Eu
estava com um embrulho no estômago e ela tirava fotos de mim,
revelando como eu suava e morria na área de espera enquanto
observava uma garota roliça em um vestido curto e purpúreo, de
salto alto, que atirava com um rifle em uma fileira de patos de
plástico. Disse a Vicki que voltaria e pedi à garota no balcão um
copo de papel, um pouco de água e ali lancei meu Alka Seltzer.
Sentei-me novamente e continuei suando.
Vicki
estava feliz. Estávamos saindo da cidade. Me agradava que Vicki
estivesse contente. Ela merecia essa felicidade. Levantei e fui até
o banheiro masculino e dei uma boa cagada. Quando saí, estavam
chamando os passageiros. Não era um hidroavião muito grande. Um
bimotor. Éramos os últimos. Havia apenas seis ou sete lugares.
Vicki
sentou no assento do co-piloto e, para mim, fizeram um assento com
aquela coisa que se dobra por cima da porta. E lá fomos nós!
LIBERDADE! Meu cinto de segurança não funcionava.
Havia
um japonês me olhando.
– Meu
cinto de segurança não funciona – eu lhe disse.
Ele
sorriu para mim, todo feliz.
– Vá
lamber merda, meu chapa – eu lhe disse.
Vicki
continuava olhando pra trás e sorrindo. Ela estava feliz, uma
criança com um doce: um hidroavião de 35 anos.
Doze
minutos depois, tocamos na água. Não cheguei a ficar enjoado. Saí.
Vicki me contou tudo sobre o avião.
– O
avião foi construído em 1940. Tinha buracos no chão. Ele
controlava o leme com uma alavanca no teto. Disse a ele que estava
com medo, e ele respondeu “Também estou com medo”.
Eu
dependia de Vicki para conseguir todas as informações. Falar com
pessoas não era o meu forte. Bem, então entramos em um ônibus,
suando e rindo e olhando um para o outro. Do fim da linha do ônibus
até o hotel, era mais ou menos dois quarteirões e Vicki me mantinha
informado:
– Ali
tem um lugar para comer e ali, uma loja de bebidas para você, lá
tem um bar e ali tem um lugar para comer e ali outra loja de
bebidas...
O
quarto era razoável, de frente, bem perto da água. A televisão
funcionava de uma forma vaga e hesitante, e deixei-me cair
pesadamente na cama e fiquei olhando Vicki, enquanto ela desfazia as
malas.
– Ah,
eu simplesmente amo este lugar! – ela disse. – Você não?
– Sim.
Levantei,
desci as escadas e, do outro lado da rua, comprei cerveja e gelo.
Coloquei o gelo na pia e afundei a cerveja ali. Bebi doze garrafas de
cerveja, tive uma discussão de pouca monta com a Vicki depois da
décima cerveja. Bebi as outras duas e fui dormir.
Quando
acordei, Vicki tinha comprado um isopor e estava tirando a tampa.
Vicki era uma criança, uma romântica, mas eu a amava por isso. Eu
tinha tantos demônios sombrios em mim que recebia com boas-vindas a
inocência de Vicki.
“Julho
de 1972. Avalon Catalena” foi isso que ela escreveu no isopor. Ela
não sabia como escrever o nome do lugar direito. Bem, nenhum de nós
sabia.
Então
ela fez um desenho de mim e, logo abaixo, escreveu:
“Sem
pescoço e ruim como o inferno.”
Depois
desenhou uma mulher e, logo abaixo, escreveu:
“Henry
reconhece um bom rabo quando vê um.”
E,
dentro de um círculo:
“Só
deus sabe o que ele faz com o nariz.”
E:
“Chinaski
tem pernas lindas.”
Ela
também desenhou vários passarinhos e sóis e estrelas e palmeiras e
o oceano.
– Acha
que consegue tomar o café da manhã? – ela perguntou.
