisa fosse outra, se no
livro houvesse pelo menos uma daquelas longas histórias todas em
gerúndio: “Um eremita, passando pela floresta, ouvindo o canto de
um passarinho, detendo-se e deliciando-se com o canto…” com um
único pretérito perfeito – no desfecho rápido e brutal: “…
foi devorado por um tigre”.Mas isto só me contaram depois.
Houve
também idiomas, não adianta negá-lo, que deixei de aprender por
minha culpa. Foi uma leviandade, se não um crime, não ter estudado
chinês com meu amigo Kan Woo em Paris, onde ele, por mais estranho
que pareça, colhia materiais para um estudo sobre literatura
húngara. Mas certas confidências suas me assustavam. Almoçávamos
juntos, quase diariamente, no restaurante chinês da rua Victor
Cousin, ele com varinhas, eu, por obséquio especial do garçom, de
colher e garfo.
— Como
vai o ensaio, sr. Kan Woo? – perguntei-lhe um dia.— Zá está
quase plonto – respondeu-me em sua linguagem frouxa, mas correta. –
Só falta copial.
O
estudo fora feito em dois meses. A cópia arrastava-se por um ano, e
ainda não estava concluída. Quando manifestei a minha estranheza, o
meu amigo explicou: o difícil não era escrever o estudo, mas sim
caligrafá-lo.
— O
amigo sabe, estou ploculando intloduzil no meio alguns sinais de
tlaçado muito complicado que não folam emplegados há mais de um
século. Também nem semple é fácil encontlal telceila lima. E as
alitelações, então!
Não
quis acreditar que um simples ensaio exigisse rima, aliteração e
sinais tão rebuscados, mas o meu amigo assegurou-me que aquilo era
assim mesmo. E um ano depois chegou de Xangai a revista Ki ta wen
hio yen tsi k’ouan – que até hoje guardo com carinho
especial – em que Kan Woo mostrou o meu nome em caracteres latinos,
ladeado de hieróglifos os mais esquisitos.
— É
uma dedicatólia que fiz pala o amigo – disse-me. — Tem duas
letlas muito lalas.
Tivesse
eu, pelo menos, estudado o sogdiano. Num dos milhares de “campos de
trabalho” inventados pelos nazistas, onde passei cinco meses, topei
um dia com um amigo querido, especialista, já famoso, em línguas
orientais. Os dois nos defendíamos contra o desespero com a leitura
nas horas que não levávamos a derrubar uma casa para construir
outra, exatamente igual, cinco metros mais adiante. O meu amigo
trazia no bolso um texto sogdiano. Era, se bem me lembro, a língua
sagrada da antiga Pérsia, conhecida – explicava-me ele – por uns
dez filólogos no mundo. E eu podia ser o décimo primeiro! Mas no
estábulo onde nos recolhíamos para pernoitar, eu tinha como vizinho
um astrólogo. Este me predisse que ia escapar do campo, chegar a uma
terra longínqua, e iniciar uma carreira completamente nova. Pois em
todas elas o sogdiano me era dispensável. (Viverá ainda o pobre
astrólogo? E o meu sábio filólogo, tão desambientado naquela
desumana realidade? Terá sobrevivido ao campo de concentração, à
deportação, às matanças?).
Em
outras línguas que apareceram ao meu alcance não podia mexer, por
constituírem exclusividade de amigos. Tocar no catalão seria entrar
nos domínios de um bom camarada que, anos após, ensinaria húngaro
(a quem?) na Universidade de Barcelona. Outro rapaz de minhas
relações apropriara-se do japonês. Mas sobretudo as línguas
fino-úgricas, parentes pobres do húngaro, tinham cada uma o seu
dono. Um amigo anexara o tcheremisso, e ninguém mais o tirara dali.
Durante a Primeira Guerra Mundial desaninhou, entre milhares de
prisioneiros russos, um tcheremisso analfabeto, e, com a anuência
das autoridades, tomou conta dele, espremendo-lhe do cérebro volumes
de contos populares, que saíram num alfabeto especialmente inventado
para esse fim. (Um desses contos figura no primeiro volume de Mar de
histórias.) Outro conhecido mostrara-me, entre as relíquias da
família, uma alentada monografia do pai sobre os pronomes voguis.
Ninguém devia bulir naquilo.
Mas
que adianta responsabilizar homens, livros e circunstâncias? O que
se tinha de aprender, aprendia-se mesmo. Há vinte anos, ao passar
por um sebo de Paris, vi exposto na rua um enorme dicionário
português por dez francos. Ia comprá-lo, mas a pessoa com quem
estava dissuadiu-me:— Ora essa! Nunca você precisará de um
dicionário português.
Mas,
voltando pela mesma rua, sozinho, duas horas mais tarde, não resisti
à tentação e fui procurar o meu dicionário. Tinham-no vendido, e
eu julgava encerradas as minhas relações com a última flor do
Lácio.
Talvez
seja até melhor que tantas línguas me tenham ficado fechadas,
recusando-se a entregar-me o seu mistério. Que decepção se
verificasse que o armênio era também fecundo em lugares-comuns e a
língua de Hafiz se prestava excelentemente aos chavões mais
desmoralizados!
1948
Paulo Rónai, em Como aprendi o português e outras aventuras
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