terça-feira, 20 de agosto de 2024

A partida


A água estava fria, mas se tentássemos reclamar ou mesmo voltar, os guardas nos ameaçavam com as lanças ou as tochas. Havia várias canoas esperando por nós, já que somente elas conseguiam atravessar os alagados até o mar aberto, e eu, a Taiwo, a minha avó e a Tanisha conseguimos ser embarcadas juntas. Foi bom porque uma encorajava a outra quando a canoa parecia que ia virar, atingida por ondas enormes, pois aquele trecho da costa, depois das lagunas, não é protegido por nenhuma baía, como em São Salvador ou São Sebastião do Rio de Janeiro. Eu tinha medo pela minha avó, pois ela não era ibêji e provavelmente o branco não ia querê-la para presente, ficando para carneiro, como todos os outros. E já gostava da Tanisha também, e pensava em como seria bom se os brancos nos aceitassem todas como presente, e também à Aja e à Jamila, quando descobrissem que não estávamos indo visitar Alá, como tinham falado para elas. Subimos no navio por uma escada de corda, e lá em cima pude perceber como era realmente grande. A Taiwo comentou que dava para carregar muitas canoas iguais à que pegamos no caminho de Savalu para Uidá, e perguntou à minha avó se podíamos ficar ali, olhando o mar, olhando Uidá, que era muito diferente vista de longe. Nem sei se dava mesmo para ver a cidade, não me lembro, mas eu tinha a impressão de que às vezes as águas do mar eram varridas pelo farol do forte, como se ele nos acenasse em despedida. A minha avó não respondeu à pergunta da Taiwo, talvez porque, como eu, tinha medo de que nos transformassem em carneiros ali mesmo, antes da viagem. Talvez já nos matassem e pendurassem de cabeça para baixo, como ela fazia quando matava uma caça e pendurava no tronco de alguma árvore, aparando o sangue em uma vasilha antes que ele se transformasse em riozinhos. Acredito que todas sentíamos o mesmo medo, e percebi certa preocupação no comentário da Aja, dizendo que só podia comer a carne de carneiro que o marido matava. Comentei que elas eram iguais ao Xangô da minha avó, que só comia carneiros, e a Jamila disse que não, que Xangô só comia carneiro porque só davam a ele carne de carneiro, mas mesmo se dessem a elas carne de porco, não poderiam comer, pois Alá assim tinha ordenado. Foi com elas que comecei a aprender que um deus pode ser chamado por vários nomes. Para elas era Alá, mas para outros era Olorum, mas também poderia ser Deus ou Zambi, por exemplo. Todos eles tinham criado o mar, as estrelas, o fogo, as pessoas e até mesmo o estrangeiro, que era para onde a Aja e a Jamila pensavam estar indo se encontrar com Ele. Mesmo estando erradas, elas não sabiam o quanto estavam certas. Ou talvez soubessem, porque enquanto todos se preocupavam, elas estavam ou fingiam estar felizes, dizendo que ia ser uma viagem longa e sofrida, mas que assim se oferecia um sacrifício maior a Alá. A minha avó estava triste, ainda mais triste do que no dia em que desaprendeu a sorrir.
Nós, as mulheres, gostaríamos de ter esperado pelos homens no convés, e tentamos protestar quando nos mandaram andar em direção ao meio do navio, onde havia uma escada que fomos obrigadas a descer. Logo nos fizeram entender que qualquer protesto seria recebido com violência. Descemos dois lances de uma escada estreita e escura, iluminada apenas pela tocha de um guarda que ia à frente, mostrando o caminho. O navio tinha dois porões, e o de baixo, onde fomos colocadas, era um pouco menor que o de cima, pelo qual passamos sem parar. Também não tinha qualquer entrada de luz ou de ar, a não ser a portinhola por onde descemos e que foi fechada logo em seguida à ordem para que escolhêssemos um canto e ficássemos todas juntas, pois logo trariam os outros. Apesar dos breves instantes de claridade que tivemos, pude perceber que o local era pequeno para todos os que estavam no barracão, em terra. Mesmo com a escuridão parecendo aumentar o tamanho do porão, mesmo contando com a parte de cima, ainda assim não chegava nem à metade do espaço que ocupávamos até então. A minha avó estava agarrada à minha mão e à da Taiwo, e mesmo tendo companhia, parecia que estávamos sozinhas, porque ao redor de cada uma de nós era só silêncio. Silêncio que mais parecia um pano escuro, grosso e sujo, que tomava todos os espaços e prendia debaixo dele o ar úmido e malcheiroso, sabendo a mar e a excrementos, a suor e a comida podre, a bicho morto. Carneiros, talvez. Era como se todos esses cheiros virassem gente e ocupassem espaço, fazendo o lugar parecer ainda mais sufocante. Segurando a mão da minha avó, eu só pedia que o estrangeiro fosse perto. Mas, apesar de tudo, estávamos quietas, resignadas, como se realmente não houvesse mais nada a fazer.
Quando entraram os primeiros homens, a tranquilidade foi quebrada pelas vozes das mulheres que queriam saber se os seus parentes ou conhecidos estavam entre eles. Chamavam os nomes e ficavam à espera de uma voz responder que sim ou de o silêncio responder que não. A Tanisha chamou pelo Daren, mas quem respondeu foi o marido, Amari, dizendo que o filho ainda não tinha embarcado. Os tocheiros iluminavam rapidamente o caminho e os rostos dos que chegavam, acompanhados da ordem de nos deitarmos um ao lado do outro, com as cabeças apoiadas na parede do navio, até que déssemos uma volta completa. E depois mais uma volta no interior, e mais uma terceira, sendo que muitos ainda sobraram de pé e foram empurrados por cima dos que já estavam deitados. Quando alguém disse que já não cabia mais ninguém, recebeu a resposta de que o balanço do navio faria caber. Fiquei entre a Tanisha e a minha avó, e depois da minha avó vinham a Taiwo, a Aja e a Jamila. Deitada no escuro, olhando o céu sem estrelas do teto do porão, se não fosse o cheiro que fazia o ar entrar difícil no peito, eu teria gostado de ser embalada pelo mar. Ele fez com que eu me lembrasse de quando a minha mãe nos embalava, a mim e à Taiwo de uma só vez, indo e voltando no ritmo de uma música que ela inventava na hora. A minha mãe tinha voz bonita, que foi embora navegando no riozinho de sangue que se juntou ao riozinho do Kokumo. Esse foi o cheiro que, apesar de disperso no meio dos outros, me acompanhou durante toda a viagem desde o armazém: o cheiro de sangue.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

Nenhum comentário:

Postar um comentário