Nunca
tinha sido mimado por nenhuma de minhas mulheres. Gostava de ser
paparicado assim; senti que merecia ser mimado dessa forma. Saímos e
encontramos um lugar bem razoável, onde se podia comer em uma mesa
na rua. Durante o café ela me perguntou:
– Você
realmente ganhou o prêmio Pulitzer?
– Que
prêmio Pulitzer?
– Você
me disse, na noite passada, que tinha recebido um Pulitzer.
Quinhentos mil dólares. Disse que recebeu um telegrama purpúreo com
o comunicado.
– Um
telegrama purpúreo?
– Sim,
você disse que tinha vencido Norman Mailer, Kenneth Koch, Diane
Wakoski e Robert Creeley.
Terminamos
o café da manhã e demos um passeio pelos arredores. Todo o lugar
não tinha mais de cinco ou seis quarteirões. Todo mundo tinha
dezessete anos de idade. Ficavam sentados indiferentes e esperavam.
Nem todos. Havia alguns turistas, velhos, determinados a aproveitar
suas férias. Espiavam ferozmente as vitrines das lojas e caminhavam,
batendo os pés contra o pavimento, emitindo raios que anunciavam:
tenho dinheiro, temos dinheiro, temos mais dinheiro do que vocês,
somos melhores do que vocês, nada nos preocupa, tudo está uma
merda, mas nós estamos bem e sabemos como funcionam as coisas, olhem
para nós.
Com
suas camisas rosas e verdes e azuis e corpos brancos e simétricos
apodrecendo e calções listrados, olhos esvaziados de olhar, bocas
desbocadas, caminhavam por aí, cheios de cores, como se cores
pudessem ressuscitar a morte e transformá-la em vida. Eles eram uma
espécie de carnaval da decadência americana, um desfile, e não
faziam ideia da atrocidade que infligiam a si mesmos.
Deixei
Vicki, subi as escadas, me curvei sobre a máquina de escrever e
olhei pela janela. Não havia esperança. Durante toda a minha vida
eu quis ser um escritor e, agora que tinha a minha chance, não
conseguia escrever. Não havia arenas de touros, nem lutas de boxe,
nem jovens señoritas. Nem mesmo uma intuição. Eu estava fodido.
Não conseguia colocar a palavra no papel, eu estava encurralado.
Bem, tudo que se pode fazer é esperar a morte chegar. Mas sempre
imaginei que seria diferente. Quero dizer, imaginei que escrever
seria diferente. Talvez tenha sido por causa daquele filme com Leslie
Howard. Ou por causa daquela leitura sobre a vida de Hemingway ou de
D.H. Lawrence. Ou então de Jeffers. Há varias maneiras diferentes
de se começar a escrever. E então você escreve algumas coisas. E
encontra alguns dos escritores. Os bons e os ruins. E todos possuem
almas que lembram aqueles brinquedinhos de armar. Percebe-se isso
logo que se entra em uma sala onde eles estão. Surge apenas um
grande escritor a cada quinhentos anos e você não é este nome e
eles também certamente não são. Estávamos fodidos.
Liguei
a televisão e assisti um bando de médicos e enfermeiras vomitarem
seus problemas amorosos. Nunca se tocavam. Não é difícil imaginar
por que tinham tantos problemas. Tudo que faziam era conversar,
discutir, resmungar, examinar. Fui dormir.
Vicki
me acordou:
– Oh
– ela disse –, me diverti tanto!
– É?
– Vi
um homem num barco e eu lhe perguntei “Onde você está indo?”, e
respondeu: “Isto é um barco-táxi, levo as pessoas para seus
barcos ou para a praia”, e eu disse “Ok”, e custava apenas
cinquenta centavos e passeei por aí com ele durante horas enquanto
levávamos pessoas para seus barcos. Foi maravilhoso!
– Vi
alguns médicos e enfermeiras – eu disse – e fiquei deprimido.
