segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O atroz redentor Lazarus Morell

A CAUSA REMOTA

Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas sentiu muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos v a importação de negros que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos infinitos fatos: os blues de Handy, o êxito alcançado em Paris pelo pintor e doutor uruguaio dom Pedro Figari, a boa prosa rústica do também uruguaio dom Vicente Rossi, a dimensão mitológica de Abraham Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra de Secessão, os três bilhões e trezentos milhões gastos em pensões militares, a estátua do imaginário Falucho, a admissão do verbo linchar na décima terceira edição do Dicionário da Academia Espanhola, o impetuoso filme Aleluia, a fornida carga de baioneta comandada por Soler à frente de seus Pardos y Morenos no Cerrito, a graça da senhorita de Tal, o negro que assassinou Martín Fierro, a deplorável rumba “El manisero”, o napoleonismo preso e encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pelo facão do papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe.
E mais: a criminosa e magnífica existência do atroz redentor Lazarus Morell.

O LUGAR

O Pai das Águas, o Mississippi, o rio mais extenso do mundo, foi o digno teatro desse incomparável canalha. (Álvarez de Pineda descobriu-o e seu primeiro explorador foi o capitão Hernando de Soto, antigo conquistador do Peru, que distraiu os meses de prisão do Inca Atahualpa, ensinando-lhe o jogo de xadrez. Morreu e deram-lhe por sepultura suas águas.)
O Mississippi é rio de peito largo; é um infinito e obscuro irmão do Paraná, do Uruguai, do Amazonas e do Orenoco. É um rio de águas mulatas; mais de quatrocentos milhões de toneladas de lama insultam anualmente o golfo do México, descarregadas por ele. Tanta sujeira venerável e antiga construiu um delta, onde os gigantescos ciprestes-dos-pântanos crescem dos despojos de um continente em perpétua dissolução, e onde labirintos de barro, de peixes mortos e de juncos dilatam as fronteiras e a paz de seu fétido império. Mais acima, na altura do Arkansas e do Ohio, alongam-se também as terras baixas. Habita-as uma estirpe amarelenta de homens esquálidos, propensos à febre, que olham com avidez as pedras e o ferro, porque entre eles não há mais que areia e lenha e água turva.

OS HOMENS

Em princípios do século XIX (a data que nos interessa) as vastas plantações de algodão que havia nas margens eram trabalhadas pelos negros, de sol a sol. Dormiam em cabanas de madeira, sobre o chão de terra. Fora da relação mãe-filho, os parentescos eram convencionais e turvos. Nomes tinham, mas podiam prescindir de sobrenomes. Não sabiam ler. Sua enternecida voz de falsete cantarolava um inglês de vogais lentas. Trabalhavam em filas, curvados sob o rebenque do capataz. Fugiam, e homens de barba comprida saltavam sobre bonitos cavalos e fortes cães farejadores os rastreavam.
A um sedimento de esperanças bestiais e medos africanos tinham agregado as palavras da Escritura: sua fé, por conseguinte, era a de Cristo. Cantavam graves e em grupos: Go down Moses. O Mississippi servia-lhes de magnífica imagem do sórdido Jordão.
Os proprietários daquela terra trabalhadora e daquelas negrarias eram senhores de cabelos longos, ociosos e ávidos, que habitavam amplos casarões com vista para o rio — sempre com um pórtico pseudogrego de pinho branco. Um bom escravo custava-lhes mil dólares e não durava muito. Alguns cometiam a ingratidão de adoecer e morrer. Era preciso arrancar daqueles seres instáveis o maior rendimento. Por isso os mantinham no campo desde o primeiro sol até o último; por isso exigiam das fazendas uma colheita anual de algodão ou tabaco ou açúcar. A terra, cansada e manuseada por aquela cultura impaciente, ficava em poucos anos exaurida: o deserto confuso e barrento metia-se nas plantações. Nas chácaras abandonadas, nos subúrbios, nos canaviais compactos e nos lodaçais abjetos moravam os poor whites, a canalha branca. Eram pescadores, caçadores eventuais, ladrões de cavalo. Costumavam mendigar dos negros pedaços de comida roubada e mantinham em sua prostração um orgulho: o do sangue sem mancha, sem mistura. Lazarus Morell foi um deles.

