domingo, 25 de fevereiro de 2024

Caim [excerto]

 


[...]
A sua primeira morada foi uma estreita caverna, em verdade mais cavidade que caverna, de tecto baixo, descoberta num afloramento rochoso ao norte do jardim do éden quando, desesperados, vagueavam à procura de um abrigo. Ali puderam, finalmente, defender-se da queimação brutal de um sol que em nada se parecia com aquela invariável benignidade de temperatura a que estavam habituados, constante de noite e de dia, e em qualquer época do ano. Abandonaram as grossas peles que os sufocavam de calor e mau cheiro, e regressaram à primeira nudez, mas, para proteger de agressões exteriores as partes delicadas do corpo, as que andam só mais ou menos resguardadas entre as pernas, inventaram, utilizando as peles mais finas e de pêlo mais curto, aquilo a que mais tarde virá a chamar-se saia, idêntica na forma tanto para as mulheres como para os homens. Nos primeiros dias, sem terem ao menos uma côdea para mastigar, passaram fome. O jardim do éden era ubérrimo em frutos, aliás não se encontrava lá outra coisa de proveito, até aqueles animais que, por natureza, deveriam alimentar-se de carne sangrenta, pois para carnívoros vieram ao mundo, haviam sido, por imposição divina, submetidos à mesma melancólica e insatisfatória dieta. O que não se sabia era donde tinham vindo as peles que o senhor fizera aparecer com um simples estalar de dedos, como um prestidigitador. De animais eram, e grandes, mas vá lá saber-se quem os teria matado e esfolado, e onde. Casualmente, havia água por ali perto, porém não era mais que um regato turvo, em nada parecido com o rio caudaloso que nascia no jardim do éden e depois se dividia em quatro braços, um que ia regar uma região onde se dizia que o ouro abundava e outro que rodeava a terra de cuche. Os dois restantes, por mais extraordinário que pareça aos leitores de hoje, foram logo baptizados com os nomes de tigre e eufrates. Perante o humilde riacho que laboriosamente ia abrindo caminho entre os espinhos e os cardos do deserto, o mais provável foi ter sido o tal rio caudaloso uma ilusão de óptica fabricada pelo próprio senhor para tornar mais aprazível a vida no paraíso terrenal. Tudo pode acontecer. Tudo pode acontecer, sim, até a insólita ideia de eva de ir pedir ao querubim que lhe permitisse entrar no jardim do éden e colher alguma fruta que lhes aguentasse a fome por uns dias mais. Céptico, como qualquer homem,quanto aos resultados de uma diligência nascida em cabeça feminina, adão disse-lhe que fosse ela sozinha e que se preparasse para sofrer uma decepção, Está lá aquele querubim de sentinela à porta com a sua espada de fogo, não é um anjo qualquer, de segunda ou terceira categoria, sem peso nem autoridade, mas um querubim dos autênticos, como quererás tu que ele vá desobedecer às ordens que o senhor lhe deu, esta foi a sensata pergunta, Não sei, e não vou saber enquanto não o intentar, E se não conseguires, Se não conseguir, não terei perdido mais que os passos para lá e para cá, e as palavras que lhe disser, respondeu ela, Pois sim, mas iremos ter problemas se o querubim nos for denunciar ao senhor, Mais problemas que estes que temos agora, sem modo de ganhar a vida, sem comida para levar à boca, sem um tecto seguro nem roupas dignas desse nome, não vejo que problemas nos possam advir mais, o senhor já nos castigou expulsando-nos do jardim do éden, pior do que isto não imagino o que poderá ser, Sobre o que o senhor possa ou não possa, não sabemos nada, Se é assim, teremos de o forçar a explicar-se, e a primeira coisa que deverá dizer-nos é a razão por que nos fez e com que fim, Estás louca, Melhor louca que medrosa, Não me faltes ao respeito, gritou adão, enfurecido, eu não tenho medo, não sou medroso, Eu também não, portanto estamos quites, não há mais que discutir, Sim, mas não te esqueças de que quem manda aqui sou eu, Sim, foi o que o senhor disse, concordou eva, e fez cara de quem não havia dito nada. Quando o sol perdeu alguma da força, meteu-se ao caminho com a sua saia bem posta e uma pele das mais leves por cima dos ombros. Ia, como alguém dirá, decentezinha, embora não pudesse evitar que os seios, soltos, sem amparo, se movessem ao ritmo dos passos. Não podia impedi-los, nem em tal pensou, não havia por ali ninguém a quem eles pudessem atrair, nesse tempo as tetas serviam para mamar e pouco mais. Estava surpreendida consigo mesma, com a liberdade com que tinha respondido ao marido, sem temor, sem ter de escolher as palavras, dizendo simplesmente o que, na sua opinião, o caso justificava. Era como se dentro de si habitasse uma outra mulher, com nula dependência do senhor ou de um esposo por ele designado, uma fêmea que decidira, finalmente, fazer uso total da língua e da linguagem que o dito senhor, por assim dizer, lhe havia metido pela boca abaixo. Atravessou o riacho gozando a frescura da água que parecia difundir-se-lhe por dentro das veias ao mesmo tempo que experimentava algo no espírito que talvez fosse a felicidade, pelo menos parecia-se muito com a palavra. O estômago deu-lhe um estorcegão, não era hora para desfrutar de sentimentos positivos.
