As
ferramentas de trabalho estão na sala do delegado: um relógio de
pulso de ouro, as luvas, um arame, uma caixa de madeira com chaves, a
lanterna, a pinça, a chave de fenda e uma malinha (para parecer mais
sério, levo sempre uma malinha). Armas? Nunca quis usá-las. Para
que me servem as mãos?, eu costumo dizer. São garras de ferro; se
não estrangulam, dão socos como Deus manda.
Eu
andava desanimado ultimamente. Há muita competição e pobreza. E
quem é que não sabe disso! A vida de um açougueiro é menos
sacrificada que a nossa. De noite, às vezes não tinha vontade de
sair e rondar pelos quarteirões para conhecer um determinado bairro
de Buenos Aires, ou uma casa; era francamente tedioso. Do Barrio
Norte, gosto de Palermo, porque tem fontes e lagos onde a gente bebe
e lava as unhas de alguns dedos; do Barrio Sur, Constitución, sem
dúvida, porque lá conheci meus colegas na escada rolante, subindo e
descendo, descendo e subindo, entregues a nossas ocupações. Eu me
sentava nas praças, comendo laranjas ou pão; salame, quando tinha
sorte, ou queijo fresco. Às vezes os transeuntes me olhavam como se
vissem algo esquisito em mim. Não uso barba comprida até o umbigo
nem ando com os dedos dos pés para fora, nem tenho pintas grandes
entre as sobrancelhas, nem dentes de ouro. Outro dia perguntei a um
fulano: “Está olhando o quê?”, esquecendo minha
responsabilidade, minha idade, minha situação. Talvez minhas calças
de tecido azul sejam chamativas, porque levam, em vez de botões na
braguilha, um fecho ecler: tudo o que se faz para não chamar atenção
chama atenção. O que se há de fazer?! Se deslizo como um verme,
todo mundo repara em como caminho, se me visto como um porco, da cor
das árvores ou das paredes ou da terra, todo mundo repara em meu
traje. Se trato de não elevar a voz, Deus me livre!, todo mundo
estica a orelha para me ouvir. Tomar sorvetes acaba sendo impossível
para mim. As mocinhas me olham e se cutucam com o cotovelo. Às vezes
ser simpático com as mulheres não é agradável; tenho que escutar
asneiras o dia todo. Felizmente não ouço nada em uma das orelhas.
Fiquei surdo aos dezesseis anos. Perfuraram meu tímpano com uma
farpa. Vivíamos com meus pais em Punta Chica, em uma casa de
palafitas. Meu pai, que é mal-humorado, e meus irmãos, que são
casca-grossa, uma noite em que de brincadeira pus uns bagres na cama
deles, deram uma de machões, me deitaram no chão e, enquanto uns me
seguravam, outro me cravou a farpa dentro da orelha. Depois,
naturalmente, para que eu não falasse, me meteram em um saco, que
atiraram ao rio. Os vizinhos me salvaram. Achei estranho. Em seguida
soube que fizeram isso para me fazer falar. Bando de curiosos! Todo
mundo me odeia, a não ser as mulheres; no entanto, a srta. Rómula,
que vive no armazém, me interpelou porque um dia matei um gato com
uma paulada só, na porta de seu quarto:
— Mal-educado
— me disse —, não pode fazer essas coisas em outro lugar?
Que
incômodo lhe causaria umas gotinhas de sangue no chão? Dá para
limpar em dois segundos. Nunca me perdoou. É uma preguiçosa, isso
sim. Quando me empregaram na farmácia Firpo, as pessoas já
começaram a me olhar como alguém que chama atenção. “Lesma”
era como me chamavam quando eu corria, “Trem expresso”, quando me
demorava, “Seboso”, quando eu tinha tomado banho, “Palmolive”,
quando não tinha. Mas o que mais me deixou indignado foi quando me
chamaram de “Pizza”, injustamente, porque me viram comendo,
enquanto eu separava os produtos, um pedaço de colomba pascal que
Susana Plombis me deu, para levar no bolso, quando tivesse fome, na
minha bicicleta.
