terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A sibila


As ferramentas de trabalho estão na sala do delegado: um relógio de pulso de ouro, as luvas, um arame, uma caixa de madeira com chaves, a lanterna, a pinça, a chave de fenda e uma malinha (para parecer mais sério, levo sempre uma malinha). Armas? Nunca quis usá-las. Para que me servem as mãos?, eu costumo dizer. São garras de ferro; se não estrangulam, dão socos como Deus manda.
Eu andava desanimado ultimamente. Há muita competição e pobreza. E quem é que não sabe disso! A vida de um açougueiro é menos sacrificada que a nossa. De noite, às vezes não tinha vontade de sair e rondar pelos quarteirões para conhecer um determinado bairro de Buenos Aires, ou uma casa; era francamente tedioso. Do Barrio Norte, gosto de Palermo, porque tem fontes e lagos onde a gente bebe e lava as unhas de alguns dedos; do Barrio Sur, Constitución, sem dúvida, porque lá conheci meus colegas na escada rolante, subindo e descendo, descendo e subindo, entregues a nossas ocupações. Eu me sentava nas praças, comendo laranjas ou pão; salame, quando tinha sorte, ou queijo fresco. Às vezes os transeuntes me olhavam como se vissem algo esquisito em mim. Não uso barba comprida até o umbigo nem ando com os dedos dos pés para fora, nem tenho pintas grandes entre as sobrancelhas, nem dentes de ouro. Outro dia perguntei a um fulano: “Está olhando o quê?”, esquecendo minha responsabilidade, minha idade, minha situação. Talvez minhas calças de tecido azul sejam chamativas, porque levam, em vez de botões na braguilha, um fecho ecler: tudo o que se faz para não chamar atenção chama atenção. O que se há de fazer?! Se deslizo como um verme, todo mundo repara em como caminho, se me visto como um porco, da cor das árvores ou das paredes ou da terra, todo mundo repara em meu traje. Se trato de não elevar a voz, Deus me livre!, todo mundo estica a orelha para me ouvir. Tomar sorvetes acaba sendo impossível para mim. As mocinhas me olham e se cutucam com o cotovelo. Às vezes ser simpático com as mulheres não é agradável; tenho que escutar asneiras o dia todo. Felizmente não ouço nada em uma das orelhas. Fiquei surdo aos dezesseis anos. Perfuraram meu tímpano com uma farpa. Vivíamos com meus pais em Punta Chica, em uma casa de palafitas. Meu pai, que é mal-humorado, e meus irmãos, que são casca-grossa, uma noite em que de brincadeira pus uns bagres na cama deles, deram uma de machões, me deitaram no chão e, enquanto uns me seguravam, outro me cravou a farpa dentro da orelha. Depois, naturalmente, para que eu não falasse, me meteram em um saco, que atiraram ao rio. Os vizinhos me salvaram. Achei estranho. Em seguida soube que fizeram isso para me fazer falar. Bando de curiosos! Todo mundo me odeia, a não ser as mulheres; no entanto, a srta. Rómula, que vive no armazém, me interpelou porque um dia matei um gato com uma paulada só, na porta de seu quarto:
Mal-educado — me disse —, não pode fazer essas coisas em outro lugar?
Que incômodo lhe causaria umas gotinhas de sangue no chão? Dá para limpar em dois segundos. Nunca me perdoou. É uma preguiçosa, isso sim. Quando me empregaram na farmácia Firpo, as pessoas já começaram a me olhar como alguém que chama atenção. “Lesma” era como me chamavam quando eu corria, “Trem expresso”, quando me demorava, “Seboso”, quando eu tinha tomado banho, “Palmolive”, quando não tinha. Mas o que mais me deixou indignado foi quando me chamaram de “Pizza”, injustamente, porque me viram comendo, enquanto eu separava os produtos, um pedaço de colomba pascal que Susana Plombis me deu, para levar no bolso, quando tivesse fome, na minha bicicleta.
