segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Virtude teologais

 


No domingo pela manhã, antes de ir para a missa, como sempre fazia, Maria de Lourdes colocou na bolsa as cinco notas de um real que separara e prendera com um clipe durante a semana.
Quando a missa acabou, Maria de Lourdes repartiu o seu dinheiro, um real para cada um dos escolhidos, entre os mendigos que se aglomeravam na porta da igreja: o mutilado que se locomovia num carrinho de rolimã usando as mãos calejadas como se fossem remos, a preta gorda que carregava todos os seus pertences num saco grande, o aleijado de perna retorcida como um parafuso horrendo de carne e osso, a mulher jovem, cercada de filhos, um deles um bebê de colo que ainda mamava, e finalmente o velho magro cego, que provavelmente passava muita fome ou sofria de uma grave doença.
Sua vizinha Eduiges, também viúva sem filhos, que em geral ia à missa mais cedo, assistiu à distribuição das esmolas realizada por Maria de Lourdes mas não seguiu o seu exemplo.
Reparou que o número de mendigos está aumentando?”, disse Eduiges, ao caminharem juntas para casa.
Acho que está na mesma.”
Está aumentando. É por isso que eu não frequento a missa das onze e meia, é a preferida pelos mendigos. A das sete tem muito menos.”
Eles vêm de longe, Eduiges.”
Não, acho que os mendigos também gostam de acordar tarde.”
Você tem alguma coisa contra os mendigos?”
Por que você pergunta isso? Só porque eu disse que eles gostam de acordar tarde?”
Mendigo tem que acordar cedo?”
Eu, se fosse mendiga, acordava cedo.”
Mas você não é mendiga, não tem a menor ideia do que é ser mendiga. Tem até automóvel.”
Aquele fusca velho?”
É um automóvel, não é? Não gostei do jeito como você falou que os mendigos também gostam de acordar tarde.”
Não gostou por quê?”
Você sabe que acordo tarde, eu contei para você. Mas acordo tarde porque tenho insônia. Desde que o meu marido morreu, eu sofro de insônia. Eu contei para você.”
Não me lembro disso, sinceramente.”
E também não gostei da maneira como você balançava a cabeça quando eu dava as esmolas. Você é contra dar esmolas?”
Sou.”
Maria de Lourdes apressou o passo.
Estou atrasada, desculpe se não acompanho você sei que o seu reumatismo não deixa você andar direito, mas estou com pressa.”
Não é reumatismo”, disse Eduiges, mas Maria de Lourdes continuou andando na frente sem virar o rosto.
Maria de Lourdes chegou cansada ao prédio em que as duas moravam. Havia muito tempo não se sentia tão esgotada, mas praticamente correra pela rua para não ter que subir com Eduiges no elevador. Mulher desalmada e egoísta, a Eduiges, não dava esmolas mas no supermercado enchia o carrinho de filé mignon, biscoitinhos importados e latas de cerveja. Era por causa de pessoas como Eduiges que o mundo andava daquela maneira.
Maria de Lourdes almoçou a comida que sobrara do jantar da véspera, um pedaço de frango grelhado, uma concha de feijão, que cozinhara em uma panela de pressão em quantidade que durava a semana toda, arroz e uma salada de alface e cebola. Uma comida sem sal, pois sofria de pressão alta. Maria de Lourdes comia pouco. Como para viver, não vivo para comer, ela gostava de dizer, repetindo o que o falecido marido dizia. O marido morrera de câncer, mas ela não gostava de pensar nisso. Todo ano, no dia de Finados ia ao cemitério e colocava umas flores na sepultura dele.
Já se preparava para deitar quando ouviu a campainha da porta tocar. Olhou pelo olho mágico viu que era Eduiges. Não vou deixar essa mulher entrar, não quero falar com ela, pensou Maria de Lourdes.
Por favor, abra a porta, quero fazer as pazes”, disse Eduiges.
Maria de Lourdes abriu a porta.
Vim pedir desculpas”, disse Eduiges. “Posso entrar?”
Entra.”
As duas ficaram frente a frente, constrangidas.
Não vamos brigar, somos amigas há muito tempo. Você ia sair?”
Você sabe que eu ia dormir. Sempre tiro uma soneca depois do almoço. Você sabe muito bem.”
Estou pedindo desculpas. Me dá um abraço. Não podemos virar duas implicantes, como a Cidinha.”
A Cidinha era uma solteirona que morava no sexto andar, mais nova do que elas e detestada por ambas.
Está desculpada” disse Maria de Lourdes, mas não deu o abraço pedido por Eduiges. “Eu também peço desculpas, sei que você não tem reumatismo e sim uma artrose no joelho.”
