sábado, 22 de janeiro de 2022

Sem pescoço e ruim como o inferno

Eu estava com um embrulho no estômago e ela tirava fotos de mim, revelando como eu suava e morria na área de espera enquanto observava uma garota roliça em um vestido curto e purpúreo, de salto alto, que atirava com um rifle em uma fileira de patos de plástico. Disse a Vicki que voltaria e pedi à garota no balcão um copo de papel, um pouco de água e ali lancei meu Alka Seltzer. Sentei-me novamente e continuei suando.
Vicki estava feliz. Estávamos saindo da cidade. Me agradava que Vicki estivesse contente. Ela merecia essa felicidade. Levantei e fui até o banheiro masculino e dei uma boa cagada. Quando saí, estavam chamando os passageiros. Não era um hidroavião muito grande. Um bimotor. Éramos os últimos. Havia apenas seis ou sete lugares.
Vicki sentou no assento do co-piloto e, para mim, fizeram um assento com aquela coisa que se dobra por cima da porta. E lá fomos nós! LIBERDADE! Meu cinto de segurança não funcionava.
Havia um japonês me olhando.
Meu cinto de segurança não funciona – eu lhe disse.
Ele sorriu para mim, todo feliz.
Vá lamber merda, meu chapa – eu lhe disse.
Vicki continuava olhando pra trás e sorrindo. Ela estava feliz, uma criança com um doce: um hidroavião de 35 anos.
Doze minutos depois, tocamos na água. Não cheguei a ficar enjoado. Saí. Vicki me contou tudo sobre o avião.
O avião foi construído em 1940. Tinha buracos no chão. Ele controlava o leme com uma alavanca no teto. Disse a ele que estava com medo, e ele respondeu “Também estou com medo”.
Eu dependia de Vicki para conseguir todas as informações. Falar com pessoas não era o meu forte. Bem, então entramos em um ônibus, suando e rindo e olhando um para o outro. Do fim da linha do ônibus até o hotel, era mais ou menos dois quarteirões e Vicki me mantinha informado:
Ali tem um lugar para comer e ali, uma loja de bebidas para você, lá tem um bar e ali tem um lugar para comer e ali outra loja de bebidas...
O quarto era razoável, de frente, bem perto da água. A televisão funcionava de uma forma vaga e hesitante, e deixei-me cair pesadamente na cama e fiquei olhando Vicki, enquanto ela desfazia as malas.
Ah, eu simplesmente amo este lugar! – ela disse. – Você não?
Sim.
Levantei, desci as escadas e, do outro lado da rua, comprei cerveja e gelo. Coloquei o gelo na pia e afundei a cerveja ali. Bebi doze garrafas de cerveja, tive uma discussão de pouca monta com a Vicki depois da décima cerveja. Bebi as outras duas e fui dormir.
Quando acordei, Vicki tinha comprado um isopor e estava tirando a tampa. Vicki era uma criança, uma romântica, mas eu a amava por isso. Eu tinha tantos demônios sombrios em mim que recebia com boas-vindas a inocência de Vicki.
Julho de 1972. Avalon Catalena” foi isso que ela escreveu no isopor. Ela não sabia como escrever o nome do lugar direito. Bem, nenhum de nós sabia.
Então ela fez um desenho de mim e, logo abaixo, escreveu:
Sem pescoço e ruim como o inferno.”
Depois desenhou uma mulher e, logo abaixo, escreveu:
Henry reconhece um bom rabo quando vê um.”
E, dentro de um círculo:
Só deus sabe o que ele faz com o nariz.”
E:
Chinaski tem pernas lindas.”
Ela também desenhou vários passarinhos e sóis e estrelas e palmeiras e o oceano.
Acha que consegue tomar o café da manhã? – ela perguntou.
Nunca tinha sido mimado por nenhuma de minhas mulheres. Gostava de ser paparicado assim; senti que merecia ser mimado dessa forma. Saímos e encontramos um lugar bem razoável, onde se podia comer em uma mesa na rua. Durante o café ela me perguntou:
Você realmente ganhou o prêmio Pulitzer?
Que prêmio Pulitzer?
Você me disse, na noite passada, que tinha recebido um Pulitzer. Quinhentos mil dólares. Disse que recebeu um telegrama purpúreo com o comunicado.
Um telegrama purpúreo?
Sim, você disse que tinha vencido Norman Mailer, Kenneth Koch, Diane Wakoski e Robert Creeley.
Terminamos o café da manhã e demos um passeio pelos arredores. Todo o lugar não tinha mais de cinco ou seis quarteirões. Todo mundo tinha dezessete anos de idade. Ficavam sentados indiferentes e esperavam. Nem todos. Havia alguns turistas, velhos, determinados a aproveitar suas férias. Espiavam ferozmente as vitrines das lojas e caminhavam, batendo os pés contra o pavimento, emitindo raios que anunciavam: tenho dinheiro, temos dinheiro, temos mais dinheiro do que vocês, somos melhores do que vocês, nada nos preocupa, tudo está uma merda, mas nós estamos bem e sabemos como funcionam as coisas, olhem para nós.
