terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Como diz o profeta: todos estão construindo os grandes navios e os barcos

O imperador reina no topo da colina, flanqueado pelos templos de seus mumificados confrades, cada qual com o próprio sumo sacerdote. Degraus de pedra e rodovias ligam cada pico ao longo da cordilheira. Grandes cidades crescem e brilham. Nas encostas, as fazendas, e abaixo delas, contra a costa, tão improvável quanto um pé de romã, naquele local, um porto marítimo.
Há comércio costeiro, é claro, e barcos de junco ocupam os lagos das terras altas. Marinheiros e pescadores quíchuas sabem das formas do vento, podem navegar em qualquer tempestade, se consideram à altura das ondas. O horizonte do oceano ocidental sempre lhes pareceu uma muralha: para além dele, descansa o fim do mundo. Mas um gênio que passou a vida contando os caminhos das estrelas e juntando pedaços de madeira e mato trazidos à praia pelas tempestades tem uma teoria de que outra terra aguarda do outro lado da água. Outra gênia, uma década mais velha do que o primeiro, descobriu um método de entrelaçar o junco de maneira mais forte e mais durável do que qualquer uma de suas mães já conseguira; com isso, uma equipe sob seu comando pôde construir um barco grande o suficiente para carregar uma vila.
De que serve uma terra do outro lado da água, homens jovens perguntaram ao primeiro gênio, quando não temos como chegar lá? Seria o mesmo que tentar chegar à lua.
De que serve para a pesca costeira, jovens homens perguntaram à segunda gênia, um barco que pode carregar uma vila inteira?
Felizmente, gênios entendem que homens jovens são quase sempre tolos.
Então procuraram o ser mais sábio que conheciam: cada um, separadamente, subiu os muitos milhares de degraus até o cume, e no dia da audiência se ajoelharam ante o então bisavô do imperador, mumificado em seu trono, enfeitado com ouro e joias, radiante em sua idade e autoridade, e ofereceram a ele seus presentes. E os sacerdotes secretos que esperam atrás do trono do imperador não são jovens, nem são eles todos homens, e conseguem enquadrar dois pontos em uma linha.
Então é divulgada a ordem do bisavô-imperador, um porto é construído, e marinheiros chegam, atraídos pela aventura. (Aventura funciona em qualquer filamento — tem apelo para aqueles que se importam mais com viver do que com suas vidas.) Eles navegarão juntos a um novo mundo. Navegarão juntos a uma terra de monstros e de milagres. As correntes guiarão seus imensos navios carregados de prata e tapeçarias, com trama e destino.
Red trama juncos com dedos tão calejados quanto a madeira. Ela foi uma das primeiras estudantes da segunda gênia, a encorajou para procurar a ajuda do bisavô-imperador e a segurou pelo braço enquanto subiam. Ela não é nenhuma guerreira ali, nenhuma general; é uma mulher mais alta do que o normal, que um dia saiu da floresta nua e sozinha e recebeu abrigo. Ela trama e tece bem, porque aprendeu. Quando terminar esse navio, o modelo de produção, grande o suficiente para comportar pelo menos duas vilas — então ele navegará, e ela vai navegar com ele, porque alguém precisa cuidar das tramas se elas se quebrarem.
Há um jogo delicado se desenrolando nesse filamento. Enquanto ela trama e pensa, decide que o descreveria usando termos do jogo de Go: você coloca cada pedra esperando que muitas coisas aconteçam. Uma investida é também um bloqueio, que é também uma investida diferente. Uma confissão é também um desafio, que é também uma coação.
Será que o povo de Tawantinsuyu enfrentará o oceano que seus assassinos um dia chamarão de Pacífico e, encontrando as correntes rápidas, viajará para as Filipinas, ou até mais longe, como outros viajaram antes? Será que eles, ao cruzarem águas tão inexploradas que tudo o que uma mulher precisa fazer para comer é lançar a mão sob as ondas e pegar um peixe inquieto e prateado, vão encontrar novas civilizações e fazer conquistas, ou arrumar aliados? Será que essa aliança e comércio, estendidos pelo Pacífico, vão salvar Tawantinsuyu quando as grotescas velas de Pizarro surgirem do sul? Será que, ao menos, ter logo contato com a pragas da Eurásia fortalecerá esse povo contra elas?
Ou: será que os comerciantes irão mais longe, até a China comandada pelos Ming, prestes a se recuperar de uma enorme crise monetária que botará o império de joelhos — uma crise monetária provocada pela taxa de câmbio flutuante entre o cobre e a prata, da qual o povo de Tawantinsuyu tem uma ampla oferta? Estabilizados, será que os Ming vão se esquivar do ciclo de quatro séculos de ascensão e queda dos impérios e resistir, crescendo, se transformando, se expandindo para acompanhar o ritmo lento do Iluminismo no Ocidente e sua presunçosa Revolução Industrial?
Talvez. Pouco provável — mas é preciso aproveitar toda e qualquer chance. A Agência não está contente. Outros agentes foram capturados ou mortos, apagados da trama ou isolados em filamentos nos quais é melhor não pensar. Não Red. Ainda não. Mas ela precisa trabalhar mais rápido.
As mãos de Red escorregam sobre os nós. Ela não está apenas pensando. Está explicando. E para quem ela está explicando? Bem.
Ela olha para o encontro do céu e do mar.
Fica de pé.
Vai embora.
Ela se sente observada. Talvez a Comandante a esteja observando? E se estiver, para quê? Ela tem sido tão cuidadosa. Nem mesmo pensa no nome do céu com frequência.
Um velho a alcança passeando pela praia e oferece tecidos para velas. Ela vai passando um a um: fraco demais, fraco demais, fraco demais, áspero demais, e esse aqui — o que é isso? Amarfanhado e irregular, mais um crochê do que um trançado.
Este aqui — ela diz.
Quando o sol se põe no Oeste, ela se acomoda em uma pedra e desenrola a linguagem dos nós por entre seus dedos duros como carvalhos. Ela sente cada letra e palavra e pensa em quanto tempo o céu e o mar passaram torcendo essa linha, e quem a ensinou o código dos nós, para começar, se ela mordeu o lábio em frustração enquanto tentava transpor uma passagem difícil.
Quando o sol já se pôs, ela pega o fio desfeito, corta em pedaços do mesmo tamanho e joga cada um na maré baixa.
As estrelas brilham, e a lua. Uma forma escura desliza sobre as ondas claras e mergulha. Um por um, a rastreadora junta os pedaços e os amarra em seu pulso, tão apertado que seus dedos empalidecem e se enrijecem. Ela fecha o punho, tensiona. Sua pele se abre sob a linha e se fecha novamente sobre ela.
Red, que esperou imóvel na costa desde o pôr do sol, vê algo parecido com uma foca, contra as ondas de luz, e pondera.

Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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