No
domingo pela manhã, antes de ir para a missa, como sempre fazia,
Maria de Lourdes colocou na bolsa as cinco notas de um real que
separara e prendera com um clipe durante a semana.
Quando
a missa acabou, Maria de Lourdes repartiu o seu dinheiro, um real
para cada um dos escolhidos, entre os mendigos que se aglomeravam na
porta da igreja: o mutilado que se locomovia num carrinho de rolimã
usando as mãos calejadas como se fossem remos, a preta gorda que
carregava todos os seus pertences num saco grande, o aleijado de
perna retorcida como um parafuso horrendo de carne e osso, a mulher
jovem, cercada de filhos, um deles um bebê de colo que ainda mamava,
e finalmente o velho magro cego, que provavelmente passava muita fome
ou sofria de uma grave doença.
Sua
vizinha Eduiges, também viúva sem filhos, que em geral ia à missa
mais cedo, assistiu à distribuição das esmolas realizada por Maria
de Lourdes mas não seguiu o seu exemplo.
“Reparou
que o número de mendigos está aumentando?”, disse Eduiges, ao
caminharem juntas para casa.
“Acho
que está na mesma.”
“Está
aumentando. É por isso que eu não frequento a missa das onze e
meia, é a preferida pelos mendigos. A das sete tem muito menos.”
“Eles
vêm de longe, Eduiges.”
“Não,
acho que os mendigos também gostam de acordar tarde.”
“Você
tem alguma coisa contra os mendigos?”
“Por
que você pergunta isso? Só porque eu disse que eles gostam de
acordar tarde?”
“Mendigo
tem que acordar cedo?”
“Eu,
se fosse mendiga, acordava cedo.”
“Mas
você não é mendiga, não tem a menor ideia do que é ser mendiga.
Tem até automóvel.”
“Aquele
fusca velho?”
“É
um automóvel, não é? Não gostei do jeito como você falou que os
mendigos também gostam de acordar tarde.”
“Não
gostou por quê?”
“Você
sabe que acordo tarde, eu contei para você. Mas acordo tarde porque
tenho insônia. Desde que o meu marido morreu, eu sofro de insônia.
Eu contei para você.”
“Não
me lembro disso, sinceramente.”
“E
também não gostei da maneira como você balançava a cabeça quando
eu dava as esmolas. Você é contra dar esmolas?”
“Sou.”
Maria
de Lourdes apressou o passo.
“Estou
atrasada, desculpe se não acompanho você sei que o seu reumatismo
não deixa você andar direito, mas estou com pressa.”
“Não
é reumatismo”, disse Eduiges, mas Maria de Lourdes continuou
andando na frente sem virar o rosto.
Maria
de Lourdes chegou cansada ao prédio em que as duas moravam. Havia
muito tempo não se sentia tão esgotada, mas praticamente correra
pela rua para não ter que subir com Eduiges no elevador. Mulher
desalmada e egoísta, a Eduiges, não dava esmolas mas no
supermercado enchia o carrinho de filé mignon, biscoitinhos
importados e latas de cerveja. Era por causa de pessoas como Eduiges
que o mundo andava daquela maneira.
Maria
de Lourdes almoçou a comida que sobrara do jantar da véspera, um
pedaço de frango grelhado, uma concha de feijão, que cozinhara em
uma panela de pressão em quantidade que durava a semana toda, arroz
e uma salada de alface e cebola. Uma comida sem sal, pois sofria de
pressão alta. Maria de Lourdes comia pouco. Como para viver, não
vivo para comer, ela gostava de dizer, repetindo o que o falecido
marido dizia. O marido morrera de câncer, mas ela não gostava de
pensar nisso. Todo ano, no dia de Finados ia ao cemitério e colocava
umas flores na sepultura dele.
Já
se preparava para deitar quando ouviu a campainha da porta tocar.
Olhou pelo olho mágico viu que era Eduiges. Não vou deixar essa
mulher entrar, não quero falar com ela, pensou Maria de Lourdes.
“Por
favor, abra a porta, quero fazer as pazes”, disse Eduiges.
Maria
de Lourdes abriu a porta.
“Vim
pedir desculpas”, disse Eduiges. “Posso entrar?”
“Entra.”
As
duas ficaram frente a frente, constrangidas.
“Não
vamos brigar, somos amigas há muito tempo. Você ia sair?”
“Você
sabe que eu ia dormir. Sempre tiro uma soneca depois do almoço. Você
sabe muito bem.”
“Estou
pedindo desculpas. Me dá um abraço. Não podemos virar duas
implicantes, como a Cidinha.”
A
Cidinha era uma solteirona que morava no sexto andar, mais nova do
que elas e detestada por ambas.
“Está
desculpada” disse Maria de Lourdes, mas não deu o abraço pedido
por Eduiges. “Eu também peço desculpas, sei que você não tem
reumatismo e sim uma artrose no joelho.”
