A
água estava fria, mas se tentássemos reclamar ou mesmo voltar, os
guardas nos ameaçavam com as lanças ou as tochas. Havia várias
canoas esperando por nós, já que somente elas conseguiam atravessar
os alagados até o mar aberto, e eu, a Taiwo, a minha avó e a
Tanisha conseguimos ser embarcadas juntas. Foi bom porque uma
encorajava a outra quando a canoa parecia que ia virar, atingida por
ondas enormes, pois aquele trecho da costa, depois das lagunas, não
é protegido por nenhuma baía, como em São Salvador ou São
Sebastião do Rio de Janeiro. Eu tinha medo pela minha avó, pois ela
não era ibêji e provavelmente o branco não ia querê-la para
presente, ficando para carneiro, como todos os outros. E já gostava
da Tanisha também, e pensava em como seria bom se os brancos nos
aceitassem todas como presente, e também à Aja e à Jamila, quando
descobrissem que não estávamos indo visitar Alá, como tinham
falado para elas. Subimos no navio por uma escada de corda, e lá em
cima pude perceber como era realmente grande. A Taiwo comentou que
dava para carregar muitas canoas iguais à que pegamos no caminho de
Savalu para Uidá, e perguntou à minha avó se podíamos ficar ali,
olhando o mar, olhando Uidá, que era muito diferente vista de longe.
Nem sei se dava mesmo para ver a cidade, não me lembro, mas eu tinha
a impressão de que às vezes as águas do mar eram varridas pelo
farol do forte, como se ele nos acenasse em despedida. A minha avó
não respondeu à pergunta da Taiwo, talvez porque, como eu, tinha
medo de que nos transformassem em carneiros ali mesmo, antes da
viagem. Talvez já nos matassem e pendurassem de cabeça para baixo,
como ela fazia quando matava uma caça e pendurava no tronco de
alguma árvore, aparando o sangue em uma vasilha antes que ele se
transformasse em riozinhos. Acredito que todas sentíamos o mesmo
medo, e percebi certa preocupação no comentário da Aja, dizendo
que só podia comer a carne de carneiro que o marido matava. Comentei
que elas eram iguais ao Xangô da minha avó, que só comia
carneiros, e a Jamila disse que não, que Xangô só comia carneiro
porque só davam a ele carne de carneiro, mas mesmo se dessem a elas
carne de porco, não poderiam comer, pois Alá assim tinha ordenado.
Foi com elas que comecei a aprender que um deus pode ser chamado por
vários nomes. Para elas era Alá, mas para outros era Olorum, mas
também poderia ser Deus ou Zambi, por exemplo. Todos eles tinham
criado o mar, as estrelas, o fogo, as pessoas e até mesmo o
estrangeiro, que era para onde a Aja e a Jamila pensavam estar indo
se encontrar com Ele. Mesmo estando erradas, elas não sabiam o
quanto estavam certas. Ou talvez soubessem, porque enquanto todos se
preocupavam, elas estavam ou fingiam estar felizes, dizendo que ia
ser uma viagem longa e sofrida, mas que assim se oferecia um
sacrifício maior a Alá. A minha avó estava triste, ainda mais
triste do que no dia em que desaprendeu a sorrir.
Nós,
as mulheres, gostaríamos de ter esperado pelos homens no convés, e
tentamos protestar quando nos mandaram andar em direção ao meio do
navio, onde havia uma escada que fomos obrigadas a descer. Logo nos
fizeram entender que qualquer protesto seria recebido com violência.
Descemos dois lances de uma escada estreita e escura, iluminada
apenas pela tocha de um guarda que ia à frente, mostrando o caminho.
O navio tinha dois porões, e o de baixo, onde fomos colocadas, era
um pouco menor que o de cima, pelo qual passamos sem parar. Também
não tinha qualquer entrada de luz ou de ar, a não ser a portinhola
por onde descemos e que foi fechada logo em seguida à ordem para que
escolhêssemos um canto e ficássemos todas juntas, pois logo trariam
os outros. Apesar dos breves instantes de claridade que tivemos, pude
perceber que o local era pequeno para todos os que estavam no
barracão, em terra. Mesmo com a escuridão parecendo aumentar o
tamanho do porão, mesmo contando com a parte de cima, ainda assim
não chegava nem à metade do espaço que ocupávamos até então. A
minha avó estava agarrada à minha mão e à da Taiwo, e mesmo tendo
companhia, parecia que estávamos sozinhas, porque ao redor de cada
uma de nós era só silêncio. Silêncio que mais parecia um pano
escuro, grosso e sujo, que tomava todos os espaços e prendia debaixo
dele o ar úmido e malcheiroso, sabendo a mar e a excrementos, a suor
e a comida podre, a bicho morto. Carneiros, talvez. Era como se todos
esses cheiros virassem gente e ocupassem espaço, fazendo o lugar
parecer ainda mais sufocante. Segurando a mão da minha avó, eu só
pedia que o estrangeiro fosse perto. Mas, apesar de tudo, estávamos
quietas, resignadas, como se realmente não houvesse mais nada a
fazer.
Quando
entraram os primeiros homens, a tranquilidade foi quebrada pelas
vozes das mulheres que queriam saber se os seus parentes ou
conhecidos estavam entre eles. Chamavam os nomes e ficavam à espera
de uma voz responder que sim ou de o silêncio responder que não. A
Tanisha chamou pelo Daren, mas quem respondeu foi o marido, Amari,
dizendo que o filho ainda não tinha embarcado. Os tocheiros
iluminavam rapidamente o caminho e os rostos dos que chegavam,
acompanhados da ordem de nos deitarmos um ao lado do outro, com as
cabeças apoiadas na parede do navio, até que déssemos uma volta
completa. E depois mais uma volta no interior, e mais uma terceira,
sendo que muitos ainda sobraram de pé e foram empurrados por cima
dos que já estavam deitados. Quando alguém disse que já não cabia
mais ninguém, recebeu a resposta de que o balanço do navio faria
caber. Fiquei entre a Tanisha e a minha avó, e depois da minha avó
vinham a Taiwo, a Aja e a Jamila. Deitada no escuro, olhando o céu
sem estrelas do teto do porão, se não fosse o cheiro que fazia o ar
entrar difícil no peito, eu teria gostado de ser embalada pelo mar.
Ele fez com que eu me lembrasse de quando a minha mãe nos embalava,
a mim e à Taiwo de uma só vez, indo e voltando no ritmo de uma
música que ela inventava na hora. A minha mãe tinha voz bonita, que
foi embora navegando no riozinho de sangue que se juntou ao riozinho
do Kokumo. Esse foi o cheiro que, apesar de disperso no meio dos
outros, me acompanhou durante toda a viagem desde o armazém: o
cheiro de sangue.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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