O HOMEM

Os daguerreótipos de Morell que as revistas americanas costumam publicar não são autênticos. Essa carência de efígies genuínas de um homem tão memorável e famoso não deve ser casual. É verossímil supor que Morell tenha se negado à placa polida; essencialmente para não deixar rastros inúteis e, de passagem, para alimentar seu mistério… Sabemos, no entanto, que não foi favorecido na juventude e que os olhos próximos demais e os lábios lineares não predispunham a seu favor. Os anos, depois, conferiram-lhe a peculiar majestade que têm os canalhas encanecidos, os criminosos com sorte e impunes. Era um antigo cavalheiro do Sul, em que pesem a infância miserável e as afrontas da vida. Não desconhecia as Escrituras e pregava com singular convicção. “Eu vi Lazarus Morell no púlpito”, anota o dono de uma casa de jogo em Baton Rouge, Louisiana, “e escutei suas palavras edificantes e vi as lágrimas acudirem a seus olhos. Eu sabia que era um adúltero, um ladrão de negros e um assassino perante o Senhor, mas também meus olhos choraram.”
Outro bom testemunho dessas efusões sagradas é o que o próprio Morell subministra. “Abri ao acaso a Bíblia, dei com um versículo conveniente de São Paulo e preguei uma hora e vinte minutos. Também não desperdiçaram esse tempo Crenshaw e os companheiros, que levaram com eles todos os cavalos da audiência. Foram vendidos no estado do Arkansas, exceto um avermelhado muito brioso que reservei para meu uso particular. Agradou também a Crenshaw, mas fiz ver a ele que não lhe servia.”

O MÉTODO

Os cavalos roubados num estado e vendidos noutro foram só uma digressão na carreira delinquente de Morell, mas prefiguraram o método que agora lhe garantiria um bom lugar numa História Universal da Infâmia. Esse método é único, não apenas pelas circunstâncias sui generis que o determinaram, mas também pela abjeção que requer, por seu fatal manejo da esperança e pelo desenvolvimento gradual, semelhante à atroz evolução de um pesadelo. Al Capone e Bugs Moran operam com ilustres capitais e metralhadoras servis numa grande cidade, mas o negócio deles é vulgar. Disputam entre si um monopólio, isso é tudo… Quanto ao número de homens, Morell chegou a comandar uns mil, todos juramentados. Duzentos integravam o Alto Conselho, e este promulgava as ordens que os restantes oitocentos cumpriam. O risco recaía sobre os subalternos. Em caso de rebelião, eram entregues à justiça ou atirados à correnteza do rio de águas pesadas, com uma pedra bem segura nos pés. Frequentemente eram mulatos. Sua missão de facínoras era a seguinte:
Percorriam — com algum luxo momentâneo de anéis, para inspirar respeito — as vastas plantações do Sul. Escolhiam um negro infeliz e propunham-lhe a liberdade. Diziam-lhe que fugisse do patrão, para ser vendido por eles uma segunda vez, em alguma fazenda distante. Dariam então a ele uma porcentagem do preço da venda e o ajudariam em outra evasão. Seria conduzido depois a um estado livre. Dinheiro e liberdade, dólares ressoantes de prata com liberdade, que melhor tentação podiam lhe oferecer? O escravo atrevia-se a uma primeira fuga.
O caminho natural era o rio. Uma canoa, o porão de um vapor, uma barcaça, uma grande balsa como um céu com uma casinha na ponta ou com elevadas cobertas de lona; o lugar não importava, bastava saber-se em movimento, e seguro sobre o rio incansável… Vendiam-no em outra plantação. Fugia de novo pelos canaviais ou pelas barrancas. Então os terríveis benfeitores (de quem ele já começava a desconfiar) aduziam gastos obscuros e declaravam que tinham de vendê-lo uma última vez. Na volta lhe dariam a porcentagem das duas vendas e a liberdade. O homem se deixava vender, trabalhava um tempo e desafiava na última fuga o risco dos cães farejadores e dos açoites. Regressava sangrando, suando, em desespero e com sono.

A LIBERDADE FINAL

Falta considerar o aspecto jurídico desses fatos. O negro não era posto à venda por sicários de Morell até que o dono primitivo não tivesse denunciado sua fuga e oferecido uma recompensa a quem o encontrasse. Qualquer um então podia retê-lo, de sorte que sua venda ulterior era um abuso de confiança, não um roubo. Recorrer à justiça civil era um gasto inútil, porque os danos nunca eram pagos.
Tudo isso era muito tranquilizador, mas não para sempre. O negro podia falar; o negro, por mero agradecimento ou felicidade, era capaz de falar. Uns jarros de uísque de centeio no prostíbulo de El Cairo, Illinois, onde o filho de cadela nascido escravo iria malgastar o dinheiro que eles não tinham por que lhe dar, e vazava o segredo. Naqueles anos, um Partido Abolicionista agitava o Norte, uma turba de loucos perigosos que negavam a propriedade e pregavam a liberdade dos negros, incitando-os a fugir. Morell não ia deixar-se confundir por aqueles anarquistas. Não era um yankee, era um branco do Sul filho e neto de brancos, e esperava retirar-se dos negócios e ser um cavalheiro e possuir suas léguas de algodoal e suas curvadas filas de escravos. Com sua experiência, não estava para riscos inúteis.
O fugitivo esperava a liberdade. Então os mulatos nebulosos de Lazarus Morell transmitiam uns aos outros uma ordem que não podia passar de uma senha e o livravam da vista, do ouvido, do tato, do dia, da infâmia, do tempo, dos benfeitores, da misericórdia, do ar, dos cães, do universo, da esperança, do suor e dele mesmo. Um tiro, uma punhalada baixa ou um golpe, e as tartarugas e os bagres do Mississippi recebiam a última informação.

