Poucos
dias depois de nossa partida do porto de Callao, disseminou-se um
rumor que aterrorizou muitos marinheiros. Eis do que se tratava: por
algum inédito descuido do almoxarife ou alguma igualmente
desconhecida negligência do responsável pela despensa da fragata em
Callao, o suprimento a bordo daquela deliciosa bebida conhecida como
grogue estava próximo do fim.
Na
Marinha americana, a lei permite um quarto de pinta95 de bebida por
dia a cada marinheiro. Em duas doses, ela é servida antes do
desjejum e do jantar. Ao rufar da caixa, a marujada se reúne ao
redor de uma enorme selha ou barril repleto do líquido; e, à medida
que seus nomes são chamados por um aspirante, cada homem dá um
passo à frente e se regala com um pequeno medidor de lata, que
chamam de “dedo”. Nenhum bon-vivant servindo-se de um
tokay num aparador bem polido estala os lábios com mais viva
satisfação do que um marinheiro com seu “dedo” de grogue. Para
muitos, o pensamento em seus “dedos” diários propicia um
perpétuo panorama de extasiantes paisagens que se afastam para todo
o sempre no horizonte. É seu grande “plano de vida”. Tire-lhe o
grogue, e a vida lhes perde todo o encanto. Parece evidente demais
para ser refutável que a razão dominante para que muitos homens se
mantenham na Marinha é a confiança irrestrita no poder do governo
dos Estados Unidos de supri-los, de forma regular e infalível, de
sua dose diária da dita bebida. Conheci muitos desgraçados
embarcados sem qualquer experiência a bordo de um navio que me
confessaram que, tendo contraído um amor incontinente pela bebida, à
qual não eram capazes de renunciar, e tendo por suas débeis
trajetórias chegado à mais abjeta pobreza — a ponto de não
poderem mais satisfazer a própria sede em terra firme —,
engajaram-se desesperadamente na Marinha; entendendo-a como um
refúgio de todos os bêbados, que ali poderiam prolongar suas vidas
mediante exercício e disciplina e matar a sede duas vezes por dia
com constantes e moderadas doses de bebida.
Quando
certa feita ralhei com um gajeiro ébrio sobre a tal dose diária de
bebida; quando lhe disse que ela estava acabando consigo e
aconselhei-o a parar com o grogue e receber o dinheiro por ele,
adicional a seu salário, tal como previsto por lei, ele voltou-se a
mim com um olhar irresistivelmente ardiloso e disse: “Largar o meu
grogue? Por quê? Porque está acabando comigo? Não, não; eu sou um
bom cristão, Jaqueta Branca, e amo demais o meu inimigo para cortar
relações com ele”.
Pode-se
prontamente imaginar, portanto, a consternação e o horror que
tomaram conta da coberta dos canhões aos primeiros boatos de que o
grogue se acabara.
“Cabou
o grogue!”, gritou um veterano da âncora d’esperança.
“Ai,
Deus! Que dor no estômago!”, exclamou um gajeiro do mastro
principal.
“Pior
que o cólera!”, exclamou um homem da guarda de popa.
“Era
melhor que a água tivesse acabado primeiro!”, disse o capitão do
porão.
“Desde
quando a gente é ganso pra viver sem grogue?”, perguntou um cabo
do regimento de fuzileiros.
“Isso,
agora a gente vai matar a sede com os patos!”, concluiu um
quartel-mestre.
“Sobrou
nenhum ‘dedo’?”, grunhiu um poceiro.
“Nadinha!”,
suspirou um fiel do porão, do fundo de suas botas.
Sim,
a informação fatal provou-se verdadeira. Não se ouviu mais o rufar
da caixa que levava os homens à selha, e um profundo abatimento e
depressão desceram ao convés como uma nuvem. O navio parecia uma
grande cidade tomada de uma terrível calamidade. Os homens
permaneciam em grupos, uns distantes dos outros, discutindo sua dor e
consolando-se. Nas noites tranquilas de luar já não se ouviam as
canções das altas gáveas; e poucas e espaçadas eram as histórias
contadas. Foi durante esse intervalo de tempo, tão pavoroso para
tantos, que, para a estupefação da marujada, denunciou-se ao
mestre-d’armas dez homens embriagados. Eles foram levados ao
mastro, e sua aparência dissipou mesmo as dúvidas dos mais céticos;
entretanto, onde tinham encontrado bebida, isso nenhum deles dizia.
