Gustavo,
desde os tempos de escola, tinha um estojo preto, magricelo como ele.
Nunca houve grande coisa lá dentro: uma borracha encardida, um lápis
de ponta quebrada, duas canetas Bic (uma sem tampa, outra mordida na
ponta), uns clipes alheios, pedaços de papel. Mas, quando passou no
vestibular de História naquela universidade pública tão
respeitada, o rapaz ganhou um presente do avô: uma caneta preta,
simples e bonita, de marca boa. Daquelas pra durar a vida toda.
No
primeiro ano, deixou-a em casa, tinha medo de perder. Foi nesse mesmo
primeiro ano que conheceu Joana, que tinha cara de tarde de sol na
praia e cheiro de tangerina. Estudavam em dupla: abriam os livros
sentados nos degraus da faculdade e iam parar na Mesopotâmia, em
Machu Picchu, em Mianmar. Estavam juntos, estavam felizes.
No
fim do tal primeiro ano, o avô foi dormir e não acordou mais.
Quando conseguiu voltar para o mundo, Gustavo levou a caneta: abriu o
estojo velho, colocou-a lá dentro como quem coloca um filho no
berço.
Dois
anos depois do primeiro ano, Joana criou coragem. Disse que nada mais
fazia sentido: o curso de História, as batas floridas, os abraços
do rapaz de tronco magro. Ela estava indo embora de tudo, inclusive
dele. Pediu que não mais a procurasse, trancou a matrícula, sumiu
do mapa. Ele chorou uma semana, comeu mal durante duas, andou
cabisbaixo durante três. Na quarta, vivia. Os anos passaram, outras
garotas sorridentes vieram, mas a lembrança e a dúvida martelavam.
Ele nunca deixou de imaginá-la voltando, contando viagens e
equívocos.
Terminou
o curso, entrou no mestrado. Quatro anos depois, no doutorado. Mais
de dez anos perambulando pelos tempos do mundo. Uma noite, preocupado
com a banca, com a revisora que não dava notícias, com o preço da
impressão de doze exemplares da tese, deu-se conta de que estava sem
o estojo. Voltou correndo à biblioteca de silêncio mórbido. Nada.
Passou no banheiro, na lanchonete, na mureta onde fumava seu
cigarrinho. O achados e perdidos já estava fechado. Com o coração
apertado, foi para casa, tentando se convencer de que no dia seguinte
o estojo estaria lá, esperando-o como criança na saída da escola.
Acordou
na manhã seguinte, colocou a camisa xadrez, os sapatos de couro
marrom e foi apressado ao necessário reencontro. Quando o careca de
farto bigode saiu de trás do biombo com o estojo preto nas mãos,
Gustavo suspirou aliviado. Quando encostou as mãos naquela quase
relíquia, ouviu seu nome pronunciado por uma voz mais do que
conhecida.
Depois
de tantos anos, de tantas laudas, de tantas tardes, era ela. Ela, que
continuava permeando seus dias com lembranças doces.
Virou-se,
por esperança ou teimosia, esperando a menina de tantos anos atrás.
É claro que não era ela. Era outra Joana, com calças estranhamente
largas, salto assustadoramente fino, lenço de estampa de bicho no
pescoço e uma bolsa com iniciais repetidas, espalhadas, insistentes.
Sorriram
desnorteados, deram um abraço forçado, conversaram o óbvio: quanto
tempo – verdade – tá fazendo o que aqui? – vim buscar meu
histórico – você tá diferente – você não mudou nada – um
café? – um café.
Sentaram-se
de frente. Ele ainda queria acreditar que num dado momento ela ia
começar a se parecer com a velha Joana. Mas a cara de tarde de sol
estava encoberta por uma nuvem de base, pó e pó bronzeador.
Enquanto ela começava a contar sobre a agência de publicidade onde
trabalhava, ele só se perguntava por que ela começou a tentar se
pintar de tarde de sol que não dava certo se ela já era uma tarde
de sol tão certa. Ou será que não era mais? Talvez não fosse
mais.
Ela
falava de outro jeito. A voz vinha da boca, não mais do peito como
antes. Contava de grandes projetos, grandes clientes, grandes cifras.
Gesticulava, franzia a testa, ria de um jeito falso e alto, jogando a
cabeça pra trás. Estava preocupada em parecer sei lá o quê. Ele
ouviu muito, depois contou rapidamente sobre a dissertação de
mestrado que tratava dos impactos da Revolução Industrial na
América Latina e sobre a tese de doutorado, que, como toda boa tese
de doutorado, era absolutamente inexplicável em menos de três dias.
Havia
um milhão de coisas sobre as quais ela poderia perguntar. Família,
opinião, literatura, sonhos, caneta. Mas ela começou a perguntar
sobre como ele estava se sustentando. Sobre o valor da bolsa da
Capes. Sobre perspectivas profissionais. