sábado, 22 de janeiro de 2022

Cenário e substrato social e Personagentes em "Primeiras Estórias"

Cenário e substrato social

A maioria dos contos desenrola-se numa região não especificada, mas identificável como a das obras anteriores do autor: o mundo da sua infância e da sua mocidade. Menos onipresente do que naquelas, onde chega a desempenhar papel de protagonista, o cenário é esboçado com poucos toques, mas de extrema precisão. Sunt nomina rebus: bichos e plantas têm nome e atributos seguros; costumes e hábitos, misteres e fainas revivem na sua autenticidade minuciosa. As cenas enquadram-se na moldura de altos morros e vastos horizontes, amplos rios margeados de brejos, campos extensos de muito pastoreio e escassa lavoura, fazendas enormes — as do Pãodolhão, do Torto-Alto, do Casco, Congonha, Santa-Cruz-da-Onça, Lagoa-dos-Cavalos — forçosamente auto-suficientes, que se abastecem a si mesmas de víveres, artigos de primeira necessidade, folguedos, superstições e justiça. Acostumados a não encontrarem vivalma por muitas léguas, fazendeiros e agregados, desconfiados e pouco comunicativos, tornam-se reticentes mesmo no recesso da família; a falta de intercâmbio aparta-os dos demais; acabam encaramujando-se. Do ensimesmamento ao isolamento, deste à mania, o caminho é direto; os taciturnos calam-se de vez, e um dia surpreendem a família com o estouro da sua demência.
Nos intervalos das fazendas ocultam-se arraiais pobres, de reduzida povoação — o arraial do Breberê, o povoadinho do M’en-gano, o lugar chamado o Temor-de-Deus — sem quaisquer recursos de organização social. A lei do mais forte — a única existente — é exercida na fazenda sob formas paternalísticas pelo dono, assistido, para o que der e vier, dos rifles certeiros de alguns capangas; nas vilas, pelos valentões do lugar, detestados e temidos; nas escassas cidadezinhas, pela polícia local, que, para fazer-se respeitar, tem de pedir emprestados os métodos de arbitrariedade. Em contato com os elementos imemoriais da paisagem, nuvens e ventos, montes de perfil invariável, sendas de largura constante, as mesmas árvores, o mesmo gado, a vida corre numa rotina secular, regulamentada por vetustos códigos de honra que determinam inflexivelmente os deveres do parentesco, da amizade e da hospitalidade, assim como os da inimizade e do ódio.
Os vastos espaços desertos são povoados pelos devaneios da imaginação. Os riscos e os imprevistos da dura vida do dia-a-dia produzem resignação e fatalismo. Nos casarões da fazenda encontram-se à mesa parentes, amigos e comensais de incerta procedência; acotovelam-se crianças e macróbios sobreviventes de tempos idos; acolhem-se e escondem-se fugitivos; dissimulam-se segredos do clã. As raras quebras do ramerrão são motivos de alvoroço, espetáculo para os basbaques, agitação para os insofridos. A sede do sobrenatural gera santos e suscita milagres, matiza a religião de variantes animísticas.

Personagentes

Ocupar-me-ei mais adiante dos neologismos de Guimarães Rosa e da probabilidade de eles se incorporarem ao idioma. Em todo o caso, “personagente”, mais que personagem e menos que protagonista, é dos que poderiam introduzir uma nuança útil na nomenclatura da crítica.
Pois bem, na multidão de figurantes de Primeiras estórias, os “personagentes” quase todos pertencem a duas categorias, a de loucos e a de crianças. Os da primeira são particularmente numerosos. Rodeados da áurea de sapiência e santidade de que os cerca o povo, exibem infindáveis esfumaturas e gradações da demência. Impossível traçar, aliás, a linha de demarcação entre esta última e a normalidade, tanto mais quanto por vezes a mais previdente e calculadora sabedoria se disfarça em mania (“Nada e a nossa condição”), enquanto a loucura pode heroicamente adotar soluções de bom senso que a razão pusilânime não ousa levar em consideração (“A benfazeja”) ou recorre a ardis de incrível sagacidade (“O cavalo que bebia cerveja”). Desmascarada e refreada quando irrompe num ímpeto (“Darandina”), a alienação é aceita como parte dolorosa da rotina da vida quando se declara paulatinamente (“A terceira margem do rio”). Ao contista suas variantes interessam não como casos clínicos (embora frequentemente revele conhecimentos fora do comum, relacionados com seus antecedentes de médico), e sim como campo propício à invasão do irreal, do irracional, do mágico — numa palavra, da poesia. E, na medida em que permanece acessível a esses poderes, o homem “normal” tem seus instantes de exaltação. Assim, quando Sorôco, após despachar a mãe e a filha loucas, retoma por sua vez a desatinada canção trauteada por elas, a multidão circundante imita-o sem querer. E o velho Iô João de Barros Diniz Robertes, “encostado, em maluca velhice” e “aprazado de moribundo”, quando sai da modorra senil para uma última e quixotesca cavalgada, arrasta atrás de si uma multidão magnetizada. “Ninguém é doido. Ou, então, todos.” A loucura enche os vazios da vida, solta fogos de artifício, escancara os horizontes.
Ao lado dos doidos, as crianças formam grupo menor, mas importante, “estrelando” cinco estórias. Elas “fazem parte de uma curiosa estirpe de personagens, preludiada por Miguilim e Dito, de ‘Campo Geral’, e à qual pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados de poderes extraordinários, quando não possuem origem oculta ou vaga identidade” (Benedito Nunes). Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se deslumbrem com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. Nos contos inicial e final realiza-se a gageure de fazer desfilar pela sensibilidade de um menino, com o pensamentozinho “ainda na fase hieroglífica”, os grandes problemas existenciais do bem e do mal, e, através da sua decifração, é transmitida uma mensagem de otimismo e de fé. Alhures, Nhinhinha, crescida no isolamento da roça, é, por isso, isenta da visão convencional dos fenômenos, vislumbra-lhes os segredos em acenos que, para a testemunha culta, são manifestações elementares de lirismo, e, para os parentes simplórios, emanações de santidade. Brejeirinha, seu oposto na vivacidade da inteligência, mas sua parenta no frescor da imaginação associativa, encontra tanto divertimento nas palavras como nos objetos, utilizando umas e outros como brinquedos. (Poder-se-iam ver nas duas meninas as encarnações da poesia popular e da erudita.)
Pela evocação de vivências análogas às de todos nós, assistimos com curiosidade total à aventura dos meninos atores de “Pirlimpsiquice”, exemplo de virtuosismo em seu ritmo arrebatado, estudo de psicologia juvenil, mas também relato de um desses milagres do cotidiano que são o domínio específico do autor. A embriaguez desses colegiais entregues à elaboração de uma “sobrepeça” à margem da peça que ensaiam é extraordinária, e contudo tão plausível quanto à experiência do Menino que, transportado para a grande cidade que se ergue do chão num lance de mágica, teima em ver o milagre em dois perus e num tu-cano.

Paulo Rónai, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa 

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