Eu
estava com a Júlia no Parque Ibirapuera. Júlia, cerca de sete anos
depois, se mudaria para Berlim e me ligaria um dia, “estou com
câncer, estou com medo, vem me ver”. Não fui ver a Júlia porque
ensaiei inúmeras vezes comprar as passagens e não consegui. Na hora
de “finalizar a compra”, eu sentia o baço, os pulmões, os rins,
os ossos da nuca, o dedão. Uma conjunção de pedacinhos latejando a
palavra “não”. Um estado hipervigilante por (e de) todo o corpo
traduzia o que o sangue dizia ao passar pelas veias: “não.
Não saia de casa!”.
Avião
mais viagem mais amiga doente soaram como um tridente demoníaco e eu
travei. Não era apenas o problema de ter que me dopar (o que também
gera um medo absoluto: vai que me dá um AVC ou uma trombose?
Misturar Dramin e Rivotril no avião não deve ser bom, tem toda uma
questão da pressão lá dentro e esses remédios mexem com a pressão
arterial e tudo isso só piora porque também sofro de enxaquecas e
já tomei muito anticoncepcional, mas só faço viagens longas se
puder me dopar com Dramin e Rivotril, e de tentar equacionar esses
dois lados já me sinto ofegante e já estou passando muito mal e nem
comprei a passagem). Cheguei mesmo a discutir na terapia quanto eu
amava a minha amiga numa escala de zero a cem. Sendo zero “quem é
Júlia?” e cem “eu gerei esse bebê e dou minha vida por ele”.
Júlia
marcou oitenta e três pontos. O suficiente para classificá-la como
“amiga pra cacete, quase irmã e estou profundamente triste e
preocupada”, mas um número muito pequeno para que eu conseguisse
largar por míseros cinco dias todos os meus trabalhos e minha
cachorra e meu namorado e meu computador e minha TV e meu pilates e
minha terapia.
O
fóbico é um “tadinho” arrogante, o fóbico é um amigo de
merda. O fóbico é cheio de “meu isso e meu aquilo” porque essa
certezinha fantasiosa maluca de “possuir objetos e humanos e
animais e afazeres” lhe dá alguma garantia de que ele ainda
existe, de que não se desintegrou na última crise de pânico
(apesar de sua personalidade ter se dissolvido em milhares de
bolinhas de gude, como já narrei aqui).
Mas,
enfim, voltemos ao Parque Ibirapuera. Eu estava lá com a Júlia. Era
sábado e fazia sol e nós caminhávamos felizes. Eu sempre caminhava
feliz com a Júlia porque, apesar de a pontuação não ter batido os
pontos da irmandade consanguínea, gosto mais dela que de noventa e
nove por cento dos meus parentes. Foi quando uma criança passou de
bicicleta e gritou para outra criança em outra bicicleta: “tá,
mas em qual portão? Esse parque é enorme!”. Qual portão,
hein? Não adiantava marcar “te encontro no portão” porque a
criança A se perderia da criança B, pois tratava-se de um parque
enorme. A gente estava perto de qual portão? Automaticamente pensei,
e para esse pensamento tão velho conhecido bastam alguns milésimos
de segundo tão primitivos que são como bisavós do raciocínio: se
o parque é enorme e não se sabe ao certo qual o portão mais
próximo… se eu passar mal, demorarei muito para conseguir
sair daqui. E essa demora me levará a passar muito mal de fato e
morrer de vergonha antes de, talvez, vir a de fato falecer.
E
por que eu passaria mal numa linda manhã de sábado? Não sei, mas
já estava passando supermal. Motivo do óbito: de pensar que
morreria, morreu. Motivo do óbito: parque muito grande. Motivo do
óbito: não sabia qual era o portão mais próximo.
Deito
na grama, esparramada como uma bêbada em coma, mais branca que a
meia de Júlia. De onde estou agora, só vejo a meia dela. Ela
continua em pé, procurando ajuda. Levei uma porrada na nuca, um soco
na boca do estômago, um elefante sentou em meu peito, amarraram um
saco em minha cabeça. E nada disso de fato aconteceu. O corpo está
tão eletricamente preparado para correr uma maratona no deserto, que
só consigo ficar deitada, tanto estímulo derruba minha pressão a
níveis “falo enrolado e os dedos endurecem”. Eu gostaria de
dançar cancã no gelo e de voltar para o útero, ao mesmo tempo.
“Que foi, que foi, que foi?”, pergunta Júlia, entre o querer
rir, a vergonha profunda dos carinhas gatos que passam e nada fazem,
e o medo de ter que me carregar mesmo sendo magrinha e tímida.
Dois
anos depois, Júlia terminaria um namoro e ficaria muito deprimida. A
tristeza culminaria em sua primeira crise de pânico no trabalho,
numa reunião. Ela me ligaria à noite para explicar: “eu já tinha
feito xixi, mas tive a certeza que poderia fazer xixi de novo e que
não conseguiria conter mais nada em mim”. Mas, deitada ali na
grama do Ibirapuera, dois anos antes dessa conversa com Júlia, só
me restava explicar a ela: “sei que parece frescura, sei que você
não entende, mas é mais forte do que eu. Eu preciso de água, mas
não tenho um centavo”.
