Eu
tinha cinco anos na época, na mina Deuces Wild, em Montana. De
tantos em tantos meses, antes de nevar, meu pai e eu escalávamos as
montanhas, seguindo marcas que o velho Hancock tinha feito nas
árvores nos idos de 1890. Meu pai carregava um saco de lona com
café, fubá, carne-seca e outras coisas assim. Eu carregava uma
pilha de Saturday Evening Posts, durante boa parte do caminho
pelo menos. A cabana de Hancock ficava na beira de uma campina em
forma de cratera, bem no alto da montanha. Céu azul em cima e ao
redor dela. O cachorro dele se chamava Blue. O capim que crescia no
telhado caía como uma franja arrojada sobre a varanda onde eles
tomavam café e conversavam, passando minérios um para o outro,
apertando os olhos detrás da fumaça de cigarro. Eu brincava com
Blue e com as cabras ou colava folhas do Post nas paredes da cabana,
já cobertas de uma grossa camada de jornais velhos. Dispostas
uniformemente, umas em cima das outras em retângulos bem
organizados, as folhas de jornal revestiam o pequeno cômodo inteiro.
Aprisionado pela neve durante o longo inverno, Hancock lia suas
paredes, página por página. Se encontrava o final de um artigo,
tentava imaginar o que tinha vindo antes, ou procurava outras partes
dele nas páginas ao redor da cabana. Quando acabava de ler as
paredes todas, passava dias e dias colando mais jornal e depois
começava tudo de novo. Eu não tinha ido com o meu pai na primeira
escalada daquela primavera, quando ele encontrou o velho morto. As
cabras e o cachorro também, todos na cama dele. “Quando fico com
frio, eu puxo outra cabra pra cima de mim e pronto”, ele costumava
dizer.
“Vai,
Lu, só me leva até lá em cima e me deixa lá.” Era o que o meu
pai vivia implorando que eu fizesse quando eu o internei numa casa de
repouso. Ele só falava disso nessa época, das várias minas em que
tinha trabalhado, das várias montanhas. Idaho, Arizona, Colorado,
Bolívia, Chile. Ele estava começando a perder a lucidez então. Não
se limitava a se lembrar desses lugares, mas acreditava realmente
estar lá, naquela época. Achava que eu ainda era criança e falava
comigo como se eu tivesse a idade que eu tinha quando morávamos
nesses lugares. Dizia para as enfermeiras coisas como: “A Lu sabe
ler Nossos ajudantes camaradas inteirinho e ela só tem quatro
anos”. Ou “Ajude a moça a tirar a mesa, Lu. Boa menina”.
Eu
levava café com leite para ele todas as manhãs. Fazia a sua barba e
o penteava, andava com ele para cima e para baixo pelos corredores
fedorentos. A maior parte dos pacientes ainda estava na cama,
chamando, sacudindo as grades de proteção, apertando campainhas.
Velhinhas senis se masturbam. Depois de andar com ele, eu o amarrava
na sua cadeira de rodas, para que ele não tentasse fugir e caísse.
E eu fazia isso também. Quer dizer, não fingia nem concordava só
para agradar-lhe — eu de fato ia com ele para algum lugar. Para a
mina Trench nas montanhas acima da cidadezinha de Patagonia, no
Arizona: eu tinha oito anos e estava toda pintada com violeta de
genciana por causa de uma micose. À noitinha, nós todos íamos até
o penhasco para jogar latas fora e queimar o lixo. Um cervo, um
antílope ou até mesmo um puma às vezes chegavam perto de nós, sem
medo dos nossos cachorros. Bacuraus planavam diante do paredão
escarpado de rocha dos penhascos à nossa frente, ainda mais
avermelhados à luz do pôr do sol.
A
única vez em que o meu pai disse que me amava foi logo antes de eu
voltar para os Estados Unidos para fazer faculdade. Estávamos numa
praia na Terra do Fogo. Um frio antártico. “Nós trilhamos este
continente inteiro juntos… as mesmas montanhas, o mesmo oceano, de
alto a baixo.” Eu nasci no Alasca, mas não me lembro de lá. Ele
vivia dizendo que eu devia me lembrar, na casa de repouso, então
acabei fingindo que conhecia Gabe Carter, que me lembrava de Nome, do
urso que apareceu no acampamento.
No
início ele volta e meia perguntava da minha mãe, onde ela estava,
quando ela vinha. Ou então pensava que ela estava lá, conversava
com ela, me fazia dar uma garfada de comida para ela para cada
garfada que ele comia. Eu despistava. Dizia que ela estava fazendo as
malas, que ela já vinha. Quando ele melhorasse, todos nós íamos
morar juntos numa casa bem grande em Berkeley. Ele fazia que sim com
a cabeça, reconfortado, a não ser num dia, quando se virou para mim
e disse: “Você está mentindo descaradamente”. E depois começou
a falar de outra coisa.
