Meu
avô costumava dizer: “A vida é espantosamente curta. Para mim ela
agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não
compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia
sem temer que — totalmente descontados os incidentes desditosos —
até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de
longe suficiente para uma cavalgada como essa”.*
O
texto parece querer transmitir uma sabedoria de vida, do tipo: vita
brevis, ars longa. Como fiador da validade dessa sentença,
figura o avô de um eu. Esse eu permanece indistinto e
só fala pela voz do seu antepassado. Fica também indeterminado em
que contexto a frase é pronunciada e para o que exatamente
ela serve de argumento. O avô é testemunha, mas não está muito
claro do que ele é testemunha. Ele relata, mas na
medida do possível evita um julgamento sobre a coisa relatada. O
neto, seu porta-voz, está presente, mas também não toma posição.
A
fala do avô, em discurso direto, tem na aparência um caráter
negativo. Ou seja: essa fala remete à incomensurabilidade entre um
plano de vida e o tempo disponível, ou, caso se queira, à
desproporção entre o desejo individual e a ordem do mundo onde esse
desejo se manifesta.
O
relato parece testar a possibilidade de alguém experimentar o
distante como algo próximo. Nele parece afirmado o modelo
provinciano e horizontal da família enquanto sociedade. Está
ausente o aparato kafkiano da comunicação hierarquizada segundo um
sistema rígido de regras e uma ordem temporal consolidada.
A
título de curiosidade, Brecht viu nesse relato a imagem da
solidariedade coletiva: é verdade que para um só a cavalgada é
longa demais, mas um outro que partisse a cavalo acabaria chegando ao
objetivo. Para Benjamin, a postura do avô no texto consagra, num
retrospecto da memória, a lei da vida que lhe é própria, ou seja,
essa lei só vale para o avô (como a entrada na lei para o homem do
campo) e não tem poder de coação sobre os netos.
A
“situação narrativa” do texto é simples. Um eu, que não dá a
conhecer mais que isso, ou seja, que é um eu que narra, reproduz o
que o seu avô costumava dizer quando, já velho, fazia reflexões
sobre sua vida passada. Esse eu, no entanto, só aparece
indiretamente, na forma do pronome possessivo meu (“meu
avô”). De algum modo isso induz o leitor a ocupar, mesmo que
involuntariamente, um lugar vazio. É como se o avô se
tornasse o avô de cada leitor — sobretudo porque cada um desses
leitores poderia pôr na boca do seu próprio avô a primeira frase
do texto — “A vida é espantosamente curta” —, que articula
uma experiência de ordem geral.
Mas
a situação específica do eu-narrador também mimetiza ou absorve a
situação relatada do avô. Para tornar isso mais claro,
bastaria parafrasear a frase-moldura do texto (“Meu avô costumava
dizer”) da seguinte maneira: “Eu costumo contar às
pessoas, com prazer, o que meu avô sempre dizia antigamente”. Se
assim fosse, as palavras do avô se preencheriam de um conteúdo
que parece independente de qualquer particularidade. Essas palavras
do avô se apresentariam (e no caso talvez se apresentem) como um
pensamento formulado de maneira definitiva que pode ser repetido à
vontade. É perceptível, entretanto, que existe uma distância
entre o que o avô diz e o que o neto poderia também dizer, porque
se trata no texto das palavras de um homem idoso, para quem a vida
não é senão uma lembrança. O avô fala como se para ele a vida já
tivesse chegado ao fim. O “neto” — e com ele o leitor — só
pode realizar a experiência do avô intelectualmente, e não
por intermédio da prática efetiva. Portanto essa experiência
continua inapreensível para quem ainda não encerrou ou está a
ponto de encerrar a vida. A comprovação disso pode ser dada pelo
exemplo (“eu por exemplo”) por meio do qual o avô mostra por que
ele julga a vida “espantosamente curta”. O avô utiliza aqui uma
construção de frase evidentemente elaborada. Essa frase, antes de
completar o seu sentido, atravessa um caminho sinuoso, marcado por
várias orações subordinadas. É como se o avô desdobrasse, passo
a passo, em articulações lógico-sintáticas sempre renovadas, o
seu conhecimento. É como se nessa manobra ele empurrasse para a
frente a surpresa que reserva para o fim. De fato é só com as
últimas palavras que a frase oferece a sua chave. Mas isso não
acontece para satisfazer uma expectativa do leitor, e sim para lhe
apresentar uma questão irrespondível. Na realidade, o que o avô
quer dizer com vida espantosamente curta (onde o tempo é medido
pelo espaço) é alguma coisa que ultrapassa de longe as
nossas conjecturas. Senão vejamos...
