Se
eu não creio em Deus? Lá crer, creio.
Mas
acreditar, eu acredito é no Diabo.
– Avô
Mariano –
Curozero
Muando não me vê chegar. Encosto-me ao tronco da mafurreira
enquanto o observo. O coveiro está sentado junto a uma fogueira,
pernas abertas quase a roçar as chamas. Sobre o lume está uma lata
de água fervendo. Curozero recebe os vapores em pleno rosto. Tais
são os calores que atédos olhos parece transpirar. É assim que os
coveiros fazem para se purificarem. Mexem em poeira dos mortos, por
isso devem ser lavados por águas que não escorreram por cima de
nenhuma terra.
O
homem está nu e não parece incomodado com a minha presença. Depois
de um tempo ele es tremece como se tivesse frio. Levanta-se e enxuga
a cabeça com um pano enquanto fala sem me olhar: – É a mim que
vem procurar?
– Sim,
há outro coveiro por aqui?
– No
outro lado do céu existem também os coveiros. Ou melhor, os
descoveiros.
– Despreza
a minha ignorância. Que eu não sabia, mas a gente enterra aqui os
mortos e eles, lá, nos aléns, os desenterram e os celestiam.
– Sim,
é o serviço deles. E o seu serviço qual é?
– O
meu serviço?
– Sim,
o que vem aqui fazer? Ou alguma vez você falaria comigo caso não
houvesse uma dificuldade?
– Ora,
Curozero, eu vim aqui...
– Não
precisa arranjar desculpa. Não se conversa com o coveiro, é assim.
Por isso, a minha irmãzinha, de tanto escutar ausências, acabou
ficando sem as devidas falas.
Mas
a profissão, diz ele, tem sua ciência. O coveiro repuxa brilhos de
sua carreira. E explica quanto complexa é a engenharia de covar.
Abrir o buraco, aquele buraco, não é coisa simples. A gente
inclina-se da seguinte maneira, e ele exemplifica: perna
traseiramente colocada, dorso entortado e o rosto inclinado, mas
nunca olhando o chão, isso nunca. A pá movendo-se para baixo sem
golpear o ar, não, que isso de forçar o golpe é ferir a terra sem
necessidade. O pé é que assenta na borda da lâmina para que se
cumpra o golpe como se de um carinho se tratasse.
– Isto
é arte. É como você quando deita um papel na secretária e lhe
ajeita umas escritas.
– Pois
eu, caro Curozero, venho aqui para saber da sua ideia, você que mexe
com falecimento: acha que meu Avô está realmente morto? – Na
minha actual existência, eu já não tenho ideias. Só lembranças.
E
lembrava muito, lembrava mais do que vivera. Como esses que guardam
pouco e tiram muito. Recordava mais era os olhos das pessoas quando
compareciam no cemitério para assistir ao enterro dos parentes, dos
amigos. Sim, lembrava a assustada tristeza, o desamparo dessa
solidão. Nesse momento tudo se torna repentino, um fio de aranha.
Até esse respeitoso medo, porém, estava mudando, com o desregrar
dos tempos.
– Antes
vinham aqui pôr flores. Agora, vêm roubar os mortos. Nem os deuses
eles respeitam.
– O
que acha que aconteceu com meu Avô? O melhor seria eu nunca saber.
Porque aquilo era coisa que não se explicava por palavras. O coveiro
faz o possível para me dissuadir: – Você ficou muito tempo fora.
Agora, é um mulungo. Sabe o que lhe digo? Um dedo só não apanha
pulga.
– O
que quer dizer isso? – Falta sempre o outro dedo.
Falta
sempre um outro dedo, repete. Esse dedo está para além de toda a
mão. E mais, me aconselha: eu que não procurasse demasiado.
Aprendesse a deixar os mistérios no seu devido estado. O homem sábio
é o que sabe que há as coisas que nunca vai saber. Coisas maiores
que o pensamento.
– E
depois, qual é o problema: se a terra é dura, enterra-se o homem
bem vivo.
– Mas
eu não quero enterrar o Avô...
– Outros
querem.
Curozero
olha o infinito, encolhe os ombros e faz estalar a língua antes de
falar. Por fim, ele me acende o entendimento que eu tanto carecia:
que aquela morte era sequente a uma vida mal vivida. Meu Avô
cometera uma grande ofensa.
– Que
ofensa?
– É
segredo que está indo com ele.
Enterrá-lo,
assim, nesse estado de morto aborta do constituiria sério atentado
contra a Vida. Em vez de nos proteger, o defunto iria desarranjar o
mundo. Até a chuva ficaria presa, encarcerada nas nuvens.
E
a terra secaria, o rio se afundaria na areia. Ele era um morrido em
deficiência, um relâmpago que ficara por abençoar.
– Se
me deixarem eu sei como proceder.
– E
como é? – Este não é assunto de terra mas de água. Os seus
mais-velhos bem sabem. Pergunte-lhes.
É
então que reparo na moça, a mesma que eu vira antes com Tio
Ultímio. Usa a mesma capulana verde, o mesmo gesto tímido. Avança
junto ao muro, vai roçando um ramo de flores na parede. As pétalas
vão caindo, em desperdício, pelo chão.