Um
dia ele simplesmente a matou. Quando eu cheguei, ele estava deitado
na cama, chorando, encolhidinho feito um bebê. Ele me contou a
história como se estivesse em choque, com detalhes irrelevantes,
como quem testemunhou um acidente horrível. Eles estavam num barco a
vapor no Mississippi; minha mãe estava jogando pôquer na coberta.
Pessoas de cor agora tinham permissão para jogar e Florida (a
enfermeira dele) tinha ganhado o dinheiro deles todo, até o último
centavo. Minha mãe tinha apostado tudo, todas as economias que eles
haviam juntado a vida inteira, numa última mão de pôquer fechado.
Valetes de ouros e de espadas como coringas. “Eu já devia ter
desconfiado quando vi aquela safada rindo sem parar com aqueles
dentes de ouro dela, contando todo aquele dinheiro”, disse ele.
“Ela deu pelo menos uns quatro mil aqui para o John.”
“Cala
a boca, seu esnobe”, disse John da cama ao lado da do meu pai. Ele
tirou um tablete de Hershey de trás da sua Bíblia. John não tinha
permissão para comer doces; o tablete de chocolate era o que eu
tinha trazido para o meu pai no dia anterior. Os óculos de leitura
do meu pai estavam parcialmente escondidos debaixo do travesseiro de
John. Eu os resgatei. John começou a gemer e se queixar: “As
minhas pernas! As minhas pernas doem!”. Ele não tinha mais pernas.
Era diabético e elas tinham sido amputadas acima dos joelhos.
No
barco a vapor, meu pai estava no bar com Bruce Sasse (um operador de
sonda a diamante de Bisbee). Eles ouviram o tiro e, um bom tempo
depois, um chape na água. “Eu não tinha trocado para a gorjeta,
mas não queria deixar um dólar.” “Esnobe e pão-duro! É
típico! Típico!”, John resmungou da cama dele. Meu pai e Bruce
Sasse saíram correndo pelo barco e chegaram a boreste ainda a tempo
de ver a minha mãe boiando e ficando para trás. O sangue na esteira
do barco.
Ele
só chorou por ela naquele dia, mas passou semanas falando do
funeral. Milhares de pessoas tinham ido ao enterro. Nenhum dos meus
filhos tinha usado terno, mas eu estava muito bonita e fui gentil com
todos. Ed Titman, o embaixador americano no Peru, esteve lá;
Domingo, o mordomo, também; e até Charlie Bloom, o velho sueco que
morava em Mullan, Idaho. Charlie uma vez me disse que sempre botava
açúcar no mingau de aveia dele. Mas e se não tiver? Eu perguntei,
metida. Eu bota azim mesma.
O
dia em que meu pai matou minha mãe foi também o dia em que ele
parou de me reconhecer. Daí em diante ele passou a me dar ordens
como se eu fosse uma secretária ou uma criada. Um dia eu finalmente
perguntei a ele onde eu estava. Eu tinha fugido. Sangue ruim, uma
Moynihan que nem a minha mãe e o tio John. Eu simplesmente tinha me
mandado uma tarde, bem em frente à casa de repouso, e subido a Ashby
Avenue com um chicano inútil num Buick. O homem que ele descreveu
era, na verdade, um tipo moreno com pinta de malandro que eu acho
atraente.
Nessa
época, ele começou a ter alucinações a maior parte do tempo.
Cestos de lixo se transformavam em cachorros que falavam, sombras de
folhas de árvores nas paredes viravam soldados em marcha,
enfermeiras parrudas agora eram espiões travestidos. Ele falava
incessantemente sobre um tal de Eddie e um tal de pequeno Joe; nenhum
dos dois parecia ser ninguém que ele pudesse ter conhecido. Toda
noite eles viviam alguma aventura maluca e temerária num
navio-auxiliar estacionado ao largo de Nagasaki, em helicópteros que
sobrevoavam a Bolívia. Meu pai ria, descontraído e à vontade como
eu nunca o tinha visto.
