quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Kafka e o processo verbal

Faz parte da comoção que cerca a obra de Kafka a circunstância de ela não ter sido destruída por Max Brod, amigo e testamenteiro do escritor. Há um pouco de drama em torno disso. Em primeiro lugar porque ele exigiu de Brod a destruição de tudo que não estivesse publicado, no que felizmente (para quem gosta de literatura, é claro) foi desobedecido. Em segundo porque Kafka cuidou pessoalmente da publicação de sete livros seus, entre os quais A metamorfose. São volumes fininhos, é verdade, mas não é arbitrário supor que eles valem mais, bem mais, que um número quase inacreditável de obras completas. Tudo indica que a brevidade e a concisão às vezes fazem milagres. De todo modo, neste mundo dialético o contrário tem vigência e razão de ser: consta que Guimarães Rosa — que lia e anotava em alemão frases de Kafka — afirmava, com uma lambada de ironia, que não entendia por que se dava tanta importância a livros que não ficavam em pé... como os de Jorge Luis Borges, primeiro tradutor de Kafka na América Latina.
Mas o que realmente importa nessa história é ressaltar que o prosador Franz Kafka, o mais enxuto, problemático e surpreendente discípulo confesso de Flaubert no século XX, tem muito de poeta, o que o termo alemão Dichter expressa com uma exatidão (e amplitude) que falta ao português. Sua ficção — seja como for nem um pouco lírica — tem como alvo fazer o leitor contemporâneo, alienado de si mesmo e da realidade que o cerca, ficar mareado em terra firme, infligindo-lhe angústia e sofrimento, como um machado que golpeia sem parar o mar congelado que existe em cada um de nós.
Esse propósito é declarado e as imagens aqui empregadas são do próprio escritor. Num ensaio complexo e brilhante apesar do título modesto — “Anotações sobre Kafka” —, Adorno diz que os textos kafkianos, que chama de “protocolos herméticos”, são compostos com a deliberação de encurtar a distância “entre eles e sua vítima”. Isso significa que o leitor, habituado à placidez ilusória de sua poltrona, vive a experiência de quem é atropelado por uma locomotiva na técnica tridimensional do cinema, que agora também serve para cientistas examinarem a superfície de Marte.
Evidentemente os recursos verbais que tornam possível esse resultado são raros e sutis, e é em nome deles que se dá o cruzamento excepcional de poeta e ficcionista. Aliás Kafka sustenta com todas as letras que o conteúdo e a forma da frase devem coincidir de maneira precisa. Sua fé flaubertiana na linguagem usada com discernimento e responsabilidade o faz afirmar que “o sentimento infinito permanece tão infinito nas palavras como era no coração”. Para ele a palavra justa tem vida própria, que requer a maior vigilância, e o empenho para captá-la, ou capturá-la, é descrito com o humor e a agilidade típicos de quem conhece por dentro aquilo de que está falando: “Meu corpo inteiro me adverte diante de cada palavra; cada palavra, antes de se deixar escrever por mim, olha primeiro para todos os lados”. Em Kafka, como em Drummond, as palavras são fortes como o javali; e quem como eles se quer como artista, luta com elas mal rompe a manhã.
A matéria-prima para essa lúcida elaboração de estilo é o alemão de Praga, mais exatamente o alemão cartorial da burocracia na época em que o escritor viveu e escreveu e que coincide, em linhas gerais, com o declínio e a queda do império austro-húngaro e os anos de consolidação da ex-república da Tchecoslováquia. O rendimento artístico que ele retirou desse idioma é insuperável e pode ser avaliado ao vivo em extensas passagens de O processo e O castelo. Klaus Wagenbach acertou na mosca quando definiu o alemão de Praga como uma linguagem de cerimônia subvencionada pelo Estado. Kafka tinha plena consciência do que havia nela de seco e desajeitado, e decidiu aproveitá-la, em vez de criar uma língua própria e postiça — como, entre outros, a do seu amigo Brod. Talento literário é um problema. Mas ele não ficou só nisso. Sabendo que “o alemão das nossas mães não alemãs ainda soa nos nossos ouvidos” e que “no alemão só os dialetos e fora deles o Hochdeutsch mais pessoal é que se mantêm vivos”, Kafka, conhecedor profundo de Goethe e Kleist, escolheu, para trabalhar, esse alemão oficial de linhagem culta. Transformou-se com isso num dos grandes clássicos da língua alemã de todos os tempos. Não é pouco para quem, ainda por cima, segundo o poeta Auden, representa, em relação ao nosso tempo, o que Dante, Shakespeare e Goethe representaram para o deles.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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