Saiu da água, foi colher umas bagas ácidas que, ainda que não alimentassem, iludiam por algum tempo, pouco, a necessidade de comer. O jardim do éden já está perto, veem-se distintamente as copas das árvores mais altas. Eva caminha mais lentamente que antes, e não é porque se sinta cansada. Adão, se aqui estivesse, de certeza se riria dela, Tão valente, tão valente, e afinal vais aí cheia de medo. Sim, tinha medo, medo de falhar, medo de não ter palavras suficientes para convencer o guarda, chegou mesmo a dizer em voz baixa, tal era o seu desânimo, Se eu fosse homem seria mais fácil. Aí está o querubim, a espada de fogo brilha com uma luz maligna na sua mão direita. Eva cobriu melhor o peito e avançou. Que queres, perguntou o anjo, Tenho fome, respondeu a mulher, Não há aqui nada que possas comer, Tenho fome, insistiu ela, Tu e o teu marido fostes expulsos do jardim do éden pelo senhor e a sentença não tem apelo, retira-te, Matas-me se eu quiser entrar, perguntou eva, Para isso me pôs o senhor de guarda, Não respondeste à minha pergunta, A ordem que tenho é essa, Matar-me, Sim, Portanto, obedecerás à ordem. O querubim não respondeu. Moveu o braço em cuja mão a espada de fogo silvava como uma serpente. Foi a sua resposta. Eva deu um passo em frente.
Detém-te, disse o querubim, Terás de matar-me, não me deterei, e deu outro passo, ficarás aqui a guardar um pomar de fruta apodrecida que a ninguém apetecerá, o pomar de deus, o pomar do senhor, acrescentou. Que queres, perguntou outra vez o querubim, que pareceu não perceber que a reiteração iria ser interpretada como um sinal de fraqueza, Repito, tenho fome, Pensei que já estaríeis longe, E aonde iríamos nós, perguntou eva, estamos no meio de um deserto que não conhecemos e onde não se vê um caminho, um deserto onde durante estes dias não passou uma alma viva, dormimos num buraco, comemos ervas, como o senhor prometeu, e temos diarreias, Diarreias, que é isso, perguntou o querubim, Também se lhes pode chamar caganeiras, o vocabulário que o senhor nos ensinou dá para tudo, ter diarreia, ou caganeira, se gostares mais desta palavra, significa que não consegues reter a merda que levas dentro de ti, Não sei o que isso é, Vantagem de ser anjo, disse eva, e sorriu. O querubim gostou de ver aquele sorriso. No céu também se sorria muito, mas sempre seraficamente e com uma ligeira expressão de contrariedade, como quem pede desculpa por estar contente, se àquilo se podia chamar contentamento. Eva tinha vencido a batalha dialéctica, agora só faltava a da comida. Disse o querubim, Vou trazer-te alguns frutos, mas tu não o digas a ninguém, A minha boca não se abrirá, em todo o caso o meu marido vai ter de saber, Volta com ele amanhã, temos que conversar. Eva retirou a pele de cima dos ombros e disse, Usa isto para trazeres a fruta. Estava nua da cintura para cima. A espada silvou com mais força como se tivesse recebido um súbito afluxo de energia, a mesma energia que levou o querubim a dar um passo em frente, a mesma que o fez erguer a mão esquerda e tocar no seio da mulher. Nada mais sucedeu, nada mais podia suceder, os anjos, enquanto o sejam, estão proibidos de qualquer comércio carnal, só os anjos que caíram são livres de juntar-se a quem queiram e a quem os queira. Eva sorriu, pôs a mão sobre a mão do querubim e premiu-a suavemente contra o seio. O seu corpo estava coberto de sujidade, as unhas negras como se as tivesse usado para cavar a terra, o cabelo como um ninho de enguias entrelaçadas, mas era uma mulher, a única. O anjo havia entrado no jardim, demorou-se lá o tempo necessário para escolher os frutos mais nutrientes, outros ricos em água, e voltou ajoujado sob uma boa carga. Aqui tens, disse, e eva perguntou, Como te chamam, e ele respondeu, O meu nome é azael, Obrigada pela fruta, azael, Não podia deixar morrer de fome aqueles que o senhor criou, O senhor to agradecerá, mas o melhor é que não lhe fales disto. O querubim pareceu não ter ouvido, ou não ouviu mesmo, ocupado como estava a ajudar eva a pôr a recheada pele às costas, enquanto dizia, Amanhã voltas com adão, falaremos de algumas coisas que vos convém conhecer, Aqui estaremos, respondeu ela.