Com suas camisas rosas e verdes e azuis e corpos brancos e simétricos apodrecendo e calções listrados, olhos esvaziados de olhar, bocas desbocadas, caminhavam por aí, cheios de cores, como se cores pudessem ressuscitar a morte e transformá-la em vida. Eles eram uma espécie de carnaval da decadência americana, um desfile, e não faziam ideia da atrocidade que infligiam a si mesmos.
Deixei Vicki, subi as escadas, me curvei sobre a máquina de escrever e olhei pela janela. Não havia esperança. Durante toda a minha vida eu quis ser um escritor e, agora que tinha a minha chance, não conseguia escrever. Não havia arenas de touros, nem lutas de boxe, nem jovens señoritas. Nem mesmo uma intuição. Eu estava fodido. Não conseguia colocar a palavra no papel, eu estava encurralado. Bem, tudo que se pode fazer é esperar a morte chegar. Mas sempre imaginei que seria diferente. Quero dizer, imaginei que escrever seria diferente. Talvez tenha sido por causa daquele filme com Leslie Howard. Ou por causa daquela leitura sobre a vida de Hemingway ou de D.H. Lawrence. Ou então de Jeffers. Há varias maneiras diferentes de se começar a escrever. E então você escreve algumas coisas. E encontra alguns dos escritores. Os bons e os ruins. E todos possuem almas que lembram aqueles brinquedinhos de armar. Percebe-se isso logo que se entra em uma sala onde eles estão. Surge apenas um grande escritor a cada quinhentos anos e você não é este nome e eles também certamente não são. Estávamos fodidos.
Liguei a televisão e assisti um bando de médicos e enfermeiras vomitarem seus problemas amorosos. Nunca se tocavam. Não é difícil imaginar por que tinham tantos problemas. Tudo que faziam era conversar, discutir, resmungar, examinar. Fui dormir.
Vicki me acordou:
Oh – ela disse –, me diverti tanto!
É?
Vi um homem num barco e eu lhe perguntei “Onde você está indo?”, e respondeu: “Isto é um barco-táxi, levo as pessoas para seus barcos ou para a praia”, e eu disse “Ok”, e custava apenas cinquenta centavos e passeei por aí com ele durante horas enquanto levávamos pessoas para seus barcos. Foi maravilhoso!
Vi alguns médicos e enfermeiras – eu disse – e fiquei deprimido.
Nós andamos de barco por horas – disse Vicki –, dei-lhe meu chapéu para que usasse e ele esperou enquanto eu comprava um sanduíche de abalone. Ele esfolou a perna, quando caiu da sua motocicleta ontem à noite.
As campainhas daqui tocam a cada quinze minutos. É odioso.
Pude olhar todos os barcos. Todos os velhos alcoólatras estavam a bordo. Alguns deles tinham mulheres jovens que vestiam botas. Outros tinham homens jovens. Uns velhos realmente bêbados e devassos.
Se ao menos eu tivesse a habilidade de Vicki de adquirir informações, pensei, poderia realmente escrever algo. Comigo é o seguinte: tenho que ficar sentado e esperar que a coisa venha até mim. Posso manipular tudo e espremer depois que chega, mas não posso sair a procurar. Só consigo escrever sobre beber cerveja, ir ao hipódromo e ouvir música sinfônica. Não chega a ser uma vida de merda, mas também não é uma vida plena. Como fiquei tão limitado? Antigamente eu tinha coragem. Onde foi parar a minha coragem? Os homens ficam mesmo velhos?
Depois que desembarquei, vi um passarinho. Conversei com ele. Se importa de eu comprar o passarinho?
Não, não me importo. Onde ele está?
Apenas a um quarteirão de distância. Podemos ir vê-lo?
Por que não?
Coloquei algumas roupas, e caminhamos até lá. Lá estava o bicho, matizado de verde com um pouco de tinta vermelha derramada sobre ele. Não era grande coisa, mesmo para um pássaro. Mas não cagava a cada três minutos como o resto deles, o que era algo agradável.
Ele não tem pescoço. É exatamente como você. É por isso que eu o quero. É um periquito.
Voltamos com o periquito em uma gaiola. Nós o colocamos sobre uma mesa e ela o chamava de “Avalon”. Vicki sentou-se e falou com ele.
Avalon, olá, Avalon... Avalon, Avalon, olá, Avalon... Avalon, ô, Avalon...
Liguei a televisão.
O bar era legal. Sentei-me com Vicki e lhe disse que ia demolir o lugar todo. Na minha juventude, costumava pôr os bares abaixo, agora somente garganteio.
Havia uma banda. Levantei e fui dançar. Era uma barbada esse negócio de dança moderna. Bastava jogar os braços e as pernas em qualquer direção, manter o pescoço duro ou balançá-lo como um louco e todos achavam você ótimo. Dava para enganar as pessoas. Dancei, mas minha cabeça estava lá na máquina de escrever.