Reumatismo era um nome feio, coisa de gente velha. Artrite também não era uma boa palavra, surge na deformação, outro sinal de velhice. Já artrose, porém, entre elas, não tinha essa conotação, jogadores de futebol tinham artrose, segundo Eduiges. As duas detestavam ser chamadas de velhas, afinal tinham apenas setenta anos, o cinema estava cheio de atores e atrizes com setenta anos.
Essa artrose está acabando comigo, dirigir está cada vez mais difícil, acho que vou vender meu carro”, disse Eduiges. Ela estava exagerando um pouco e não pretendia vender o carro, mas achou que contando aquilo Maria de Lourdes amansava um pouco mais. O que na verdade aconteceu. Maria de Lourdes ficou amável e serviu um cafezinho da garrafa térmica enquanto as duas conversavam sentadas nas poltronas da sala. Eduiges tomou o café, que estava morno e quase intragável, sem fazer careta. Não falaram de esmolas nem de mendigos, conversaram sobre a novela das oito. As novelas estavam ficando cada vez piores, só falavam em sexo, até incesto havia. A opinião das duas era idêntica, a conversa foi longa e animada, ainda que Maria de Lourdes tivesse sido privada da sua soneca da tarde.
No domingo seguinte, depois de dar as suas esmolas, Maria de Lourdes foi para casa notando que o número de pedintes havia mesmo aumentado, não apenas em torno da igreja. Eles agora se espalhavam ao longo da rua, sentados ou deitados na porta das lojas comerciais, fechadas naquele dia dedicado ao descanso e à oração. Enquanto caminhava pela rua, passou em frente a muitos mendigos que lhe pediam uma caridade, alguns imploravam, estendendo-lhe as mãos, outros apenas pediam com uma voz sumida sem fazer nenhum gesto, como se soubessem que sua súplica não seria atendida. Seu coração doía de tristeza por não poder ajudar mais aqueles infelizes. Quando chegou em casa, apesar de estar em jejum, pois havia comungado naquele domingo, Maria de Lourdes não conseguiu almoçar.
Seu marido, modesto funcionário público, lhe deixara uma pequena pensão, além do apartamento de quarto e sala onde morava. Mas durante a semana, em vez de cinco, Maria de Lourdes separou dez notas de um real para levar para a igreja no domingo seguinte.
No meio da semana, Maria de Lourdes e Eduiges se encontraram no elevador.
Mandei uma carta para o jornal pedindo providências às autoridades” disse Eduiges. “O número de mendigos na rua aumenta todo dia, cada quarteirão tem um monte deles, você não dá um passo sem aparecer alguém pedindo uma esmola. As autoridades ficam de braços cruzados, a gente paga imposto, o IPTU aumenta todo ano, não sei para onde vai esse dinheiro, o governo não faz nada. E quem tem que fazer é o governo. Não adianta a gente ficar dando esmolas.”
Vou continuar dando” disse Maria de Lourdes. “Eu faço a minha parte.”
Mas isso não adianta nada. E tem mendigo que explora a boa-fé dos outros. Sabe aquela mulher cheia de filhos, uma que tem sempre um bebê no colo e que só coloca o bebê no peito fingindo que dá de mamar na hora em que as pessoas saem da missa com o coração mole, sabe qual é? Me garantiram que as crianças são todas alugadas.”
Não quero conversar sobre isso, Eduiges. A gente vai acabar brigando novamente.”
Na missa de domingo, as dez notas de Maria de Lourdes esgotaram-se rapidamente. Na volta para casa ela se sentiu impotente ante o rogo de tantos infelizes. Felizmente Eduiges não apareceu naquele dia.
Mas vizinhos sempre acabam se encontrando.
Olha, não quero chatear você, mas eu estava conversando com a Cidinha e ela também acha que dar esmolas só faz aumentar o número de mendigos aqui no bairro.”
Mas você detesta a Cidinha. Agora está de trancinha com ela? Falando mal de mim?”
Nós não estávamos falando de você. Falávamos dos mendigos que invadem o bairro no domingo. Você não é nenhuma boba, devia olhar com mais atenção para os mendigos, muitos deles, homens e mulheres, são fortes, mas não querem trabalhar, é mais fácil ganhar a vida pedindo esmolas. E aqueles garotos que vivem em volta deles são assaltantes, um dia vão levar sua bolsa.”
O que carrego na bolsa quando vou à missa é para eles mesmos, são uns miseráveis.”
Claro que existem pessoas que são pobres e não podem trabalhar ou não conseguem arranjar emprego, mas há outras maneiras de ajudar essa gente. Dar esmola é mais fácil e a gente fica com a consciência em paz, mas isso não adianta nada.”