Eu
chegava a rezar para que ele continuasse assim, mas ele estava
ficando cada vez mais racional, “orientado em relação a tempo e
lugar”. Falava muito de dinheiro. Dinheiro que ele tinha ganhado,
dinheiro que ele tinha perdido, dinheiro que ele ia ganhar. Ele me
via então como uma corretora, talvez, e tagarelava sem parar sobre
opções e porcentagens, rabiscando números na caixa de Kleenex
inteira. Margens e opções, notas do Tesouro, ações, títulos,
fusões. Condenava rancorosamente a filha (eu) por ter matado a
mulher dele e o trancafiado, só para ficar com o dinheiro dele.
Florida era a única enfermeira negra do hospital que ainda cuidava
dele. Ele acusava todas elas de roubarem, xingava-as de crioulinhas
ou de putas. Usava o urinol para chamar a polícia. Florida e John
tinham roubado todo o dinheiro dele. John o ignorava, lendo sua
Bíblia ou simplesmente deitado na cama, se contorcendo e gritando
“As minhas pernas! Senhor Jesus, faça as minhas pernas pararem de
doer!”.
“Shhh,
John”, disse Florida. “Isso é só dor fantasma.”
“Mas
é dor de verdade?”, eu perguntei a ela.
Ela
deu de ombros. “Toda dor é de verdade.”
Ele
conversava com Florida sobre mim. Ela ria, piscando para mim,
concordando. “Ela não vale nada mesmo.” Ele nos falou de todas
as maneiras como eu tinha sido uma decepção para ele, desde os
campeonatos de ortografia até os meus casamentos fracassados.
“Isso
está começando a mexer com você”, disse Florida. “Você parou
de passar as camisas dele a ferro. Daqui a pouco vai parar de vir
aqui também.”
Mas
eu me sentia mais próxima dele. Nunca tinha visto o meu pai
demonstrar rancor, preconceito nem obsessão por dinheiro. Aquele era
o homem cujos ídolos tinham sido Thoreau, Jefferson e Thomas Paine.
Eu não estava desiludida. O medo e a admiração reverente que eu
costumava sentir por ele estavam começando a desaparecer.
A
outra coisa de que eu gostava era que agora eu podia tocar nele.
Abraçá-lo e dar banho nele, cortar as unhas dos seus pés e segurar
a sua mão. Não dava mais trela para nada do que ele dizia. Ficava
abraçada com ele, ouvindo Florida e as outras enfermeiras cantarem e
rirem, enquanto Days of Our Lives bradava da sala de
recreação. Eu lhe dava gelatina e ouvia John ler passagens do
Deuteronômio. Nunca consegui entender como tanta gente que mal sabe
ler lê tanto a Bíblia. É difícil. Da mesma forma, me espanta que
costureiras do mundo inteiro consigam descobrir como pregar mangas e
zíperes.
Ele
comia no quarto dele e não se aproximava de forma nenhuma dos outros
pacientes. Eu sim, só para me distrair ou para não chorar. No
quadro de avisos havia um cartaz bem grande que dizia: Hoje é
________. O tempo hoje está ________. A próxima refeição é
________. O próximo feriado é ________. Durante dois meses ficou
sendo uma terça-feira chuvosa antes do almoço e da Páscoa, mas
depois disso os espaços passaram a ficar sempre em branco.
Uma
voluntária chamada Ada lia o jornal todas as manhãs. Virando uma
página atrás da outra, evitando crimes e violência. A maior parte
dos dias só o que sobrava para ela ler eram acidentes de ônibus no
Paquistão, Dennis, o Pimentinha e o horóscopo. Furacões em
Galveston. (Eu também não consigo entender como as pessoas ainda
continuam morando em Galveston depois de todos esses anos.) Comecei a
gostar dos outros pacientes. A maioria era mais senil ainda que o meu
pai, mas eles ficavam contentes de me ver, se agarravam a mim com
dedos minúsculos. Todos eles me reconheciam e cada um me chamava de
um nome diferente.
Continuei
a visitá-lo. Talvez por culpa, como Florida dizia, mas também com
esperança. Ficava esperando que ele me elogiasse, me perdoasse. Por
favor me reconheça, papai, diga que me ama. Ele nunca disse, e eu só
vou lá agora para levar apetrechos de barba, pijamas ou doces. Ele
não consegue mais andar. Como fica violento, eles o mantêm num
colete de contenção dia e noite.
A
última vez em que estive com ele de verdade foi no piquenique no
lago Merritt. Dez pacientes foram, com Ada, Florida, Sam e eu. Sam é
o zelador. (Chimpanzé, meu pai o chamava.) Nós levamos uma hora
para botá-los na van, as cadeiras de rodas subindo num ascensor que
rangia. Era o dia seguinte ao Memorial Day e estava muito calor.