Sentei com Vicki e pedi mais algumas bebidas. Agarrei-lhe a cabeça e voltei-a na direção do garçom.
Olhe, ela não é linda, cara?!
Então Ernie Hemingway apareceu com sua barba branca de rato.
Ernie – eu disse –, pensei que você tivesse se matado com a espingarda.
Hemingway riu.
O que você está bebendo? – perguntei.
Por minha conta – ele disse.
Ernie pagou nossas bebidas e se sentou. Parecia um pouco mais magro.
Escrevi uma crítica sobre seu último livro – eu lhe disse –, uma crítica negativa. Desculpe-me.
Está tudo bem – disse Ernie. – Estão gostando da ilha?
É para eles – eu disse.
O que isso quer dizer?
O público tem sorte. Tudo os agrada: casquinhas de sorvete, concertos de rock, cantorias, troca de casais, amor, ódio, masturbação, cachorros-quentes, danças country, Jesus Cristo, patinação, espiritualismo, capitalismo, comunismo, circuncisão, histórias em quadrinhos de jornais, Bob Hope, esquiar, pescar, assassinar, jogar boliche, debates, qualquer coisa. Eles não têm grandes expectativas e também não aproveitam como poderiam. São uma grande corja.
Esse foi um belo discurso.
Para um belo público.
Você fala como um personagem de Huxley, daqueles primeiros textos.
Acho que você está errado. Estou desesperado.
Mas – disse Hemingway – homens se tornam intelectuais com o intuito de não se desesperarem.
Homens se tornam intelectuais porque sentem medo, não por estarem desesperados.
E a diferença entre sentir medo e estar desesperado é...
Bingo! – respondi. – Um intelectual!... minha bebida...
Um pouco mais tarde, contei a Hemingway sobre o meu telegrama purpúreo e então Vicki e eu saímos e voltamos para o nosso pássaro e para a nossa cama.
Não adianta – eu disse –, meu estômago está fodido e dentro dele reside nove décimos da minha alma.
Tente isto – disse Vicki, e me alcançou um copo de água com Alka Seltzer.
Vá dar uma volta por aí – eu disse –, não vou conseguir sair hoje.
Vicki saiu para seus passeios e voltou duas ou três vezes para ver se estava tudo bem. Estava tudo bem. Saí e comi e voltei com dois pacotes de seis cervejas e descobri que estava passando um filme antigo com Henry Fonda, Tyrone Power e Randolph Scott. De 1939. Eles eram todos tão jovens. Era incrível. Eu tinha dezessete anos naquela época. Mas, é claro, consegui cruzar a vida melhor do que eles. Eu continuava vivo.
Jesse James. A atuação era ruim, muito ruim. Vicki voltou e me contou uma série de coisas impressionantes e então se deitou na cama comigo e assistimos Jesse James. Quando Bob Ford estava prestes a atirar em Jesse (Ty Power) pelas costas, Vicki deixou escapar um gemido e correu para o banheiro para não ver a cena. Ford fez o que tinha de fazer.
Está tudo acabado – eu disse –, pode sair agora.
Esse foi o ponto alto de nossa viagem para Catalina. Aconteceu muito pouca coisa além disso. Antes de nossa partida, Vicki foi à Câmera de Comércio e lhes agradeceu por nos terem proporcionado uma estadia tão boa. Também agradeceu a mulher no bar de Davey Jones e comprou presentes para seus amigos Lita e Walter e Ava e seu filho Mike e algo para mim e algo para Annie e algo para o sr. e a sra. Croty e também para outras pessoas que já esqueci.
Embarcamos com nossa gaiola e nosso pássaro e nosso isopor de gelo e nossa mala e nossa máquina de escrever elétrica. Encontrei um lugar no fundo do barco e sentamos lá e Vicki estava triste porque as férias haviam acabado. Antes eu encontrara Hemingway na rua, e ele tinha me dado um aperto de mão hippie e me perguntado se eu era judeu e se iria voltar e eu disse que não quanto a ser judeu e que não sabia se iria voltar, dependia de Vicki, e ele disse “Não quero perguntar sobre seus assuntos pessoais”, e eu disse “Hemingway você realmente fala engraçado”, e o barco todo se inclinou para a esquerda e balançou e jogou, e um jovem, que parecia recém-saído de uma terapia de choque, caminhava por ali entregando sacos de vômito de papel para que as pessoas vomitassem. Pensei que talvez o hidroavião fosse melhor, apenas doze minutos e bem menos gente, e São Pedro lentamente foi se aproximando, civilização, civilização, poluição e assassinato, melhor, muito melhor, os loucos e os bêbados são os últimos santos que sobraram na Terra. Nunca andei a cavalo nem joguei boliche, também não vi os Alpes Suíços, e Vicki continuava me olhando com seu sorriso tão infantil, e pensei “Ela é realmente uma mulher surpreendente”, bem, já era hora de eu ter um pouco de sorte, e espichei minhas pernas e olhei bem em frente. Precisava dar outra cagada e decidi suspender a bebida.

Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum

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