Foi
na água mais calma que o homem se afogou.
– Provérbio
africano –
– Ele
está dentro do frigorífico.! É lá que o deve procurar.
Na
empresa de pesca todos falam aos gritos. O barulho do gerador abafa
as vozes e é aos berros que me avisam do paradeiro de meu pai. Não
preciso confirmar. Porque, no instante, meu velhote surge saindo da
grande câmara de gelo, frígido como uma posta de pescado. O que
estava fazendo? Visitava os frigoríficos para ver se ali podia dar
alojamento ao Avô Mariano.
– Mas,
pai, eu já rimo com a Avó Dulcineusa: o Avô aqui, junto com
corvina? Meu pai riu. Afinal, não seria onde ele sempre andou, com
corvinas de duas pernas, sereias de humana cauda? E dobrou
gargalhada. Eu que não levasse a sério, ele tinha vindo apenas
visitar um amigo que ali trabalhava. Ou duvidava eu do seu recto
pensar? Mas o que ele quer é evitar assunto sério. Apetece-lhe
baratear falas, sujar o peito de fumos, saltitar pupila numas moças.
– Ainda
não me puseram todo doido. Venha comigo ao bar do Tuzébio. Preciso
aquecer a goela.
Pelo
caminho, vou-lhe relatando o encontro com Ultímio. Meu pai reage com
fúria. Vocifera.
– Ultímio
é um satanhoco!
– Não
fale assim, pai. Ultímio é um nosso tio, temos que juntar a
família, num momento destes...
– Isso
é conversa coçada. Aqui chamamos essas falas de cuspo de vespa.
Eu
queria amolecer a pedra, mas não haveria água que chegasse. Eu que
não me desperdiçasse. Ultímio não merecia. Porque esse meu tio,
sua mulher e seus filhos se guiavam era por pressas e cobiças.
Queriam muito e depressa. E se sucediam aos colonos: olhavam uma
terra e já estavam pensando: quem dera fosse minha. Do que se sabe,
porém: a terra não tem posse. Não há dono vivente. Os únicos
fiéis proprietários são os mortos, esses que moram lá. Como o Avô
que estava prestes a tomar posse do chão.
– Um
satanhoco! Esse seu tio não passa de um satanhoco! Meu pai repisa as
imprecações gravíssimas que a nenhum irmão se infligem. É essa
raiva que me deixa em mistério. Há qualquer coisa que me escondem.
– O
que se passa aqui, pai?
– Aqui
não se passa nada. Em Luar-do-Chão nunca aconteceu coisa nenhuma.
– Não
me refiro à ilha. Refiro-me ao Tio Ultímio, a estes ódios que
devem ter explicação. Não me esconda nada, pai. Eu preciso saber.
– O
que se passa, meu filho, é droga. É isso que se passa.
– Droga?
– Estão
procurando droga, um carregamento de droga que foi entregue aqui e
desapareceu.
Era
sua suspeita, apenas. Mas ele tinha criado um sentido para tudo
aquilo. Que uns traficantes lá da cidade pensavam que o velho
Mariano sabia onde estava escondida a remessa. O Avô estaria fingido
de morto, só para não confessar.
– Desconfiam
que eu sei, concedi ajuda a meu pai.
– O
Avô nunca lhe falou de nada?
– Nunca.
Agora, ele está nesse estado, nem cá nem para lá, mas a mim ele
nunca confessou onde afundou a porcaria desse carregamento.
Quem
sabe o Avô estivesse assim, entre fronteiras, só para nos salvar?
Meu velho ainda se pergunta mais: aquele sacrifício dele, fingido de
mortalecido, não seria uma bondade para nos proteger dos malandrães?
Por sequência da ordem, necessitávamos primeiro era a confirmação
do falecimento de nosso patriarca. Por isso tinham chamado
Mascarenha, o médico. Mesmo sendo reformado de nascença, o goês
estava acima da suspeita. Não era comprável.
– O
Tio Ultímio diz que vai chamar outro médico. Para confirmar o
óbito.
– Sabe
o que devemos fazer? O que devemos fazer é enterrar o Avô.
– O
quê? Não podemos, pai, não vê que...
– Espera.
É só uma coisa que me ocorreu. Um enterro de fingimento, só para
enganar os bandidos.
– Mas,
pai, há coisas que não se fazem de fingimento. Um enterro de
fingimento?
Manda-me
calar. Estamos entrando no bar de Tuzébio. Antes de passarmos a
porta, meu velho pede segredo. Tudo o que me dissera ficaria comigo.
Os dedos cruzam-me os lábios em sinal de promessa.
Em
volta nos saúdam, ruidosos. E nos incitam a que nos juntemos à
celebração. Ninguém sabe exactamente o que se está festejando.
Mas as bebidas circulam rápido, as alegrias crescem e se acrescem. O
médico levanta o copo e sugere um brinde.
– Vai
brindar a quem, Mascarenha? Sim, um médico brinda à saúde de quem?
– Brindo
a mim mesmo. A mim, Amílcar Mascarenha.
– A
si mesmo?
– É
que amanhã saio da Ilha.
– Vai-se
embora? Porquê?
– Recebi
ordem de saída.
– Ordem
de quem?
Mascarenha
não quer comentar mais sobre o as sunto. Mas ele é peremptório
sobre o destino que vai dar a sua vida. Em redor, os outros comentam:
– Esse homem está com medo.
– Aquilo
não foi ordem. Ele recebeu foi ameaça.
– E
ele tem razão de ter medo. Essa gente mata.
