Faz
parte da comoção que cerca a obra de Kafka a circunstância de ela
não ter sido destruída por Max Brod, amigo e testamenteiro do
escritor. Há um pouco de drama em torno disso. Em primeiro lugar
porque ele exigiu de Brod a destruição de tudo que não estivesse
publicado, no que felizmente (para quem gosta de literatura, é
claro) foi desobedecido. Em segundo porque Kafka cuidou pessoalmente
da publicação de sete livros seus, entre os quais A metamorfose.
São volumes fininhos, é verdade, mas não é arbitrário supor que
eles valem mais, bem mais, que um número quase inacreditável de
obras completas. Tudo indica que a brevidade e a concisão às vezes
fazem milagres. De todo modo, neste mundo dialético o contrário tem
vigência e razão de ser: consta que Guimarães Rosa — que lia e
anotava em alemão frases de Kafka — afirmava, com uma lambada de
ironia, que não entendia por que se dava tanta importância a livros
que não ficavam em pé... como os de Jorge Luis Borges, primeiro
tradutor de Kafka na América Latina.
Mas
o que realmente importa nessa história é ressaltar que o prosador
Franz Kafka, o mais enxuto, problemático e surpreendente discípulo
confesso de Flaubert no século XX, tem muito de poeta, o que o termo
alemão Dichter expressa com uma exatidão (e amplitude) que
falta ao português. Sua ficção — seja como for nem um pouco
lírica — tem como alvo fazer o leitor contemporâneo, alienado de
si mesmo e da realidade que o cerca, ficar mareado em terra firme,
infligindo-lhe angústia e sofrimento, como um machado que golpeia
sem parar o mar congelado que existe em cada um de nós.
Esse
propósito é declarado e as imagens aqui empregadas são do próprio
escritor. Num ensaio complexo e brilhante apesar do título modesto —
“Anotações sobre Kafka” —, Adorno diz que os textos
kafkianos, que chama de “protocolos herméticos”, são compostos
com a deliberação de encurtar a distância “entre eles e sua
vítima”. Isso significa que o leitor, habituado à placidez
ilusória de sua poltrona, vive a experiência de quem é atropelado
por uma locomotiva na técnica tridimensional do cinema, que agora
também serve para cientistas examinarem a superfície de Marte.
Evidentemente
os recursos verbais que tornam possível esse resultado são raros e
sutis, e é em nome deles que se dá o cruzamento excepcional de
poeta e ficcionista. Aliás Kafka sustenta com todas as letras que o
conteúdo e a forma da frase devem coincidir de maneira precisa. Sua
fé flaubertiana na linguagem usada com discernimento e
responsabilidade o faz afirmar que “o sentimento infinito permanece
tão infinito nas palavras como era no coração”. Para ele a
palavra justa tem vida própria, que requer a maior vigilância, e o
empenho para captá-la, ou capturá-la, é descrito com o humor e a
agilidade típicos de quem conhece por dentro aquilo de que está
falando: “Meu corpo inteiro me adverte diante de cada palavra; cada
palavra, antes de se deixar escrever por mim, olha primeiro para
todos os lados”. Em Kafka, como em Drummond, as palavras são
fortes como o javali; e quem como eles se quer como artista, luta com
elas mal rompe a manhã.
A
matéria-prima para essa lúcida elaboração de estilo é o alemão
de Praga, mais exatamente o alemão cartorial da burocracia na época
em que o escritor viveu e escreveu e que coincide, em linhas gerais,
com o declínio e a queda do império austro-húngaro e os anos de
consolidação da ex-república da Tchecoslováquia. O rendimento
artístico que ele retirou desse idioma é insuperável e pode ser
avaliado ao vivo em extensas passagens de O processo e O
castelo. Klaus Wagenbach acertou na mosca quando definiu o alemão
de Praga como uma linguagem de cerimônia subvencionada pelo
Estado. Kafka tinha plena consciência do que havia nela de seco
e desajeitado, e decidiu aproveitá-la, em vez de criar uma língua
própria e postiça — como, entre outros, a do seu amigo Brod.
Talento literário é um problema. Mas ele não ficou só nisso.
Sabendo que “o alemão das nossas mães não alemãs ainda soa nos
nossos ouvidos” e que “no alemão só os dialetos e fora deles o
Hochdeutsch mais pessoal é que se mantêm vivos”, Kafka,
conhecedor profundo de Goethe e Kleist, escolheu, para trabalhar,
esse alemão oficial de linhagem culta. Transformou-se com isso num
dos grandes clássicos da língua alemã de todos os tempos. Não é
pouco para quem, ainda por cima, segundo o poeta Auden, representa,
em relação ao nosso tempo, o que Dante, Shakespeare e Goethe
representaram para o deles.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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