Reumatismo
era um nome feio, coisa de gente velha. Artrite também não era uma
boa palavra, surge na deformação, outro sinal de velhice. Já
artrose, porém, entre elas, não tinha essa conotação, jogadores
de futebol tinham artrose, segundo Eduiges. As duas detestavam ser
chamadas de velhas, afinal tinham apenas setenta anos, o cinema
estava cheio de atores e atrizes com setenta anos.
“Essa
artrose está acabando comigo, dirigir está cada vez mais difícil,
acho que vou vender meu carro”, disse Eduiges. Ela estava
exagerando um pouco e não pretendia vender o carro, mas achou que
contando aquilo Maria de Lourdes amansava um pouco mais. O que na
verdade aconteceu. Maria de Lourdes ficou amável e serviu um
cafezinho da garrafa térmica enquanto as duas conversavam sentadas
nas poltronas da sala. Eduiges tomou o café, que estava morno e
quase intragável, sem fazer careta. Não falaram de esmolas nem de
mendigos, conversaram sobre a novela das oito. As novelas estavam
ficando cada vez piores, só falavam em sexo, até incesto havia. A
opinião das duas era idêntica, a conversa foi longa e animada,
ainda que Maria de Lourdes tivesse sido privada da sua soneca da
tarde.
No
domingo seguinte, depois de dar as suas esmolas, Maria de Lourdes foi
para casa notando que o número de pedintes havia mesmo aumentado,
não apenas em torno da igreja. Eles agora se espalhavam ao longo da
rua, sentados ou deitados na porta das lojas comerciais, fechadas
naquele dia dedicado ao descanso e à oração. Enquanto caminhava
pela rua, passou em frente a muitos mendigos que lhe pediam uma
caridade, alguns imploravam, estendendo-lhe as mãos, outros apenas
pediam com uma voz sumida sem fazer nenhum gesto, como se soubessem
que sua súplica não seria atendida. Seu coração doía de tristeza
por não poder ajudar mais aqueles infelizes. Quando chegou em casa,
apesar de estar em jejum, pois havia comungado naquele domingo, Maria
de Lourdes não conseguiu almoçar.
Seu
marido, modesto funcionário público, lhe deixara uma pequena
pensão, além do apartamento de quarto e sala onde morava. Mas
durante a semana, em vez de cinco, Maria de Lourdes separou dez notas
de um real para levar para a igreja no domingo seguinte.
No
meio da semana, Maria de Lourdes e Eduiges se encontraram no
elevador.
“Mandei
uma carta para o jornal pedindo providências às autoridades”
disse Eduiges. “O número de mendigos na rua aumenta todo dia, cada
quarteirão tem um monte deles, você não dá um passo sem aparecer
alguém pedindo uma esmola. As autoridades ficam de braços cruzados,
a gente paga imposto, o IPTU aumenta todo ano, não sei para onde vai
esse dinheiro, o governo não faz nada. E quem tem que fazer é o
governo. Não adianta a gente ficar dando esmolas.”
“Vou
continuar dando” disse Maria de Lourdes. “Eu faço a minha
parte.”
“Mas
isso não adianta nada. E tem mendigo que explora a boa-fé dos
outros. Sabe aquela mulher cheia de filhos, uma que tem sempre um
bebê no colo e que só coloca o bebê no peito fingindo que dá de
mamar na hora em que as pessoas saem da missa com o coração mole,
sabe qual é? Me garantiram que as crianças são todas alugadas.”
“Não
quero conversar sobre isso, Eduiges. A gente vai acabar brigando
novamente.”
Na
missa de domingo, as dez notas de Maria de Lourdes esgotaram-se
rapidamente. Na volta para casa ela se sentiu impotente ante o rogo
de tantos infelizes. Felizmente Eduiges não apareceu naquele dia.
Mas
vizinhos sempre acabam se encontrando.
“Olha,
não quero chatear você, mas eu estava conversando com a Cidinha e
ela também acha que dar esmolas só faz aumentar o número de
mendigos aqui no bairro.”
“Mas
você detesta a Cidinha. Agora está de trancinha com ela? Falando
mal de mim?”
“Nós
não estávamos falando de você. Falávamos dos mendigos que invadem
o bairro no domingo. Você não é nenhuma boba, devia olhar com mais
atenção para os mendigos, muitos deles, homens e mulheres, são
fortes, mas não querem trabalhar, é mais fácil ganhar a vida
pedindo esmolas. E aqueles garotos que vivem em volta deles são
assaltantes, um dia vão levar sua bolsa.”
“O
que carrego na bolsa quando vou à missa é para eles mesmos, são
uns miseráveis.”
“Claro
que existem pessoas que são pobres e não podem trabalhar ou não
conseguem arranjar emprego, mas há outras maneiras de ajudar essa
gente. Dar esmola é mais fácil e a gente fica com a consciência em
paz, mas isso não adianta nada.”