Ainda nem tínhamos saído do lugar e a maioria deles já tinha feito
xixi; as janelas ficaram embaçadas. Os velhinhos riam,
entusiasmados, mas cheios de medo também, se encolhendo quando
ônibus passavam por nós, sirenes, motocicletas. Meu pai estava
bonito com um terno de algodão listrado, mas depois a parte da
frente ficou azul com a baba do Parkinson e uma mancha azul-escura se
espalhou por uma das pernas abaixo.
Eu
tinha imaginado que ficaríamos embaixo das árvores, na margem do
lago, mas Ada nos fez dispor as cadeiras de rodas num semicírculo
virado para a rua, perto do lago dos patos. Também imaginei que os
bêbados iriam sair de perto de nós, mas eles simplesmente
continuaram onde estavam, nos bancos em frente aos velhos. Alguns dos
pacientes sentiram cheiro de cigarro e pediram para fumar. Um dos
bêbados deu um cigarro para John, mas Ada tirou o cigarro dele e o
esmagou com o pé. Fumaça dos canos de descarga, rádios de carros
de cafetão, carros rebaixados e motocicletas. O chão vibrava com as
passadas dos corredores, que se amontoavam quando chegavam perto de
nós, correndo sem sair do lugar enquanto tentavam nos contornar. Nós
estávamos passando comida uns para os outros, dando de comer a quem
não conseguia comer sozinho. Salada de batata e galinha frita.
Beterraba em conserva e Ki-Suco. Florida e eu demos pratos de comida
para os quatro bêbados que estavam nos bancos, e Ada ficou furiosa.
Mas tinha comida de sobra. Sorvete napolitano derretido pingava nos
babadores. Lula e Mae só misturavam as cores do sorvete, brincando
com ele em seus colos. Meu pai era muito asseado quando comia, sempre
tinha sido meticuloso. Eu lavei cada um dos seus dedos. Ele tem mãos
lindas. Não sei por que eles vivem beliscando e puxando as próprias
roupas e cobertas. Isso é chamado de “carfologia”.
Depois
do almoço, uma mulher grande, com uniforme de guarda-florestal,
trouxe um filhote de guaxinim para nos mostrar e o passou entre nós.
Ele era macio, tinha um cheiro doce e todo mundo gostou dele, ou
melhor, todo mundo ficou apaixonado por ele, segurando-o no colo e
fazendo carinho, mas Lula o apertou tanto que ele acabou dando uma
unhada no rosto dela. “Raivoso!”, disse meu pai. “Minhas
pernas!”, John reclamou. O homem deu outro cigarro para John. Ada
não viu, porque estava guardando as travessas de comida na van. A
guarda-florestal entregou o guaxinim para os bêbados. O bichinho
obviamente já os conhecia, pois se enroscou em volta do pescoço de
um e de outro, calmo. Ada avisou que nós tínhamos vinte minutos
para levar os pacientes para dar uma volta pelo lago dos patos, ver
as gaiolas dos pássaros e subir a colina para ver a vista do lago lá
de cima.
Meu
pai sempre tinha tido paixão por pássaros. Estacionei a cadeira
dele em frente às corujas desgrenhadas e fiquei falando sobre os
vários pássaros e animais que tínhamos visto. O
porco-espinho-de-pelo-verde. O pica-pau-de-penacho-vermelho num
choupo-branco. Uma fragata ao largo de Antofagasta. Papa-léguas
cruzando, majestosos. Meu pai ficou sentado lá simplesmente, de
olhos baços. As corujas estavam dormindo ou então eram empalhadas.
Eu fui em frente, empurrando a cadeira. Todos os outros estavam
animadíssimos, gritando e acenando para nós. John estava se
divertindo a valer. Florida tinha feito amizade com um corredor, que
havia lhe emprestado o gravador dele. Lula segurava o gravador e
cantava, enquanto eles davam comida para os patos.
Era
difícil empurrar a cadeira colina acima. Estava quente e barulhento,
com os carros, os rádios e o constante tum-tum-tum das passadas dos
corredores. Estava tão enevoado e enfumaçado que mal dava para ver
a outra margem. Lixo e entulho do Memorial Day. Copos de papel
flutuavam no lago marrom e espumoso, serenos como cisnes. No topo da
colina eu puxei os freios da cadeira do meu pai e acendi um cigarro.
Ele estava rindo, um riso feio.
“É
horrível, não é, papai?”
“Se
é, Lu.”
Ele
afrouxou os freios e a cadeira começou a deslizar pelo caminho de
lajotas. Eu hesitei, fiquei parada olhando, mas depois joguei o
cigarro fora e segurei a cadeira dele bem na hora em que ela estava
pegando velocidade.
Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos
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