Cenário e substrato social
A
maioria dos contos desenrola-se numa região não especificada, mas
identificável como a das obras anteriores do autor: o mundo da sua
infância e da sua mocidade. Menos onipresente do que naquelas, onde
chega a desempenhar papel de protagonista, o cenário é esboçado
com poucos toques, mas de extrema precisão. Sunt nomina rebus:
bichos e plantas têm nome e atributos seguros; costumes e hábitos,
misteres e fainas revivem na sua autenticidade minuciosa. As cenas
enquadram-se na moldura de altos morros e vastos horizontes, amplos
rios margeados de brejos, campos extensos de muito pastoreio e
escassa lavoura, fazendas enormes — as do Pãodolhão, do
Torto-Alto, do Casco, Congonha, Santa-Cruz-da-Onça,
Lagoa-dos-Cavalos — forçosamente auto-suficientes, que se
abastecem a si mesmas de víveres, artigos de primeira necessidade,
folguedos, superstições e justiça. Acostumados a não encontrarem
vivalma por muitas léguas, fazendeiros e agregados, desconfiados e
pouco comunicativos, tornam-se reticentes mesmo no recesso da
família; a falta de intercâmbio aparta-os dos demais; acabam
encaramujando-se. Do ensimesmamento ao isolamento, deste à mania, o
caminho é direto; os taciturnos calam-se de vez, e um dia
surpreendem a família com o estouro da sua demência.
Nos
intervalos das fazendas ocultam-se arraiais pobres, de reduzida
povoação — o arraial do Breberê, o povoadinho do M’en-gano, o
lugar chamado o Temor-de-Deus — sem quaisquer recursos de
organização social. A lei do mais forte — a única existente —
é exercida na fazenda sob formas paternalísticas pelo dono,
assistido, para o que der e vier, dos rifles certeiros de alguns
capangas; nas vilas, pelos valentões do lugar, detestados e temidos;
nas escassas cidadezinhas, pela polícia local, que, para fazer-se
respeitar, tem de pedir emprestados os métodos de arbitrariedade. Em
contato com os elementos imemoriais da paisagem, nuvens e ventos,
montes de perfil invariável, sendas de largura constante, as mesmas
árvores, o mesmo gado, a vida corre numa rotina secular,
regulamentada por vetustos códigos de honra que determinam
inflexivelmente os deveres do parentesco, da amizade e da
hospitalidade, assim como os da inimizade e do ódio.
Os
vastos espaços desertos são povoados pelos devaneios da imaginação.
Os riscos e os imprevistos da dura vida do dia-a-dia produzem
resignação e fatalismo. Nos casarões da fazenda encontram-se à
mesa parentes, amigos e comensais de incerta procedência;
acotovelam-se crianças e macróbios sobreviventes de tempos idos;
acolhem-se e escondem-se fugitivos; dissimulam-se segredos do clã.
As raras quebras do ramerrão são motivos de alvoroço, espetáculo
para os basbaques, agitação para os insofridos. A sede do
sobrenatural gera santos e suscita milagres, matiza a religião de
variantes animísticas.
Personagentes
Ocupar-me-ei
mais adiante dos neologismos de Guimarães Rosa e da probabilidade de
eles se incorporarem ao idioma. Em todo o caso, “personagente”,
mais que personagem e menos que protagonista, é dos que poderiam
introduzir uma nuança útil na nomenclatura da crítica.
Pois
bem, na multidão de figurantes de Primeiras estórias, os
“personagentes” quase todos pertencem a duas categorias, a de
loucos e a de crianças. Os da primeira são particularmente
numerosos. Rodeados da áurea de sapiência e santidade de que os
cerca o povo, exibem infindáveis esfumaturas e gradações da
demência. Impossível traçar, aliás, a linha de demarcação entre
esta última e a normalidade, tanto mais quanto por vezes a mais
previdente e calculadora sabedoria se disfarça em mania (“Nada e a
nossa condição”), enquanto a loucura pode heroicamente adotar
soluções de bom senso que a razão pusilânime não ousa levar em
consideração (“A benfazeja”) ou recorre a ardis de incrível
sagacidade (“O cavalo que bebia cerveja”). Desmascarada e
refreada quando irrompe num ímpeto (“Darandina”), a alienação
é aceita como parte dolorosa da rotina da vida quando se declara
paulatinamente (“A terceira margem do rio”). Ao contista suas
variantes interessam não como casos clínicos (embora frequentemente
revele conhecimentos fora do comum, relacionados com seus
antecedentes de médico), e sim como campo propício à invasão do
irreal, do irracional, do mágico — numa palavra, da poesia. E, na
medida em que permanece acessível a esses poderes, o homem “normal”
tem seus instantes de exaltação. Assim, quando Sorôco, após
despachar a mãe e a filha loucas, retoma por sua vez a desatinada
canção trauteada por elas, a multidão circundante imita-o sem
querer. E o velho Iô João de Barros Diniz Robertes, “encostado,
em maluca velhice” e “aprazado de moribundo”, quando sai da
modorra senil para uma última e quixotesca cavalgada, arrasta atrás
de si uma multidão magnetizada. “Ninguém é doido. Ou, então,
todos.” A loucura enche os vazios da vida, solta fogos de
artifício, escancara os horizontes.
Ao
lado dos doidos, as crianças formam grupo menor, mas importante,
“estrelando” cinco estórias. Elas “fazem parte de uma curiosa
estirpe de personagens, preludiada por Miguilim e Dito, de ‘Campo
Geral’, e à qual pertencem infantes de extrema perspicácia e
aguda sensibilidade, muitas vezes dotados de poderes extraordinários,
quando não possuem origem oculta ou vaga identidade” (Benedito
Nunes). Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se
deslumbrem com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos
mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. Nos contos
inicial e final realiza-se a gageure de fazer desfilar pela
sensibilidade de um menino, com o pensamentozinho “ainda na fase
hieroglífica”, os grandes problemas existenciais do bem e do mal,
e, através da sua decifração, é transmitida uma mensagem de
otimismo e de fé. Alhures, Nhinhinha, crescida no isolamento da
roça, é, por isso, isenta da visão convencional dos fenômenos,
vislumbra-lhes os segredos em acenos que, para a testemunha culta,
são manifestações elementares de lirismo, e, para os parentes
simplórios, emanações de santidade. Brejeirinha, seu oposto na
vivacidade da inteligência, mas sua parenta no frescor da imaginação
associativa, encontra tanto divertimento nas palavras como nos
objetos, utilizando umas e outros como brinquedos. (Poder-se-iam ver
nas duas meninas as encarnações da poesia popular e da erudita.)
Pela
evocação de vivências análogas às de todos nós, assistimos com
curiosidade total à aventura dos meninos atores de “Pirlimpsiquice”,
exemplo de virtuosismo em seu ritmo arrebatado, estudo de psicologia
juvenil, mas também relato de um desses milagres do cotidiano que
são o domínio específico do autor. A embriaguez desses colegiais
entregues à elaboração de uma “sobrepeça” à margem da peça
que ensaiam é extraordinária, e contudo tão plausível quanto à
experiência do Menino que, transportado para a grande cidade que se
ergue do chão num lance de mágica, teima em ver o milagre em dois
perus e num tu-cano.
Paulo Rónai, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa
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