– Esta
é Nyembeti, minha irmã. É bonita, não é? Curo zero dirige-me a
pergunta e fica-me olhando inquisitivo. Algo me ordena que não
reaja. Meu olhar percorre os céus, distraidamente. O coveiro
insiste: – Até dói a beleza dela. Problema sabe qual é? É que
essa moça não fala direito, a língua tropeça na boca, a boca
tropeça-lhe na cabeça.
– Ela
não fala mesmo nada? – ainda pergunto, a medo.
– Não,
ela fala é o nada.
– Não
entendo, Curozero.
– Minha
irmã, Nyembeti, nunca usou nenhuma ideia.
Vai-se
vestindo enquanto disserta sobre a irmã.
Que
ela usava o pensamento como o crocodilo engole a pedra. Servindo só
para lhe dar peso na existência, tocar o fundo sem esforço. Quando
tinha precisão do ar ela regurgitava a pedra, e mais leve, vinha à
superfície.
– Pamba!
– ordena ele a Nyembeti. – Queremos falar sozinhos.
A
moça debruça-se sobre mim e oferece-me uma flor. Sacode-a antes de
me a entregar. As pétalas chovem sobre o chão.
– Mali!
Ni kumbela mali.
A
moça até se baba para desembrulhar a fala.
Aquelas
as palavras, eu ainda me lembrava. Eram aquelas as exactas palavras
que ela tinha malbuciado no encontro com Ultímio.
– O
que é que ela está dizendo? Traduza-me, por favor.
– Ela
está a pedir dinheiro. É a única coisa quesabe falar! O coveiro
encolhe os ombros, com um sorriso meio divertido, e remata: – É o
que ela fala, agora: os dialectos da miséria.
A
irmã se afasta. Vai ajeitando a capulana na cintura, ora soltando-a,
ora apertando. O corpo, cheio de formato, me desperta. Por baixo do
pano ela está completamente nua? O coveiro surpreende o meu
interesse: – Não deite devaneio nessa rapariga. É um aviso de
amizade! – e depois de uma pausa, prossegue: – E agora lhe quero
pedir uma coisa.
– Pode
pedir, Curozero.
– Já
viu que sou o único coveiro aqui. Agora, lhe pergunto: quando eu
morrer quem me vai sepultar a mim? Engoli um deserto, adivinhando o
pedido. Curozero me encomendava o serviço de o enterrar. E parecia
falar sério, como se reclamasse promessa jurada.
– O
senhor me fará esse serviço?
– Eu?
Gargalhou
e me palmeou as costas. Eu que estivesse descansado, aqui era só um
exame para me avaliar.
– Eu
não careço de ser enterrado.
Espreito
a ver se ainda vislumbro a bela moça.
E
ela lá está. Deve saber que eu a espreito pois deixa cair a
capulana. Meu ofegante coração confirma que ela não usava nada por
baixo. Curozero interrompe-me as visões: – E já agora,
aproveitando que está aqui: venha, lhe quero mostrar uma obra minha,
a minha maior.
Leva-me
para os fundos do terreno, bem junto ao muro traseiro. Aponta uma
campa. Ali jazia Juca Sabão. Curozero abrira a cova para seu próprio
pai, o velho Sabão. Não chorou, foi até a vez que melhor escavou.
Estava a Ilha inteira olhando para ele. Tinha que mostrar que ser
coveiro era profissão de competência e honra. Não é um qualquer
que executa tais serviços. E nem lágrima, nem suspiro. O funeral se
completou, todos se retiraram, o cemitério ficou vazio. Nessa noite
choveu, ele sabia que não era apenas chuva. Saiu de casa, dirigiu-se
ao cemitério e sentou-se junto à campa. Enquanto a água escorria
pelo corpo ele chorou, chorou e chorou. Chorou sem parar enquanto
choveu. Até que já nada lhe doía mais. Tinha sido lavado, os céus
lhe tinham retirado saudades e silêncios.
Terem
disparado assim contra Juca Sabão, balas de queimar roupa sobre uma
vida inocente, era coisa nunca testemunhada em Luar-do-Chão. Mas
vingança haveria de chegar. A bala tem sempre duas pontas. Morre a
vítima, de um lado. Do outro, sucumbe sempre o próprio matador.
Muita coisa o coveiro já aprendera. A morte é o escuro: quem disse?
Pois ele mesmo, Curo zero Muando, certa vez estivera no parapeito de
um falecimento, no resvés de si mesmo. Enquanto dormia, fora atacado
por hiena Le salvara-se pelo triz. Reunira toda a família e
explicara: a morte, sim, era o intensíssimo clarão, o deflagrar de
estrela. Um sol entrado na vista, ao ponto de tudo ser visível só
por sombra. Dito e redito: a sombração, o acontecer do já havido
futuro.
– A
gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra,
pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.
Volto
a espreitar a ver se ainda vislumbro a bela Nyembeti. Mas não. Só
resta a capulana estendida a secar, movendo-se em balanço sensual.
Toda a roupa recebe a alma de quem a usa.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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