Foi naquela época que conheci muitas casas por dentro. Nenhuma me impressionou tanto quanto a de Aníbal Celino; talvez por eu ter entrado pela porta principal. Nas outras casas eu tinha que entrar pela cozinha. Guardo algumas colherinhas, alguns saleirinhos de prata, que subtraí das gavetas enquanto as criadas buscavam o dinheiro para pagar a conta, e que não me serviram de nada. A casa de Aníbal Celino era um palácio, nem mais nem menos. A primeira vez que me mandaram para lá com um pacote da farmácia Firpo, achei que a porta de serviço era a principal e corri a procurar a outra, acreditando que era a de serviço, porque estava suja. Conheço bem as casas de hoje. Casa cheia de luxo, casa suja. A porta estava fechada e se abriu quando bati com a aldraba, que era um leão de bronze mastigando um aro, também de bronze. Entrei na casa e não vi ninguém. Voltei a sair e no jardim vi as perucas descabeladas das palmeiras. Que árvores! Nem um cachorro iria gostar delas. Entrei outra vez: não havia ninguém. A porta se abriu sozinha. Então tropecei na escada de mármore que tinha uma balaustrada lustrosa, como o leão da porta. Dei alguns passos e entrei numa sala enorme, cheia de cristaleiras; aquilo parecia uma loja ou uma igreja. Em todo canto viam-se estátuas, bomboneiras, miniaturas, colares, leques, relicários, bonequinhos. Já em minha mão, porque sou distraído, vi uma bomboneira de ouro com turquesas; guardei no bolso; depois, em outro bolso, guardei uma estatueta que brilhava sobre uma mesa (meus bolsos têm fundo falso, por via das dúvidas. Rosaura Pansi se ocupa em forrá-los. Dou a ela muitos presentes e a pobrezinha fica agradecida até dizer chega). Quando saí do salão, ouvi um barulhinho na escada, como que de rato. Meu coração parou, porque vi uma menina muito novinha sentada no último degrau, olhando para mim com cara de cigana. Achei graça.
Trago aqui um pacote da farmácia Firpo — disse a ela.
Que pena! — me respondeu. — Então você não é o Senhor.
Como assim não sou um senhor? Sou o quê, então? Trago um frasco de álcool, magnésia e pó de arroz — eu disse, lendo a fatura.
Esta não é a porta de serviço. Saia — disse ela, arrancando de minhas mãos a fatura e olhando-a. — Vá até a esquina. Lá vão atendê-lo.
Eu bem gostaria de ter estrangulado aquela garota; era branca e suave como um anjo de porcelana que vi uma vez na vitrine de uma loja de arte sacra.
As portas não são todas iguais?
Todas — ela respondeu —, menos a do céu.
E então por que você não recebe o pacote e paga?
Porque não tenho dinheiro para pagar contas. Tenho dinheiro para dar, ou perder.
Dar a quem?
Dar a qualquer um que não seja da minha família, nem de minhas amizades.
Perder como?
Perder? De mil maneiras.
Tirou do bolso do avental um moedeiro com dinheiro, pôs as moedas em fila sobre o degrau.
As moedas a gente perde ao jogar para tirar a sorte — ela me disse —, nas fontes ou em qualquer lugar, a questão é que se perdem. Para que servem?
Ela me pareceu um pouco menos repugnante, e lhe disse:
Adeus, Micifús.
Meu nome é Aurora — respondeu com voz autoritária.
Que culpa tenho eu se você tem olhos de gato? Ficou brava?
Não me respondeu e subiu as escadas aos pulos.
Durante muito tempo não voltei a ver Aurora, por mais que de vez em quando eu fosse à casa, levar produtos.
Quando me despediram da farmácia Firpo, conheci Canivete e Torno. Nós nos entendíamos, não posso dizer que como irmãos, dado o fuzuê que me aconteceu com os meus; nos entendíamos como amigos inseparáveis, isso quer dizer que às vezes não podíamos nos olhar frente a frente diante das pessoas sem rirmos feito doidos.
