Muitas
vezes o que me salvou foi improvisar um ato gratuito. Ato gratuito,
se tem causas, são desconhecidas. E se tem consequências, são
imprevisíveis.
O
ato gratuito é o oposto da luta pela vida e na vida. Ele é o oposto
da nossa corrida pelo dinheiro, pelo trabalho, pelo amor, pelos
prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim –
que esta é toda paga, isto é, tem o seu preço. Uma tarde dessas,
de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu
escrevendo à máquina – quando alguma coisa em mim aconteceu.
Era
o profundo cansaço da luta.
E
percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordaria. Eu
estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta
de tirar ideias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina
de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu. Eu
precisava – precisava com urgência – de um ato de liberdade: do
ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o que eu
secretamente era. E necessitava de um ato pelo qual eu não precisava
pagar. Não digo pagar com dinheiro, mas sim, de um
modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver.
Então
minha própria sede guiou-me. Eram 2 horas da tarde de verão.
Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um
táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. “Que
rua?” perguntou ele. “O senhor não está entendendo”,
expliquei-lhe “não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro.”
Não sei por que olhou-me um instante com atenção.
Deixei
abertas as vidraças do carro, que corria muito, e eu já começara
minha liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os
cabelos e me batesse no rosto grato de olhos entrefechados de
felicidade.
Eu
ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só
para sentir. Só para viver.
Saltei
do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu.
Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma
avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se
erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério.
O
mistério me rodeava. Olhei arbustos frágeis recém-plantados. Olhei
uma árvore de tronco nodoso e escuro, tão largo que me seria
impossível abraçá-lo. Por dentro dessa madeira de rocha, através
de raízes pesadas e duras como garras – como é que corria a
seiva, essa coisa quase intangível e que é vida? Havia seiva em
tudo como há sangue em nosso corpo.
De
propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir
sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De
passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha
liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim
pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes
parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais,
pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom – como um
estremecimento apenas perceptível de alma – um medo bom de talvez
estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de
saída.
Havia
naquela alameda um chafariz de onde a água corria sem parar. Era uma
cara de pedra e de sua boca jorrava a água. Bebi. Molhei-me toda.
Sem me incomodar: esse exagero estava de acordo com a abundância do
Jardim.
O
chão estava às vezes coberto de bolinhas de aroeira, daquelas que
caem em abundância nas calçadas de nossa infância e que pisávamos
não sei por quê, com enorme prazer. Repeti então o esmagamento das
bolinhas e de novo senti o misterioso gosto bom.
Estava
com um cansaço benfazejo, era hora de voltar, o sol já estava mais
fraco.
Voltarei
num dia de muita chuva – só para ver o gotejante jardim submerso.
Nota:
peço licença para pedir à pessoa que tão bondosamente traduz meus
textos em braile para os cegos que não traduza este. Não quero
ferir olhos que não veem.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Nenhum comentário:
Postar um comentário