Foi
naquela época que conheci muitas casas por dentro. Nenhuma me
impressionou tanto quanto a de Aníbal Celino; talvez por eu ter
entrado pela porta principal. Nas outras casas eu tinha que entrar
pela cozinha. Guardo algumas colherinhas, alguns saleirinhos de
prata, que subtraí das gavetas enquanto as criadas buscavam o
dinheiro para pagar a conta, e que não me serviram de nada. A casa
de Aníbal Celino era um palácio, nem mais nem menos. A primeira vez
que me mandaram para lá com um pacote da farmácia Firpo, achei que
a porta de serviço era a principal e corri a procurar a outra,
acreditando que era a de serviço, porque estava suja. Conheço bem
as casas de hoje. Casa cheia de luxo, casa suja. A porta estava
fechada e se abriu quando bati com a aldraba, que era um leão de
bronze mastigando um aro, também de bronze. Entrei na casa e não vi
ninguém. Voltei a sair e no jardim vi as perucas descabeladas das
palmeiras. Que árvores! Nem um cachorro iria gostar delas. Entrei
outra vez: não havia ninguém. A porta se abriu sozinha. Então
tropecei na escada de mármore que tinha uma balaustrada lustrosa,
como o leão da porta. Dei alguns passos e entrei numa sala enorme,
cheia de cristaleiras; aquilo parecia uma loja ou uma igreja. Em todo
canto viam-se estátuas, bomboneiras, miniaturas, colares, leques,
relicários, bonequinhos. Já em minha mão, porque sou distraído,
vi uma bomboneira de ouro com turquesas; guardei no bolso; depois, em
outro bolso, guardei uma estatueta que brilhava sobre uma mesa (meus
bolsos têm fundo falso, por via das dúvidas. Rosaura Pansi se ocupa
em forrá-los. Dou a ela muitos presentes e a pobrezinha fica
agradecida até dizer chega). Quando saí do salão, ouvi um
barulhinho na escada, como que de rato. Meu coração parou, porque
vi uma menina muito novinha sentada no último degrau, olhando para
mim com cara de cigana. Achei graça.
— Trago
aqui um pacote da farmácia Firpo — disse a ela.
— Que
pena! — me respondeu. — Então você não é o Senhor.
— Como
assim não sou um senhor? Sou o quê, então? Trago um frasco de
álcool, magnésia e pó de arroz — eu disse, lendo a fatura.
— Esta
não é a porta de serviço. Saia — disse ela, arrancando de minhas
mãos a fatura e olhando-a. — Vá até a esquina. Lá vão
atendê-lo.
Eu
bem gostaria de ter estrangulado aquela garota; era branca e suave
como um anjo de porcelana que vi uma vez na vitrine de uma loja de
arte sacra.
— As
portas não são todas iguais?
— Todas
— ela respondeu —, menos a do céu.
— E
então por que você não recebe o pacote e paga?
— Porque
não tenho dinheiro para pagar contas. Tenho dinheiro para dar, ou
perder.
— Dar
a quem?
— Dar
a qualquer um que não seja da minha família, nem de minhas
amizades.
— Perder
como?
— Perder?
De mil maneiras.
Tirou
do bolso do avental um moedeiro com dinheiro, pôs as moedas em fila
sobre o degrau.
— As
moedas a gente perde ao jogar para tirar a sorte — ela me disse —,
nas fontes ou em qualquer lugar, a questão é que se perdem. Para
que servem?
Ela
me pareceu um pouco menos repugnante, e lhe disse:
— Adeus,
Micifús.
— Meu
nome é Aurora — respondeu com voz autoritária.
— Que
culpa tenho eu se você tem olhos de gato? Ficou brava?
Não
me respondeu e subiu as escadas aos pulos.
Durante
muito tempo não voltei a ver Aurora, por mais que de vez em quando
eu fosse à casa, levar produtos.
Quando
me despediram da farmácia Firpo, conheci Canivete e Torno. Nós nos
entendíamos, não posso dizer que como irmãos, dado o fuzuê que me
aconteceu com os meus; nos entendíamos como amigos inseparáveis,
isso quer dizer que às vezes não podíamos nos olhar frente a
frente diante das pessoas sem rirmos feito doidos.