A verdade é que tudo era uma diversão. Não demorei a contar a eles sobre a casa de Aníbal Celino e de Aurora, ao passar pela Calle Canning. Enumerei os objetos que eu tinha visto lá. Foi um verdadeiro inventário!, porque nenhuma das riquezas do palácio tinha passado inadvertida por mim. Canivete me olhou desanimado:
Quanta quinquilharia! E para que queremos isso? — disse.
Mas Torno, que é mais entendido, ficou com os olhos acesos e sussurrou, com aquela voz que soava como um silvo na noite:
Qualquer hora dessas, entraremos lá esta semana.
Tomamos, cada um, oito sorvetes e fomos para o jardim zoológico, para olhar os macacos. O sol castigava. Paramos para ouvir a musiquinha do carrossel, porque Torno gosta de qualquer musiquinha. Pudera: o pai tocava bandoneon. Como se estivesse pensando em outra coisa, ele planejava o assalto.
Durante vários dias, como era nosso costume, andamos vagando pelo bairro onde fica a casa. Passei um dia inteiro sentado sobre os restos de um muro destruído de um terreno baldio, vendo o movimento das pessoas que saíam e entravam. Não tinha nenhum vigia na esquina, por sorte. O único perigo, talvez, era o silêncio do quarteirão. O calor me obrigou a tirar a camisa: ninguém me disse nada, porque suar deixa as pessoas distraídas.
Por fim chegou a noite esperada. Eu tinha que entrar primeiro na casa, porque a conhecia e porque sou menos nervoso. Canivete e Torno ficariam do lado de fora, escondidos detrás das plantas, com uma bolsa vazia, onde colocaríamos os objetos adquiridos. Eu tinha que avisá-los com um psiu se a entrada deles estivesse liberada. Comemos às mil maravilhas aquela noite, com vinho tinto e grapa ao final. Custou-nos caro a festa.
Depois de algumas discussões sobre a hora conveniente para entrar na casa de Aníbal Celino, consultando o relógio a cada quinze minutos, nos encaminhamos para a Calle Canning e paramos em frente ao jardim de nossa casa, como se tivéssemos nos perdido. Canivete e Torno saltaram bruscamente a cerca do jardim e se esconderam entre umas plantas. Eu me protegi na escuridão da entrada, com a gazua já na mão. A cara brilhante do leão que mascava o aro me distraiu de minha tarefa por um instante; a porta se abriu de repente. Retrocedi num salto e me escondi entre as plantas, mas a porta permaneceu aberta. Durante um tempo longuíssimo, um relógio deu as horas com variadíssimas badaladas, em seguida um quarto de hora e então meia hora. Arranhando todo o tornozelo em uma maldita ramagem, esperei que alguma coisa acontecesse. Nada aconteceu; silêncio e mais silêncio, os olhos consumidos de sono, formigas me subindo pelas pernas até o umbigo. Esperei outros quinze minutos e me aproximei da porta, que permanecia aberta. Entrei na casa e acendi a lanterna. Fiz girar o foco de luz ao meu redor e o detive sobre a escada: em um dos degraus estava sentada Aurora. Acho que foi a primeira vez na minha vida que me assustei: parecia uma verdadeira anã, pois usava um camisolão longo e os cabelos recolhidos na ponta da cabeça. Como se estivesse me esperando, veio até mim e me disse ao ouvido:
Você é o Senhor. Faz muito tempo que o espero.
Comecei a tremer e perguntei baixinho:
Espera por quem?
Então, como se não escutasse o que eu estava dizendo, me disse, agitando uma de suas pernas, que parecia a de um gato quando limpa a cara:
Clotilde Ifrán está me esperando.
Quem é Clotilde Ifrán? Onde está?