No dia seguinte, adão acompanhou a mulher ao jardim do éden. Por ideia dela lavaram-se o melhor que puderam no riacho e o melhor que puderam foi pouquíssimo, para não dizer nada, porque água sem sabão que lhe dê uma ajuda não passa de uma pobre ilusão de limpeza. Sentaram-se no chão e logo ali se viu que o querubim azael não era pessoa para perder tempo, Não sois os únicos seres humanos que existem na terra, começou, Que não somos os únicos, exclamou adão, estupefacto, Não me faças repetir o que já está dito, Quem foi que criou esses seres, onde estão, Em toda a parte, Foi o senhor que os criou como nos criou a nós, perguntou eva, Não posso responder, e se insistem com a pergunta a nossa conversação acaba agora mesmo, cada um ao que lhe competia, eu à guarda do jardim do éden, vós à vossa gruta e à vossa fome, Nesse caso, em pouco tempo morreremos, disse adão, a mim ninguém me ensinou a trabalhar, não posso cavar nem lavrar a terra porque me faltam a enxada e o arado, e se os tivesse seria preciso aprender a manejá-los e não haveria quem mo ensinasse neste deserto, afinal melhor estaríamos com o pó que éramos antes, sem vontade nem desejo, Falaste como um livro aberto, disse o querubim, e adão ficou contente por ter falado como um livro aberto, ele que nunca havia feito estudos. Depois eva perguntou, Se já existiam outros seres humanos, para que foi então que nos criou o senhor, Já deveis saber que os desígnios do senhor são inescrutáveis, mas, se bem entendi alguma meia palavra, tratou-se de um experimento, Um experimento, nós, exclamou adão, um experimento, para quê, Do que não conheço de ciência certa não ousaria falar, o senhor lá terá as suas razões para guardar silêncio sobre o assunto, Nós não somos um assunto, somos duas pessoas que não sabem como poderão viver, disse eva, Ainda não terminei, disse o querubim, Fala então, e que da tua boca saia uma boa notícia, ao menos uma que seja, Ouçam, não demasiado afastado daqui passa um caminho frequentado de vez em quando por caravanas que vão aos mercados ou que deles regressam, a minha ideia é que deveriam acender uma fogueira que produzisse fumo, muito fumo,de modo a poder ser visto de longe, Não temos com que acendê-la, interrompeu eva, Tu não tens, mas eu, sim, O quê, Esta espada de fogo, para alguma coisa servirá finalmente, basta chegar-lhe a ponta em brasa aos cardos secos e à palha e tereis aí uma fogueira capaz de ser vista desde a lua, quanto mais de uma caravana que passa à distância, com o que deverão ter cuidado é em não deixar que o fogo alastre, uma coisa é uma fogueira, outra um deserto inteiro a arder, acabaria por pegar ao jardim do éden, e eu ficaria sem emprego, E se as pessoas não aparecerem, perguntou eva, Ai aparecem, aparecem, podes ficar tranquila, respondeu azael, os seres humanos são curiosos por natureza, esses irão querer saber quem ateou aquela fogueira e com que intenção o fez, E depois, perguntou adão, Depois é convosco, aí já não posso nada, arranjem maneira de se juntarem à caravana, peçam que os contratem só pela comida, estou convencido de que quatro braços por um prato de lentilhas será bom negócio para todos, tanto para a parte contratante como para a parte contratada, quando isso acontecer não se esqueçam de apagar a fogueira, assim saberei que já se foram, será a tua oportunidade de aprenderes o que não sabes, adão. O plano era excelente, há querubins no mundo que são uma autêntica providência, enquanto o senhor, pelo menos neste experimento, não se preocupou nada com o futuro das suas criaturas, azael, o guarda angélico encarregado de as manter afastadas do jardim do éden, acolheu-as cristãmente, garantiu-lhes a comida e, sobretudo, habilitou-as para a vida com algumas preciosas ideias práticas, um verdadeiro caminho de salvação do corpo, e portanto da alma. O casal desfez-se em mostras de gratidão, eva chegou mesmo a derramar algumas lágrimas quando se abraçou a azael, demonstração afectiva nada do agrado do marido, que mais adiante não conseguiu reprimir a pergunta que andava a saltar-lhe na boca, Deste-lhe alguma coisa em troca, Que coisa e a quem, isto disse eva, sabendo muito bem a que se referia o esposo, A quem havia de ser, a ele, a azael, disse adão omitindo por cautela a primeira parte da questão, É um querubim, um anjo, respondeu eva, e mais não achou necessário dizer. Crê-se que foi neste dia que começou a guerra dos sexos. A caravana tardou três semanas a aparecer. Claro que não veio toda ela à caverna em que adão e eva viviam, só uma guarda avançada de três homens que não tinham autoridade para negociar contratos de trabalho, mas que se apiedaram daqueles desvalidos e lhes deram lugar nos lombos dos burros em que vinham montados.