– Nós
andamos de barco por horas – disse Vicki –, dei-lhe meu chapéu
para que usasse e ele esperou enquanto eu comprava um sanduíche de
abalone. Ele esfolou a perna, quando caiu da sua motocicleta ontem à
noite.
– As
campainhas daqui tocam a cada quinze minutos. É odioso.
– Pude
olhar todos os barcos. Todos os velhos alcoólatras estavam a bordo.
Alguns deles tinham mulheres jovens que vestiam botas. Outros tinham
homens jovens. Uns velhos realmente bêbados e devassos.
Se
ao menos eu tivesse a habilidade de Vicki de adquirir informações,
pensei, poderia realmente escrever algo. Comigo é o seguinte: tenho
que ficar sentado e esperar que a coisa venha até mim. Posso
manipular tudo e espremer depois que chega, mas não posso sair a
procurar. Só consigo escrever sobre beber cerveja, ir ao hipódromo
e ouvir música sinfônica. Não chega a ser uma vida de merda, mas
também não é uma vida plena. Como fiquei tão limitado?
Antigamente eu tinha coragem. Onde foi parar a minha coragem? Os
homens ficam mesmo velhos?
– Depois
que desembarquei, vi um passarinho. Conversei com ele. Se importa de
eu comprar o passarinho?
– Não,
não me importo. Onde ele está?
– Apenas
a um quarteirão de distância. Podemos ir vê-lo?
– Por
que não?
Coloquei
algumas roupas, e caminhamos até lá. Lá estava o bicho, matizado
de verde com um pouco de tinta vermelha derramada sobre ele. Não era
grande coisa, mesmo para um pássaro. Mas não cagava a cada três
minutos como o resto deles, o que era algo agradável.
– Ele
não tem pescoço. É exatamente como você. É por isso que eu o
quero. É um periquito.
Voltamos
com o periquito em uma gaiola. Nós o colocamos sobre uma mesa e ela
o chamava de “Avalon”. Vicki sentou-se e falou com ele.
– Avalon,
olá, Avalon... Avalon, Avalon, olá, Avalon... Avalon, ô, Avalon...
Liguei
a televisão.
O
bar era legal. Sentei-me com Vicki e lhe disse que ia demolir o lugar
todo. Na minha juventude, costumava pôr os bares abaixo, agora
somente garganteio.
Havia
uma banda. Levantei e fui dançar. Era uma barbada esse negócio de
dança moderna. Bastava jogar os braços e as pernas em qualquer
direção, manter o pescoço duro ou balançá-lo como um louco e
todos achavam você ótimo. Dava para enganar as pessoas. Dancei, mas
minha cabeça estava lá na máquina de escrever.
Sentei
com Vicki e pedi mais algumas bebidas. Agarrei-lhe a cabeça e
voltei-a na direção do garçom.
– Olhe,
ela não é linda, cara?!
Então
Ernie Hemingway apareceu com sua barba branca de rato.
– Ernie
– eu disse –, pensei que você tivesse se matado com a
espingarda.
Hemingway
riu.
– O
que você está bebendo? – perguntei.
– Por
minha conta – ele disse.
Ernie
pagou nossas bebidas e se sentou. Parecia um pouco mais magro.
– Escrevi
uma crítica sobre seu último livro – eu lhe disse –, uma
crítica negativa. Desculpe-me.
– Está
tudo bem – disse Ernie. – Estão gostando da ilha?
– É
para eles – eu disse.
– O
que isso quer dizer?
– O
público tem sorte. Tudo os agrada: casquinhas de sorvete, concertos
de rock, cantorias, troca de casais, amor, ódio, masturbação,
cachorros-quentes, danças country, Jesus Cristo, patinação,
espiritualismo, capitalismo, comunismo, circuncisão, histórias em
quadrinhos de jornais, Bob Hope, esquiar, pescar, assassinar, jogar
boliche, debates, qualquer coisa. Eles não têm grandes expectativas
e também não aproveitam como poderiam. São uma grande corja.
– Esse
foi um belo discurso.
– Para
um belo público.