O
silêncio se intromete. Não há mais alma para conversa. Regresso à
casa grande. Deveria ir repor o sono no resguardo do fresco. Todavia,
decido escrever. Vou para o quintal, e me disponho na sombra da
mangueira. Levo o meu bloco de notas. Vou anotando ideias, frases
soltas. É então que sucede o que não é de acreditar: a minha
letra desobedece da mão que a engendra. Aquilo que estou escrevendo
se transfigura em outro escrito. Uma outra carta me vai surgindo,
involuntária, das minhas mãos: Quer saber dos pós brancos, esses
que trouxeram sangue e luto para o nosso lugar? Você, meu neto, está
lançando a isca mais longe que o anzol. Fique sabendo, meu xará:
você não veio aqui chamado por funeral de pessoa viva. Quem o
convocou foi a morte de todo este lugar. Luar-do-Chão começou a
morrer foi quando assassinaram meu amigo Juca Sabão. O filho dele, o
coveiro, não lhe contou direito? Pois eu lhe divulgo o sucedido.
Deflagraram
no meu amigo um par de balas, por motivo de uns sacos que trouxeram
lá da cidade e deixaram na arrecadação lá de casa. O Juca não
sabia nada. Só que havia uns sacos de desconhecido conteúdo, por
baixo de uma velha lona.
Quem
trouxe aquilo foi esse sobrinho de Juca, o tal Josseldo. Vinha com
companhias bastante indesejosas, uns tantos mausfeitores de cabeças
raspadas, uma tropa de quebrar respiros. E outros, que mais se
desenfeitavam: lenços amarrados na cabeça. Dulcineusa até se
admirou: homem-macho de lenço, faz-conta mulher? E envergando cabeça
rapada sem que seja por razão de luto? Os tempos jánão são de
ontem, minha Santa Cicrana. E digo e redigo: Jesus sangrou, a Virgem
chorou.
Pois
a Juca Sabão aquilo não cheirou bem. Coisa boa não seria. Por
isso, veio ter comigo e me disse de sua aflição. De início ele
pensara mesmo enterrar aquela sacaria nas margens do pântano.
Acharia eu bem esse destino? Mas eu deitei ponderação. Haviam dito
o quê, esses tais mandriões? – Sim, disseram o quê? Disseram que
aqueles sacos trariam a riqueza para a terra de Luar-do-Chão. Então
eu amparei o raciocínio de Juca. Ele que ponderasse: sendo coisa que
dava riqueza à terra o que poderia ser? Sim, o que podia ser senão
adubos, estrumes que eles fabricam lá nas cidades? – Pense bem,
caro fuca. São estrumes, desses todos cheios de compostos e de
químicos.
Ele
meditou, juntando ideia ao raciocínio. Por fim, acedeu. E assim,
convictos da natureza dos conteúdos, Juca Sabão e eu espalhámos os
pós sobre as terras aráveis. Vazámos sacos e sacos pelas
paisagens, misturámos tudo com as areias para dar sustento ao chão.
Bastaria esperar as chuvas e era só contemplar os verdes a
despontar, como bolores em pão de véspera.
Mas,
depois, vieram os mesmos tantos da cidade, esse fosseldo e os demais
dele, e reclamaram pelas mercadorias. Onde estavam os sacos? Foi
conversa afiada, cheia de ameaça de lâmina e sangue. Até que os
mandantes impuseram que Juca os conduzisse lá ao lugar onde ele
vazara os sacos. Mas o meu amigo estava esquecido. Sem intenção,
tudo verdade e genuína falta de lembrança. O compadre fuca
perguntava: – Em que lugar? Mas tudo são lugares. Foi por onde
espalhei os adubos, por aís.
Que
estariam já dissolvidos entre raízes, irmanados com as areias. Para
exemplificar o Juca Sabão se debruçou e apanhou uma porção de
terra nas mãos.
– Estão
por aqui, nestas terras todas infindáveis.
Os
forasteiros não confiaram. E gritaram, ameaçaram, passando aos
físicos argumentos. Às porradas lhe queriam arrancar a confissão.
O sobrinho acudia em favor do respectivo tio? Não, o moço era mesmo
o mais activo na pancadaria. Quase desencorpavam o meu amigo. Até
que um dos tais, arma na mão, aplicou pontaria na cabeçorra de Juca
Sabão. Aquilo foi disparar e ver como, fora do corpo, o sangue
escorre em caminhar de cobra. A terra que ele trazia nas mãos nunca
chegou a cair. Tombou foi ele, pesado e despenhado. Mas a terra
sustida na concha de suas mãos, essa ficou para sempre aninhada no
gesto de Juca.
No
dia da cerimônia do pobre Juca me assaltou a certeza: você tinha
que salvar Luar-do-Chão. Sim, faltava-nos um que viesse de fora mas
fosse de dentro. Pensava isto enquanto sentia como na nossa Ilha se
misturavam o respirar da vida e o sopro da morte. Ao enterrarmos fuca
estávamos deitando indevido osso no ventre da terra. Não tardaria
que o chão nos punisse a todos.
Sabe
o que sinto ao lembrar o compadre Juca Sabão? Eu tenho inveja dele,
tanta inveja, Santo Deus. Que vergonha, está ver? Inveja é
sentimento mesquinho que a gente dedica à coisa mundana. Mas o que
eu invejo em Sabão não é coisa que ele possuísse mas o modo como
ele morreu. Meu amigo levou em sua mão a devida porção de terra.
Me compreende? Juca não esperou que os outros lhe atirassem os
torrões. Ele mesmo lançou o primeiro punhado de areia sobre seu
corpo.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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