A
verdade é que tudo era uma diversão. Não demorei a contar a eles
sobre a casa de Aníbal Celino e de Aurora, ao passar pela Calle
Canning. Enumerei os objetos que eu tinha visto lá. Foi um
verdadeiro inventário!, porque nenhuma das riquezas do palácio
tinha passado inadvertida por mim. Canivete me olhou desanimado:
— Quanta
quinquilharia! E para que queremos isso? — disse.
Mas
Torno, que é mais entendido, ficou com os olhos acesos e sussurrou,
com aquela voz que soava como um silvo na noite:
— Qualquer
hora dessas, entraremos lá esta semana.
Tomamos,
cada um, oito sorvetes e fomos para o jardim zoológico, para olhar
os macacos. O sol castigava. Paramos para ouvir a musiquinha do
carrossel, porque Torno gosta de qualquer musiquinha. Pudera: o pai
tocava bandoneon. Como se estivesse pensando em outra coisa, ele
planejava o assalto.
Durante
vários dias, como era nosso costume, andamos vagando pelo bairro
onde fica a casa. Passei um dia inteiro sentado sobre os restos de um
muro destruído de um terreno baldio, vendo o movimento das pessoas
que saíam e entravam. Não tinha nenhum vigia na esquina, por sorte.
O único perigo, talvez, era o silêncio do quarteirão. O calor me
obrigou a tirar a camisa: ninguém me disse nada, porque suar deixa
as pessoas distraídas.
Por
fim chegou a noite esperada. Eu tinha que entrar primeiro na casa,
porque a conhecia e porque sou menos nervoso. Canivete e Torno
ficariam do lado de fora, escondidos detrás das plantas, com uma
bolsa vazia, onde colocaríamos os objetos adquiridos. Eu tinha que
avisá-los com um psiu se a entrada deles estivesse liberada. Comemos
às mil maravilhas aquela noite, com vinho tinto e grapa ao final.
Custou-nos caro a festa.
Depois
de algumas discussões sobre a hora conveniente para entrar na casa
de Aníbal Celino, consultando o relógio a cada quinze minutos, nos
encaminhamos para a Calle Canning e paramos em frente ao jardim de
nossa casa, como se tivéssemos nos perdido. Canivete e Torno
saltaram bruscamente a cerca do jardim e se esconderam entre umas
plantas. Eu me protegi na escuridão da entrada, com a gazua já na
mão. A cara brilhante do leão que mascava o aro me distraiu de
minha tarefa por um instante; a porta se abriu de repente. Retrocedi
num salto e me escondi entre as plantas, mas a porta permaneceu
aberta. Durante um tempo longuíssimo, um relógio deu as horas com
variadíssimas badaladas, em seguida um quarto de hora e então meia
hora. Arranhando todo o tornozelo em uma maldita ramagem, esperei que
alguma coisa acontecesse. Nada aconteceu; silêncio e mais silêncio,
os olhos consumidos de sono, formigas me subindo pelas pernas até o
umbigo. Esperei outros quinze minutos e me aproximei da porta, que
permanecia aberta. Entrei na casa e acendi a lanterna. Fiz girar o
foco de luz ao meu redor e o detive sobre a escada: em um dos degraus
estava sentada Aurora. Acho que foi a primeira vez na minha vida que
me assustei: parecia uma verdadeira anã, pois usava um camisolão
longo e os cabelos recolhidos na ponta da cabeça. Como se estivesse
me esperando, veio até mim e me disse ao ouvido:
— Você
é o Senhor. Faz muito tempo que o espero.
Comecei
a tremer e perguntei baixinho:
— Espera
por quem?
Então,
como se não escutasse o que eu estava dizendo, me disse, agitando
uma de suas pernas, que parecia a de um gato quando limpa a cara:
— Clotilde
Ifrán está me esperando.
— Quem
é Clotilde Ifrán? Onde está?