Você odiava a Cidinha.”
Eu nunca disse que odiava a Cidinha.”
E agora bastou essa idiota dizer que dar esmola não é uma coisa boa para você jogar isso na minha cara, sabendo que eu dou esmolas.”
Sempre fui contra esse tipo de caridade. E a Cidinha não é nenhuma idiota, é professora aposentada. Ela pode ser um pouco presunçosa, mas sabe o que diz.”
Pois eu nunca ouvi burrice tão grande na minha vida. Você e sua nova amiguinha, aquela nojenta, querem dizer que eu sou culpada pelo aumento de mendigos na rua? Você vai fazer o quê, na igreja? Devia pedir perdão pelos seus maus pensamentos. Porque você só tem maus pensamentos na cabeça e no coração, você despreza os pobres. Você é uma pessoa má. Por favor, não fala mais comigo, não me dirija mais a palavra.”
As duas mulheres, depois disso, evitavam se encontrar e não se cumprimentavam quando isso ocorria.
Maria de Lourdes gostaria de levar para a igreja, em vez de dez notas, umas vinte ou trinta, mas realmente não tinha dinheiro para isso, o condomínio aumentava todo mês, o IPTU, a taxa de incêndio, o telefone, a luz elétrica, tudo aumentava.
No domingo, levou as dez notas de um real para a igreja. Teria que economizar na segunda-feira, quando fosse ao supermercado, aquele tinha sido um mês difícil, mas não ia deixar de dar as suas esmolas.
Depois da missa, Maria de Lourdes distribuiu na rua as notas entre os mendigos. Sim, eles eram cada vez em maior número e ela se sentiu desanimada ao novamente constatar aquela situação. Depois, num impulso súbito, resolveu ficar de longe observando dissimuladamente a mulher cheia de filhos, aquela que carregava o bebê no colo. Maria de Lourdes percebeu então que as crianças não podiam ser todas dela, nem sequer eram parecidas umas com as outras. Antes, por pudor, como as outras pessoas que frequentavam a igreja, evitava observar a mendiga dando de mamar, mas agora percebia que tudo era fingimento. A sua irmã, que era mãe solteira, morara com ela durante algum tempo, naquela época o seu marido ainda estava vivo, e Maria de Lourdes, que não tivera filhos apesar de desejar tanto, sempre observava, fascinada, a irmã dando de mamar. Nunca esquecera aqueles momentos, o ar de felicidade na cara da irmã, a maneira de ela segurar o bebê, o rosto sôfrego da criança sugando o peito, lembrava de tudo como se tivesse sido ontem. E aquela mulher não estava amamentando o bebê, a criança nem era um bebê em idade de mamar, devia estar com a barriga cheia, apenas encostava o rosto no peito que lhe era oferecido.
E outra coisa a incomodou: sempre que punham uma esmola na cesta que mantinha à sua frente, a mendiga sorria, agradecendo, um sorriso largo que mostrava todos os dentes, e naquele dia Maria de Lourdes notou que os dentes dela eram limpos, como os de alguém que os escovava sempre depois das refeições. Se havia uma coisa que Maria de Lourdes observava nos outros era os dentes, sempre tivera uma grande preocupação com os seus dentes, mas eles nunca haviam ficado brancos e brilhantes como os daquela mendiga, nem mesmo quando os escovava furiosamente com bicarbonato de sódio. E aquela mendiga exibia uma dentadura deslumbrante de artista de cinema.
Foi para casa andando lentamente, infeliz. Naquele dia horrível, percebeu o cego olhando de esguelha para dentro da lata que sacudia pedindo as esmolas. E a preta gorda era forte e saudável, podia trabalhar de faxineira, emprego de faxineira não faltava. Talvez a Eduiges tivesse razão, eram todos uns farsantes. A raiva que sentiu pelos mendigos que a enganavam e por ela mesma sufocou de tristeza o seu coração. Tenho que pedir perdão a Deus por esses maus pensamentos, murmurou, infeliz.
Na porta do prédio onde morava, deparou com Eduiges, que sorriu, como se quisesse fazer as pazes.
Sai da minha frente, sua desgraçada. Eu te odeio, ouviu, eu te odeio” disse Maria de Lourdes, empurrando Eduiges.
Foi para a escada, apressada, não queria que Eduiges entrasse com ela no elevador, a proximidade da outra lhe faria mal. Subiu os degraus correndo, pedindo perdão a Deus, mas antes de chegar ao andar do seu apartamento desmaiou e rolou pelas escadas abaixo.

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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