– Você
fala como um personagem de Huxley, daqueles primeiros textos.
– Acho
que você está errado. Estou desesperado.
– Mas
– disse Hemingway – homens se tornam intelectuais com o intuito
de não se desesperarem.
– Homens
se tornam intelectuais porque sentem medo, não por estarem
desesperados.
– E
a diferença entre sentir medo e estar desesperado é...
– Bingo!
– respondi. – Um intelectual!... minha bebida...
Um
pouco mais tarde, contei a Hemingway sobre o meu telegrama purpúreo
e então Vicki e eu saímos e voltamos para o nosso pássaro e para a
nossa cama.
– Não
adianta – eu disse –, meu estômago está fodido e dentro dele
reside nove décimos da minha alma.
– Tente
isto – disse Vicki, e me alcançou um copo de água com Alka
Seltzer.
– Vá
dar uma volta por aí – eu disse –, não vou conseguir sair hoje.
Vicki
saiu para seus passeios e voltou duas ou três vezes para ver se
estava tudo bem. Estava tudo bem. Saí e comi e voltei com dois
pacotes de seis cervejas e descobri que estava passando um filme
antigo com Henry Fonda, Tyrone Power e Randolph Scott. De 1939. Eles
eram todos tão jovens. Era incrível. Eu tinha dezessete anos
naquela época. Mas, é claro, consegui cruzar a vida melhor do que
eles. Eu continuava vivo.
Jesse
James. A atuação era ruim, muito ruim. Vicki voltou e me contou
uma série de coisas impressionantes e então se deitou na cama
comigo e assistimos Jesse James. Quando Bob Ford estava prestes a
atirar em Jesse (Ty Power) pelas costas, Vicki deixou escapar um
gemido e correu para o banheiro para não ver a cena. Ford fez o que
tinha de fazer.
– Está
tudo acabado – eu disse –, pode sair agora.
Esse
foi o ponto alto de nossa viagem para Catalina. Aconteceu muito pouca
coisa além disso. Antes de nossa partida, Vicki foi à Câmera de
Comércio e lhes agradeceu por nos terem proporcionado uma estadia
tão boa. Também agradeceu a mulher no bar de Davey Jones e comprou
presentes para seus amigos Lita e Walter e Ava e seu filho Mike e
algo para mim e algo para Annie e algo para o sr. e a sra. Croty e
também para outras pessoas que já esqueci.
Embarcamos
com nossa gaiola e nosso pássaro e nosso isopor de gelo e nossa mala
e nossa máquina de escrever elétrica. Encontrei um lugar no fundo
do barco e sentamos lá e Vicki estava triste porque as férias
haviam acabado. Antes eu encontrara Hemingway na rua, e ele tinha me
dado um aperto de mão hippie e me perguntado se eu era judeu
e se iria voltar e eu disse que não quanto a ser judeu e que não
sabia se iria voltar, dependia de Vicki, e ele disse “Não quero
perguntar sobre seus assuntos pessoais”, e eu disse “Hemingway
você realmente fala engraçado”, e o barco todo se inclinou para a
esquerda e balançou e jogou, e um jovem, que parecia recém-saído
de uma terapia de choque, caminhava por ali entregando sacos de
vômito de papel para que as pessoas vomitassem. Pensei que talvez o
hidroavião fosse melhor, apenas doze minutos e bem menos gente, e
São Pedro lentamente foi se aproximando, civilização, civilização,
poluição e assassinato, melhor, muito melhor, os loucos e os
bêbados são os últimos santos que sobraram na Terra. Nunca andei a
cavalo nem joguei boliche, também não vi os Alpes Suíços, e Vicki
continuava me olhando com seu sorriso tão infantil, e pensei “Ela
é realmente uma mulher surpreendente”, bem, já era hora de eu ter
um pouco de sorte, e espichei minhas pernas e olhei bem em frente.
Precisava dar outra cagada e decidi suspender a bebida.
Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum
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