— Está
no céu. É uma vidente que leu minhas mãos. Quando morreu, estava
deitada em uma cama linda, em sua loja. Vendia corpetes. Fazia cintas
e corpetes para mulheres e tinha as gavetas de seu quarto cheias de
fitas azuis e rosadas, elásticos e broches, botões por todo lado.
Quando eu ia à casa dela com mamãe e a ficava esperando, ela me
deixava brincar com tudo, e às vezes, quando eu faltava à escola e
mamãe ia ao teatro ou Deus sabe onde, eu ficava na casa de Clotilde
Ifrán, para que ela cuidasse de mim. E aí, sim, eu me divertia. Ela
não só me dava bombons e me deixava brincar com agulhas, com as
tesouras e as fitas, como também lia minhas mãos e tirava cartas
para mim. Um dia, estava jogada na cama, pálida como um susto, e me
disse: “O Senhor virá me buscar, também virá por sua causa: e
então nos encontraremos no céu”. “E vamos nos divertir como nos
divertimos aqui?”, perguntei a ela. “Muito mais”, me respondeu;
“porque o Senhor é muito bom.” “E quando ele virá me buscar?”
“Não sei nem quando nem como, mas vou já jogar as cartas para
saber”, me respondeu. No dia seguinte, uns cavalos negros enormes a
levaram ao cemitério de Chacarita em um carro cheio de adornos
negros, com flores, e não a vi mais, nem em sonho. Você é o Senhor
do qual ela sempre me falava, para quem não havia portas. Você quis
comprovar minha lealdade, não é mesmo?, quando trouxe aquele pacote
da farmácia Firpo. Você é o Senhor, porque tem a barba comprida.
— Hei
de ser, se você diz.
— Um
Senhor, a quem devemos dar tudo o que temos.
— Levaremos
coisas brilhantes e bonitas, não é mesmo?
— Colocaremos
tudo dentro de uma cestinha de piquenique. Me espere.
Aurora
voltou com uma cestinha. Entramos na sala. Ela subiu em uma cadeira e
procurou uma chavinha em cima de um móvel. Abriu a cristaleira e foi
tirando objetos que ia me mostrando. Quando a cestinha ficou cheia,
ela fechou a cristaleira à chave.
— Pronto
— disse Aurora.
Neste
momento ela elevou a voz. Com medo, eu disse:
— Tenha
cuidado. Não faça barulho.
— Mamãe
toma comprimidos para dormir e papai não acorda nem com um trovão.
Quer que eu jogue as cartas? Farei com você o que Clotilde Ifrán
fez comigo. Quer?
Desceu
a escada num salto e me trouxe um maço de cartas; sentou-se em um
dos degraus.
— Clotilde
Ifrán jogava as cartas assim.
Aurora
embaralhou as cartas, colocou-as em fila, uma por uma, sobre três
degraus. O vai e vem de suas mãos começou a me deixar tonto.
(Fiquei com medo de dormir: é o perigo da minha tranquilidade.)
Propus que fôssemos para a sala, pensando nos objetos que eu tinha
que recolher, mas ela não me escutou; com sua voz autoritária,
começou a me ensinar o significado das cartas.
— Este
rei de espadas, com a cara muito séria, é um inimigo seu. Está te
esperando do lado de fora; vão matar você. Este cavalo de espadas
também está te esperando. Você não ouve os ruídos que vêm da
rua? Não ouve os passos, que vão se aproximando? É difícil se
esconder na noite. Porque na noite se escutam todos os ruídos e a
luz da lua é como a luz da consciência. E as plantas. Acredita que
as plantas podem ajudar uma pessoa? São nossas inimigas, às vezes,
quando chega a polícia, com as armas desembainhadas. Por isso
Clotilde Ifrán queria me levar com ela. São muitos os perigos.
Eu
queria ir embora, mas um torpor, como o que sinto depois de ter
comido, me deteve. O que ia pensar Torno, o chefe? Como um bêbado,
me aproximei da porta e a entreabri. Alguém atirou; caí no chão
como um morto e não soube mais nada.
Silvina Ocampo, in A fúria
Nenhum comentário:
Postar um comentário