Está no céu. É uma vidente que leu minhas mãos. Quando morreu, estava deitada em uma cama linda, em sua loja. Vendia corpetes. Fazia cintas e corpetes para mulheres e tinha as gavetas de seu quarto cheias de fitas azuis e rosadas, elásticos e broches, botões por todo lado. Quando eu ia à casa dela com mamãe e a ficava esperando, ela me deixava brincar com tudo, e às vezes, quando eu faltava à escola e mamãe ia ao teatro ou Deus sabe onde, eu ficava na casa de Clotilde Ifrán, para que ela cuidasse de mim. E aí, sim, eu me divertia. Ela não só me dava bombons e me deixava brincar com agulhas, com as tesouras e as fitas, como também lia minhas mãos e tirava cartas para mim. Um dia, estava jogada na cama, pálida como um susto, e me disse: “O Senhor virá me buscar, também virá por sua causa: e então nos encontraremos no céu”. “E vamos nos divertir como nos divertimos aqui?”, perguntei a ela. “Muito mais”, me respondeu; “porque o Senhor é muito bom.” “E quando ele virá me buscar?” “Não sei nem quando nem como, mas vou já jogar as cartas para saber”, me respondeu. No dia seguinte, uns cavalos negros enormes a levaram ao cemitério de Chacarita em um carro cheio de adornos negros, com flores, e não a vi mais, nem em sonho. Você é o Senhor do qual ela sempre me falava, para quem não havia portas. Você quis comprovar minha lealdade, não é mesmo?, quando trouxe aquele pacote da farmácia Firpo. Você é o Senhor, porque tem a barba comprida.
Hei de ser, se você diz.
Um Senhor, a quem devemos dar tudo o que temos.
Levaremos coisas brilhantes e bonitas, não é mesmo?
Colocaremos tudo dentro de uma cestinha de piquenique. Me espere.
Aurora voltou com uma cestinha. Entramos na sala. Ela subiu em uma cadeira e procurou uma chavinha em cima de um móvel. Abriu a cristaleira e foi tirando objetos que ia me mostrando. Quando a cestinha ficou cheia, ela fechou a cristaleira à chave.
Pronto — disse Aurora.
Neste momento ela elevou a voz. Com medo, eu disse:
Tenha cuidado. Não faça barulho.
Mamãe toma comprimidos para dormir e papai não acorda nem com um trovão. Quer que eu jogue as cartas? Farei com você o que Clotilde Ifrán fez comigo. Quer?
Desceu a escada num salto e me trouxe um maço de cartas; sentou-se em um dos degraus.
Clotilde Ifrán jogava as cartas assim.
Aurora embaralhou as cartas, colocou-as em fila, uma por uma, sobre três degraus. O vai e vem de suas mãos começou a me deixar tonto. (Fiquei com medo de dormir: é o perigo da minha tranquilidade.) Propus que fôssemos para a sala, pensando nos objetos que eu tinha que recolher, mas ela não me escutou; com sua voz autoritária, começou a me ensinar o significado das cartas.
Este rei de espadas, com a cara muito séria, é um inimigo seu. Está te esperando do lado de fora; vão matar você. Este cavalo de espadas também está te esperando. Você não ouve os ruídos que vêm da rua? Não ouve os passos, que vão se aproximando? É difícil se esconder na noite. Porque na noite se escutam todos os ruídos e a luz da lua é como a luz da consciência. E as plantas. Acredita que as plantas podem ajudar uma pessoa? São nossas inimigas, às vezes, quando chega a polícia, com as armas desembainhadas. Por isso Clotilde Ifrán queria me levar com ela. São muitos os perigos.
Eu queria ir embora, mas um torpor, como o que sinto depois de ter comido, me deteve. O que ia pensar Torno, o chefe? Como um bêbado, me aproximei da porta e a entreabri. Alguém atirou; caí no chão como um morto e não soube mais nada.

Silvina Ocampo, in A fúria

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