Anos
após a morte da minha mãe e do meu pai, me questiono se de fato
minha mãe viveu o amor, mesmo no início do casamento. Não tenho
condições de emitir juízo moral, nem quero, mas me ponho a
refletir.
Uma
vez, minha mãe me disse que saiu de uma escravidão para entrar em
outra, referindo-se ao fato de ter deixado o trabalho de empregada
doméstica em São Paulo para casar e se tornar dona de casa. Essa
frase é de uma profundidade perturbadora.
De
fato, minha mãe cozinhou, lavou e passou a vida toda. Seus dias eram
trabalhar, seja cuidando da casa dos outros, seja cuidando da nossa
casa. Depois de casar, em vez de cumprir as ordens do patrão, ela
precisava realizar os desejos do meu pai. O feijão tinha que ser
feito na hora e temperado com linguiça e toucinho, ela não podia
fazer grandes quantidades e congelar. O arroz precisava estar bem
soltinho e temperado somente com alho, sem cebola. As camisas
precisavam estar extremamente bem passadas e alinhadas. Tudo seguia
um ritmo calculado e impositivo.
Talvez
seu casamento com meu avô tenha se baseado num sistema semelhante,
vó. Quando meu pai precisava pegar o turno da madrugada, minha mãe
acordava para servi-lo, mesmo quando estava doente, estafada ou
quando não sentia a mínima vontade. Enquanto separava os pães,
pegava a manteiga, talvez pensasse “eu tenho que fazer porque ele
já fez muito”. A sensação de gratidão imposta pela
subalternidade. Aquele amor veiculado pelos programas de tv — que
supostamente ajudam as pessoas pobres —, subordinado, que sempre
coloca a mulher numa posição de retribuição, de agradecimento. Na
primeira tentativa de libertação, porém, corre-se o risco de ser
taxada de ingrata.
Sabe,
vó, a dureza na sua casa fez com que minha mãe desejasse viver uma
vida diferente. Foram alguns anos vivendo no quarto de empregada até
aquele Carnaval em Santos, quando ela conheceu meu pai. Hoje penso se
minha mãe realmente se apaixonou à primeira vista ou se ela se
entregou ao primeiro olhar que se mostrou cúmplice, aos primeiros
ouvidos que a escutaram, às primeiras mãos consoladoras, aos
primeiros abraços que a afagaram — e chamou isso de amor. Ela
realmente pode ter amado perdidamente ou pode ter sonhado com o amor.
Pode ter se entregado não porque estava sentindo amor ou paixão,
mas porque o cenário criado é tão inebriante que a embriagou de
amor. A gente se apaixona por uma ideia de amor e a persegue a vida
inteira, se frustrando por viver apenas um esboço dela. A ideia,
porém, jamais nos abandona, mesmo causando dor. Será que foi isso
que aconteceu, vó? Não sei, não tive tempo de saber.
Uma
jovem mulher, sem a família por perto, sobrevivendo aos assédios do
patrão, sentindo-se solitária, pode ter se entregado e sonhado com
uma vida na qual alguém finalmente a protegeria. E aguentou tanta
coisa em busca desse sonho perdido. Tinha que provar que deu certo
para contradizer as más línguas.
Na
maioria das vezes, o amor não é apenas sentimento, mas também
ideologia. Condiciona-se o olhar, o sentir. Por que se ama a branca e
não a negra? Olhares condicionados e submissos a uma ideologia, à
melancólica valorização dos traços finos. É muito difícil
encontrar olhares sinceros e destreinados. Foram várias as vezes em
que vi minha mãe chorando por causa das traições do meu pai. Após
um tempo, eu não sei se as lágrimas caíam pelo adultério em si ou
pela destruição do sonho daquela moça de interior que só queria
ser amada pelo homem que conheceu em um baile de Carnaval.
Mesmo
sendo infeliz na vida a dois, quando o casamento terminou, minha mãe
ficou extremamente triste. Eu discordei da forma como aconteceu, já
que meu pai não lhe deu nenhum suporte financeiro, mas o divórcio
em si não me entristeceu. Eu fiquei triste porque minha mãe havia
criado uma ideia de relacionamento, acreditado na segurança do
matrimônio, na sua manutenção, permanência e imutabilidade. Ela
contava com meu pai para lhe trazer felicidade, vó. Foi assim que
aprendeu e viveu. Foi difícil pra ela lidar com as fofocas e ter que
enfrentar a doença sem um companheiro ao lado.
Meu
pai, por sua vez, idealizou uma mulher na cabeça dele e exigiu que a
esposa fosse exatamente como ele queria, deixando de enxergar quem
ela era de fato.
Não
é necessariamente o amor que prende, vó, é o hábito. O jantar no
sábado à noite para fugir do tédio, o almoço na casa da sogra no
domingo, a festa do amigo da filha mais nova. Coisas…
Ela
se sentia presa, incomodada, infeliz, mas preferia discutir porque o
som da tv estava muito alto. Ela reclamava de um quadro
milimetricamente torto, brigava porque não havia gostado do piso que
meu pai escolheu quando finalmente reformou a casa. Era melhor
discutir sobre o rasgo no sofá do que falar das mágoas acumuladas.
Parecia que eles discutiam por motivos fúteis, mas nada é trivial
quando se trata de um casamento cheio de não ditos e dores — nem
chorar por um desentendimento banal e extravasar em lágrimas as
frustrações de uma vida sem sentido. Nessas situações, o frívolo
é a superfície de algo muito profundo.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
Nenhum comentário:
Postar um comentário