A CATÁSTROFE

Servido por homens de confiança, o negócio tinha de prosperar. Em princípios de 1834, uns setenta negros já haviam sido emancipados por Morell, e outros se dispunham a seguir aqueles felizes precursores. A zona de operações era maior e era preciso admitir novos afiliados. Entre os que prestaram o juramento havia um rapaz, Virgil Stewart, do Arkansas, que se destacou desde logo pela crueldade. Esse rapaz era sobrinho de um cavalheiro que tinha perdido muitos escravos. Em agosto de 1834, rompeu o juramento e delatou Morell e os demais. A casa de Morell em Nova Orleans foi cercada pela justiça. Morell, por uma imprevidência ou um suborno, conseguiu escapar.
Três dias se passaram. Morell ficou escondido esse tempo numa casa antiga, de pátios com trepadeiras e estátuas, da rua Toulouse. Parece que se alimentava muito pouco e que costumava percorrer descalço os grandes aposentos obscuros, fumando charutos pensativos. Por um escravo da casa remeteu duas cartas à cidade de Natchez e outra a Red River. No quarto dia entraram na casa três homens e ficaram discutindo com ele até o amanhecer. No quinto, Morell levantou-se quando escurecia e pediu uma navalha e se barbeou cuidadosamente. Vestiu-se e saiu. Atravessou com lenta serenidade os subúrbios do Norte. Já em pleno campo, beirando as terras baixas do Mississippi, caminhou mais depressa.
Seu plano era de uma coragem bêbada. Era o de aproveitar os últimos homens que ainda lhe deviam reverência: os serviçais negros do Sul. Eles tinham visto seus companheiros fugir e não os viram voltar. Acreditavam, portanto, em sua liberdade. O plano de Morell era uma sublevação total dos negros, a tomada e o saque de Nova Orleans e a ocupação de seu território. Morell, decaído e quase desfeito pela traição, meditava uma resposta continental: uma resposta em que o criminoso era exaltado até a redenção e a história. Dirigiu-se com esse fito a Natchez, onde era mais profunda sua força. Transcrevo sua narração daquela viagem:

Caminhei quatro dias antes de conseguir um cavalo. No quinto parei perto de um riacho para me abastecer de água e fazer a sesta. Eu estava sentado num tronco, olhando o caminho andado até então, quando vi um cavaleiro se aproximar num cavalo escuro de boa estampa. Logo que o avistei, decidi tirar-lhe o cavalo. Preparei-me, apontei-lhe uma bonita pistola de tambor e dei-lhe ordem de apear. Executou-a e eu peguei com a esquerda as rédeas e lhe mostrei o riacho, ordenando-lhe que fosse caminhando na frente. Andou umas duzentas varas e parou. Ordenei-lhe que se desvestisse. Disse-me: “Já que decidiu me matar, me deixe rezar antes de morrer”. Respondi-lhe que não tinha tempo para ouvir suas orações. Caiu de joelhos e lhe desfechei um tiro na nuca. Abri de um talho a sua barriga; arranquei-lhe as vísceras e afundei-o no riacho. Depois revistei os bolsos e encontrei quatrocentos dólares e trinta e sete centavos e uma quantidade de papéis que não demorei em vistoriar. Suas botas eram novas, flamejantes, e ficaram bem em mim. As minhas, que estavam muito gastas, afundei no riacho.
Assim obtive o cavalo que precisava para entrar em Natchez.

A INTERRUPÇÃO

Morell capitaneando povoações negras que sonhavam enforcá-lo, Morell enforcado por exércitos negros que sonhava capitanear — pesa-me confessar que a história do Mississippi não aproveitou essas oportunidades suntuosas. Contrariamente a toda justiça poética (ou simetria poética), nem sequer o rio de seus crimes foi sua tumba. No dia 2 de janeiro de 1835, Lazarus Morell faleceu de uma congestão pulmonar no hospital de Natchez, onde havia se internado com o nome de Silas Buckley. Um companheiro de enfermaria o reconheceu. Nos dias 2 e 4, os escravos de certas plantações quiseram sublevar-se, mas foram reprimidos sem maior efusão de sangue.

Jorge Luís Borges, in História universal da infâmia

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