Júlia
também não tinha um centavo. Tínhamos resolvido dar uma caminhada
sem levar a bolsa. Hoje em dia não saio de casa sem dinheiro
(suficiente para que eu pague um taxista para me levar correndo a um
bom hospital — apesar de nunca ter precisado ir a um hospital por
causa disso), sem sal (pressão baixa), sem algum doce
(hipoglicemia), sem Rivotril (ando com uma cartela cheia para o caso
de precisar de vários para “me desligar da tomada em situação
bizarramente angustiante como ter que ficar sobrevoando minha casa
por horas porque a merda do avião estava sem ‘pouso confirmado’
devido ao tráfego intenso do horário”), sem Dramin (enjoo), sem
Dramin B6 (para quando não quero ficar com muito sono), sem Vonau
(enjoos mais intensos, “fodeu, acho que comi algo definitivamente
estragado e esse enjoo não é aquele de ‘se sentir mareado pela
vida’, é um enjoo sênior”), sem Dorflex (dores no pescoço me
dão enxaqueca que me dá enjoo que me dá pânico porque tenho medo
de vomitar), sem Magnésia Bisurada (acidez estomacal me faz pensar
em endoscopia e, tirando a parte que a injeção da endoscopia é a
única diversão para quem tem medo de drogas festivas, endoscopia me
dá muito medo) e sem Luftal (já fui internada para operar
apendicite e descobriram que eram gases, então não gostaria de
ficar nessa dúvida nunca mais), mas, naquela calma, bucólica e
fraternal manhã de sábado, eu ainda não havia aprendido a levar
minha bolsa com todas as coisas que me acalmam para todos os lugares,
ainda que seja o térreo para pegar e pagar a pizza.
Sem
dinheiro, sem bolsa e sem condições de me mover, vi um carrinho
vendendo água de coco e desejei morar dentro de um coco. Ele me
refrescaria, reporia meus sais minerais, meu açúcar. Ele era o soro
que algum ator global ensinava a fazer na TV, quando eu era criança,
para combater não lembro que doença tropical. Me soou caseiro, me
soou mamãe, me soou Jesus. Ordenei (a pessoa em pânico está
cagando para convenções sociais) que o homem do carrinho de água
de coco me desse um coco. Ele se negou. “Fiado só amanhã.” Mas
eu estava morrendo e não tinha dinheiro. Ele foi se afastando.
Pensei em mostrar o mamilo esquerdo, pedir a Júlia que mostrasse o
direito. Seriam dois peitos por uma água de coco. Júlia segurou no
braço do homem e disse, calma, feminina, doce: “então fica parado
aqui, alguém vai vir comprar água de coco, e eu vou pedir pra esse
alguém dar um pouquinho pra ela”. E apontou para a minha carcaça,
agora sentada na grama, pensando se os mendigos espalhados pelo país
não eram pessoas que jamais voltaram de suas crises de pânico.
O
bom homem desistiu de nos negar aquele néctar que custava dois reais
e nos ofereceu um copinho com um pouco da benfazeja água. Júlia
veio toda feliz me trazer o copo, pensando que eu tomaria a água de
coco e em segundos retornaria ao estado “a amiga que ela chamou pra
passear no parque, e não essa maluca chafurdando numa grama mijada
por uma imensa matilha de criaturas peludas de todas as classes
sociais”, mas, para sua ojeriza e impaciência, eu derramei a água
sobre minha cabeça. Até hoje não entendi direito o motivo, mas
estava tremendo tanto e com tanto calor no cérebro, que a coisa toda
aconteceu, de novo, mais rápido e mais forte que a razão.
Meia
hora depois eu andava qual um bailarino maltrapilho do clipe de
zumbis do Michael Jackson. Ainda sentia náuseas e medo, mas o pior
já tinha passado. Minha testa e bochechas e queixo estavam cobertos
de mini-insetos mortos e mini-insetos que lutavam pela vida. Todos
devidamente colados na água de coco que havia banhado meu vexame e
depois secado grudenta em minha pele. Júlia, que só dois anos
depois entenderia que “nem sempre uma vontade de mijar é real”,
me apressava e reclamava, “você precisa ver isso, aumentar as
consultas ao psiquiatra, não dá pra ficar assim passando mal do
nada”. Como assim, do nada? Fazia calor, aquele parque
estava lotado, aquele parque era enorme. Se essas não são coisas
terríveis, eu devo pertencer a outro planeta. Por isso o fóbico é
também um melancólico, um filho sem pátria. Marte nos expulsou sem
sequer termos conseguido fazer as malas.
Ela
está curada do câncer. Mesmo quando ainda estava doente, veio duas
vezes ao Brasil, ver os amigos. Mesmo quando ainda estava doente,
conheceu a Tailândia, a Índia, a Rússia. Eu ainda não conheço
Berlim.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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