terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Um trago num navio de guerra

Poucos dias depois de nossa partida do porto de Callao, disseminou-se um rumor que aterrorizou muitos marinheiros. Eis do que se tratava: por algum inédito descuido do almoxarife ou alguma igualmente desconhecida negligência do responsável pela despensa da fragata em Callao, o suprimento a bordo daquela deliciosa bebida conhecida como grogue estava próximo do fim.
Na Marinha americana, a lei permite um quarto de pinta95 de bebida por dia a cada marinheiro. Em duas doses, ela é servida antes do desjejum e do jantar. Ao rufar da caixa, a marujada se reúne ao redor de uma enorme selha ou barril repleto do líquido; e, à medida que seus nomes são chamados por um aspirante, cada homem dá um passo à frente e se regala com um pequeno medidor de lata, que chamam de “dedo”. Nenhum bon-vivant servindo-se de um tokay num aparador bem polido estala os lábios com mais viva satisfação do que um marinheiro com seu “dedo” de grogue. Para muitos, o pensamento em seus “dedos” diários propicia um perpétuo panorama de extasiantes paisagens que se afastam para todo o sempre no horizonte. É seu grande “plano de vida”. Tire-lhe o grogue, e a vida lhes perde todo o encanto. Parece evidente demais para ser refutável que a razão dominante para que muitos homens se mantenham na Marinha é a confiança irrestrita no poder do governo dos Estados Unidos de supri-los, de forma regular e infalível, de sua dose diária da dita bebida. Conheci muitos desgraçados embarcados sem qualquer experiência a bordo de um navio que me confessaram que, tendo contraído um amor incontinente pela bebida, à qual não eram capazes de renunciar, e tendo por suas débeis trajetórias chegado à mais abjeta pobreza — a ponto de não poderem mais satisfazer a própria sede em terra firme —, engajaram-se desesperadamente na Marinha; entendendo-a como um refúgio de todos os bêbados, que ali poderiam prolongar suas vidas mediante exercício e disciplina e matar a sede duas vezes por dia com constantes e moderadas doses de bebida.
Quando certa feita ralhei com um gajeiro ébrio sobre a tal dose diária de bebida; quando lhe disse que ela estava acabando consigo e aconselhei-o a parar com o grogue e receber o dinheiro por ele, adicional a seu salário, tal como previsto por lei, ele voltou-se a mim com um olhar irresistivelmente ardiloso e disse: “Largar o meu grogue? Por quê? Porque está acabando comigo? Não, não; eu sou um bom cristão, Jaqueta Branca, e amo demais o meu inimigo para cortar relações com ele”.
Pode-se prontamente imaginar, portanto, a consternação e o horror que tomaram conta da coberta dos canhões aos primeiros boatos de que o grogue se acabara.
Cabou o grogue!”, gritou um veterano da âncora d’esperança.
Ai, Deus! Que dor no estômago!”, exclamou um gajeiro do mastro principal.
Pior que o cólera!”, exclamou um homem da guarda de popa.
Era melhor que a água tivesse acabado primeiro!”, disse o capitão do porão.
Desde quando a gente é ganso pra viver sem grogue?”, perguntou um cabo do regimento de fuzileiros.
Isso, agora a gente vai matar a sede com os patos!”, concluiu um quartel-mestre.
Sobrou nenhum ‘dedo’?”, grunhiu um poceiro.
Nadinha!”, suspirou um fiel do porão, do fundo de suas botas.
Sim, a informação fatal provou-se verdadeira. Não se ouviu mais o rufar da caixa que levava os homens à selha, e um profundo abatimento e depressão desceram ao convés como uma nuvem. O navio parecia uma grande cidade tomada de uma terrível calamidade. Os homens permaneciam em grupos, uns distantes dos outros, discutindo sua dor e consolando-se. Nas noites tranquilas de luar já não se ouviam as canções das altas gáveas; e poucas e espaçadas eram as histórias contadas. Foi durante esse intervalo de tempo, tão pavoroso para tantos, que, para a estupefação da marujada, denunciou-se ao mestre-d’armas dez homens embriagados. Eles foram levados ao mastro, e sua aparência dissipou mesmo as dúvidas dos mais céticos; entretanto, onde tinham encontrado bebida, isso nenhum deles dizia. Observou-se, porém, que os contraventores todos cheiravam a lavanda, como muitos dândis.