“Você
odiava a Cidinha.”
“Eu
nunca disse que odiava a Cidinha.”
“E
agora bastou essa idiota dizer que dar esmola não é uma coisa boa
para você jogar isso na minha cara, sabendo que eu dou esmolas.”
“Sempre
fui contra esse tipo de caridade. E a Cidinha não é nenhuma idiota,
é professora aposentada. Ela pode ser um pouco presunçosa, mas sabe
o que diz.”
“Pois
eu nunca ouvi burrice tão grande na minha vida. Você e sua nova
amiguinha, aquela nojenta, querem dizer que eu sou culpada pelo
aumento de mendigos na rua? Você vai fazer o quê, na igreja? Devia
pedir perdão pelos seus maus pensamentos. Porque você só tem maus
pensamentos na cabeça e no coração, você despreza os pobres. Você
é uma pessoa má. Por favor, não fala mais comigo, não me dirija
mais a palavra.”
As
duas mulheres, depois disso, evitavam se encontrar e não se
cumprimentavam quando isso ocorria.
Maria
de Lourdes gostaria de levar para a igreja, em vez de dez notas, umas
vinte ou trinta, mas realmente não tinha dinheiro para isso, o
condomínio aumentava todo mês, o IPTU, a taxa de incêndio, o
telefone, a luz elétrica, tudo aumentava.
No
domingo, levou as dez notas de um real para a igreja. Teria que
economizar na segunda-feira, quando fosse ao supermercado, aquele
tinha sido um mês difícil, mas não ia deixar de dar as suas
esmolas.
Depois
da missa, Maria de Lourdes distribuiu na rua as notas entre os
mendigos. Sim, eles eram cada vez em maior número e ela se sentiu
desanimada ao novamente constatar aquela situação. Depois, num
impulso súbito, resolveu ficar de longe observando dissimuladamente
a mulher cheia de filhos, aquela que carregava o bebê no colo. Maria
de Lourdes percebeu então que as crianças não podiam ser todas
dela, nem sequer eram parecidas umas com as outras. Antes, por pudor,
como as outras pessoas que frequentavam a igreja, evitava observar a
mendiga dando de mamar, mas agora percebia que tudo era fingimento. A
sua irmã, que era mãe solteira, morara com ela durante algum tempo,
naquela época o seu marido ainda estava vivo, e Maria de Lourdes,
que não tivera filhos apesar de desejar tanto, sempre observava,
fascinada, a irmã dando de mamar. Nunca esquecera aqueles momentos,
o ar de felicidade na cara da irmã, a maneira de ela segurar o bebê,
o rosto sôfrego da criança sugando o peito, lembrava de tudo como
se tivesse sido ontem. E aquela mulher não estava amamentando o
bebê, a criança nem era um bebê em idade de mamar, devia estar com
a barriga cheia, apenas encostava o rosto no peito que lhe era
oferecido.
E
outra coisa a incomodou: sempre que punham uma esmola na cesta que
mantinha à sua frente, a mendiga sorria, agradecendo, um sorriso
largo que mostrava todos os dentes, e naquele dia Maria de Lourdes
notou que os dentes dela eram limpos, como os de alguém que os
escovava sempre depois das refeições. Se havia uma coisa que Maria
de Lourdes observava nos outros era os dentes, sempre tivera uma
grande preocupação com os seus dentes, mas eles nunca haviam ficado
brancos e brilhantes como os daquela mendiga, nem mesmo quando os
escovava furiosamente com bicarbonato de sódio. E aquela mendiga
exibia uma dentadura deslumbrante de artista de cinema.
Foi
para casa andando lentamente, infeliz. Naquele dia horrível,
percebeu o cego olhando de esguelha para dentro da lata que sacudia
pedindo as esmolas. E a preta gorda era forte e saudável, podia
trabalhar de faxineira, emprego de faxineira não faltava. Talvez a
Eduiges tivesse razão, eram todos uns farsantes. A raiva que sentiu
pelos mendigos que a enganavam e por ela mesma sufocou de tristeza o
seu coração. Tenho que pedir perdão a Deus por esses maus
pensamentos, murmurou, infeliz.
Na
porta do prédio onde morava, deparou com Eduiges, que sorriu, como
se quisesse fazer as pazes.
“Sai
da minha frente, sua desgraçada. Eu te odeio, ouviu, eu te odeio”
disse Maria de Lourdes, empurrando Eduiges.
Foi
para a escada, apressada, não queria que Eduiges entrasse com ela no
elevador, a proximidade da outra lhe faria mal. Subiu os degraus
correndo, pedindo perdão a Deus, mas antes de chegar ao andar do seu
apartamento desmaiou e rolou pelas escadas abaixo.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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