Observou-se, porém, que os contraventores todos cheiravam a lavanda,
como muitos dândis.
Depois
de serem examinados, foram todos levados ao brigue, a cadeia
instalada entre dois canhões no convés principal onde são mantidos
os prisioneiros. Ali permaneceram por algum tempo, estirados, hirtos
e impassíveis, com os braços cruzados sobre o peito como as muitas
efígies do Príncipe Negro em seu monumento na catedral da
Cantuária.
Findos
os primeiros cochilos, a sentinela que permaneceu a vigiá-los fez o
que estava a seu alcance para manter à distância a multidão ávida
de descobrir como, em tempo de tamanha carência, os prisioneiros
tinham conseguido bebida o bastante para esquecerem-se de si mesmos.
A seu tempo, todos acabaram liberados, e o segredo logo vazou.
Ao
que tudo indica, de súbito ocorrera a um empreendedor dentre seus
pares, a quem a privação compartilhada causava terríveis
padecimentos, uma brilhante ideia. Tornara-se de seu conhecimento que
o comissário do almoxarife trazia consigo um grande suprimento de
eau-de-cologne, clandestinamente embarcada no navio com o
objetivo de vendê-la por conta própria onde aportasse; porém,
provando-se o suprimento maior do que a demanda e não conhecendo
outros consumidores a bordo da fragata além do lugar-tenente
Michelo, ele então levava de volta no retorno para casa mais de um
terço do carregamento inicial. Para encurtar o caso, tal
funcionário, convidado a uma conversa sigilosa, foi prontamente
convencido a partilhar uma dúzia de garrafas, com cujo conteúdo o
grupo embriagado se regalara.
As
notícias correram amplamente entre a marinhagem, mantendo-se o
segredo apenas em relação a oficiais e subalternos; e naquela noite
as longas garrafas de água-de-colônia, com seu pescoço comprido,
tilintaram por cantos e recantos dos conveses, sendo esvaziadas e de
pronto lançadas ao mar. Com o açúcar mascavo tomado às caixas de
rancho e a água quente implorada aos cozinheiros do navio, os
marinheiros produziram toda sorte de ponche, coquetel e mistura, às
quais se acrescia uma gota de alcatrão, como se faz com pão
torrado, à guisa de se obter sabor. Claro que tudo se administrou no
mais absoluto sigilo; enquanto transcorreu a noite que lhes cobria os
festins, os farristas permaneceram, em grande medida, livres de
detenção; e os que tinham se entregado amplamente à orgia tinham
doze longas horas para retornarem à sobriedade antes que a luz do
sol irrompesse.
No
dia seguinte, a fragata cheirava a quarto de donzela de uma ponta a
outra; mesmo os barris de alcatrão recendiam a fragrância; e da
boca de não poucos dentre os encanecidos e carrancudos subchefes de
artilharia emanava o mais delicioso aroma. Assombrados, os
lugares-tenentes iam de um lado ao outro farejando a essência do
vendaval; e, pela primeira vez, Michelo não precisou agitar seu
lenço perfumado. Era como se estivéssemos navegando nas imediações
de uma costa odorífera numa primavera repleta de violetas. Perfumes
de Sabá!
Encontrando
por léguas dilatadas,
Risonho
e perfumado, o velho Oceano.
Mas,
ai!, todo esse perfume não podia ter sido desperdiçado por nada; e
o mestre-d’armas e os cabos navais, reunindo informações aqui e
ali, logo desvendaram o mistério. O comissário do almoxarife foi
convocado a dar explicações, e ponches de lavanda e drinques de
água-de-colônia não foram mais bebidos a bordo do Neversink.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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