O
neto calcula a vida como um espaço de tempo sólido, que se
estende pelo futuro à sua disposição. Ele pode cotejar o
tempo que é necessário para ir a cavalo até a próxima aldeia com
o tempo de vida que presumivelmente tem à mão e constatar
que não há motivo para temores. Aliás, não haveria motivo
para temores mesmo que ele eventualmente fosse retido no
caminho por “incidentes desditosos”, uma vez que ele poderia a
cada novo dia cavalgar outra vez até a próxima aldeia. A situação
do avô é completamente outra: para ele a vida já é uma espécie
de matéria de memória. Isso quer dizer que o tempo se tornou
para ele uma grandeza irreal, com a qual ele já não pode
contar. O que existe e ainda tem um significado é aquilo que a sua
lembrança atual admite em relação à vida que passou. Essa
é a sua nova medida e a evidência disso é que a sua
lembrança é capaz de tão pouca coisa que o tempo necessário para
ir a cavalo até a próxima aldeia de longe já não basta.
Dito de outro modo, a limitação do avô é de tal ordem que ele
próprio “mal compreende” a decisão tomada nesse sentido
(ir a cavalo até a aldeia mais próxima) por um jovem. Ou seja: é
claro que o avô ainda a entende — no mínimo a partir da sua
experiência vivida. Mas é evidente que, agora, ele, avô,
não poderia tomar uma decisão dessas. A fórmula “quase não
compreendo” precisa portanto ser matizada. O que acontece é que o
avô está há muito tempo livre de ambições como ir a
cavalo até a próxima aldeia ou empreender coisas maiores. É nesse
caso que não se pode falar em temor da parte dele. O que é
incompreensível para o avô é a temeridade daqueles que, com
tanta naturalidade, se movem na vida como numa cavalgada até a
próxima aldeia, achando que chegam sempre ao lugar de destino pelo
caminho tomado.
Nesse
ponto é preciso reconhecer que os lances paradoxais desse pequeno
texto — desse épico em miniatura — são a expressão do seu
sentido. Em outros termos, a luz que responde pelo efeito de
estranhamento desse fragmento de Kafka, sob a qual parece se
dissolver o conceito de tempo, aponta para outra coisa.
Pressente-se que o que aqui não é mais possível é que alguém
alcance o seu objetivo recorrendo a um caminho que se realiza no
tempo. Na verdade é como se o objetivo estivesse além do tempo
— e nesse caso o avô, com a sua “falta de sentido do tempo”,
parece estar mais próximo do objetivo inalcançável, ao contrário
do que a princípio parece.
Há
pelo menos uma reflexão de Kafka que pode dar sustentação a essa
leitura. Ele diz o seguinte: “Existe um alvo, mas não existe um
caminho; aquilo que nós chamamos de caminho é hesitação”. Ou
então: “No mundo existe muita esperança, mas não para nós”.
Não é à toa que Adorno considera Kafka o maior prosador
contemporâneo.
Texto
inédito.
*
Esse texto foi escrito entre fins de 1916 e inícios de 1917 e faz
parte do livro Ein Landarzt (Um médico rural), publicado na
Alemanha em 1919. É a mais curta das catorze peças incluídas no
livro. In: Um médico rural, Companhia das Letras, 1999.
Tradução de Modesto Carone.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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