Depois de serem examinados, foram todos levados ao brigue, a cadeia instalada entre dois canhões no convés principal onde são mantidos os prisioneiros. Ali permaneceram por algum tempo, estirados, hirtos e impassíveis, com os braços cruzados sobre o peito como as muitas efígies do Príncipe Negro em seu monumento na catedral da Cantuária.
Findos os primeiros cochilos, a sentinela que permaneceu a vigiá-los fez o que estava a seu alcance para manter à distância a multidão ávida de descobrir como, em tempo de tamanha carência, os prisioneiros tinham conseguido bebida o bastante para esquecerem-se de si mesmos. A seu tempo, todos acabaram liberados, e o segredo logo vazou.
Ao que tudo indica, de súbito ocorrera a um empreendedor dentre seus pares, a quem a privação compartilhada causava terríveis padecimentos, uma brilhante ideia. Tornara-se de seu conhecimento que o comissário do almoxarife trazia consigo um grande suprimento de eau-de-cologne, clandestinamente embarcada no navio com o objetivo de vendê-la por conta própria onde aportasse; porém, provando-se o suprimento maior do que a demanda e não conhecendo outros consumidores a bordo da fragata além do lugar-tenente Michelo, ele então levava de volta no retorno para casa mais de um terço do carregamento inicial. Para encurtar o caso, tal funcionário, convidado a uma conversa sigilosa, foi prontamente convencido a partilhar uma dúzia de garrafas, com cujo conteúdo o grupo embriagado se regalara.
As notícias correram amplamente entre a marinhagem, mantendo-se o segredo apenas em relação a oficiais e subalternos; e naquela noite as longas garrafas de água-de-colônia, com seu pescoço comprido, tilintaram por cantos e recantos dos conveses, sendo esvaziadas e de pronto lançadas ao mar. Com o açúcar mascavo tomado às caixas de rancho e a água quente implorada aos cozinheiros do navio, os marinheiros produziram toda sorte de ponche, coquetel e mistura, às quais se acrescia uma gota de alcatrão, como se faz com pão torrado, à guisa de se obter sabor. Claro que tudo se administrou no mais absoluto sigilo; enquanto transcorreu a noite que lhes cobria os festins, os farristas permaneceram, em grande medida, livres de detenção; e os que tinham se entregado amplamente à orgia tinham doze longas horas para retornarem à sobriedade antes que a luz do sol irrompesse.
No dia seguinte, a fragata cheirava a quarto de donzela de uma ponta a outra; mesmo os barris de alcatrão recendiam a fragrância; e da boca de não poucos dentre os encanecidos e carrancudos subchefes de artilharia emanava o mais delicioso aroma. Assombrados, os lugares-tenentes iam de um lado ao outro farejando a essência do vendaval; e, pela primeira vez, Michelo não precisou agitar seu lenço perfumado. Era como se estivéssemos navegando nas imediações de uma costa odorífera numa primavera repleta de violetas. Perfumes de Sabá!

Encontrando por léguas dilatadas,
Risonho e perfumado, o velho Oceano.

Mas, ai!, todo esse perfume não podia ter sido desperdiçado por nada; e o mestre-d’armas e os cabos navais, reunindo informações aqui e ali, logo desvendaram o mistério. O comissário do almoxarife foi convocado a dar explicações, e ponches de lavanda e drinques de água-de-colônia não foram mais bebidos a bordo do Neversink.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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