O chefe da caravana decidiria que fazer com eles. Apesar desta dúvida, como quem fecha uma porta à despedida, adão apagou a fogueira. Quando o último fumo se dissipou na atmosfera, o querubim disse, Já lá vão, boa viagem.A vida não lhes correu mal. Foram aceites na caravana apesar da sua evidente inabilidade laboral e não tiveram de dar demasiadas explicações sobre quem eram e de onde tinham vindo. Que se tinham perdido, disseram, e, em última instância, realmente assim era. Tirando o facto de serem filhos do senhor, obra directamente saída das suas divinas mãos, circunstância esta que ninguém ali estava em condições de conhecer, não se notavam especiais diferenças fisionómicas entre eles e os seus providenciais hospedeiros, dir-se-ia até que pertenciam todos à mesma raça, cabelos pretos, pele morena, olhos escuros, sobrancelhas acentuadas. Quando Abelnascer, todos os vizinhos irão estranhar a rosada brancura com que veio ao mundo, como se fosse filho de um anjo, ou de um arcanjo, ou de um querubim, salvo seja. O prato de lentilhas nunca faltou e não tardou muito para que adão e eva começassem a cobrar uma soldada, coisa pequena, quase simbólica, mas que já representava um começo de vida. Não só adão, mas também eva, que não nascera para duquesa, foram sendo iniciados a pouco e pouco nos mistérios do trabalho das mãos, em operações tão simples como a de fazer um nó corredio numa corda ou tão complexas como manejar uma agulha sem picar demasiado os dedos. Quando a caravana chegou à povoação donde havia saído semanas antes para fazer comércio emprestaram-lhes uma tenda e umas esteiras onde dormissem, e foi graças a essa e outras temporadas de estabilidade de vida que adão pôde, enfim, aprender a cavar e a lavrar a terra, a lançar sementes ao rego, até chegar à sublime arte da poda, essa que nenhum senhor, nenhum deus havia sido capaz de inventar. Começou por trabalhar com ferramentas que lhe emprestavam, depois foi juntando os seus próprios aprestos e ao cabo de uns poucos anos já era considerado pelos vizinhos como um bom agricultor. Os tempos do jardim do éden e da caverna no deserto, os espinhos e os cardos, o riacho de águas turvas, foram-se esfumando na memória até aparecerem algumas vezes como gratuitos inventos não vividos, nem sequer sonhados, mas intuídos como algo que teria sido outra vida, outro ser, outro diferente destino. É certo que nas recordações de eva havia um lugar reservado para azael, o querubim que tinha infringido as ordens do senhor para salvar de morte certa as suas obras, mas esse era um segredo seu, a ninguém confiado. E houve o dia em que adão pôde comprar um pedaço de terra, chamar-lhe sua e levantar, encostada a uma colina, uma casa de toscos adobes, aí onde já poderiam nascer os seus três filhos, Caim, Abele set, todos eles, no momento próprio das suas vidas, gatinhando entre a cozinha e o salão.
E também entre a cozinha e o campo, porque os dois mais velhos, quando já cresciditos, com a ingénua astúcia da sua pouca idade, usavam de todos os pretextos válidos e menos válidos para que o pai os levasse consigo, montados no burro da família, para o seu local de trabalho. Cedo se viu que as vocações dos dois pequenos não coincidiam.
[…]

José Saramago, in Caim

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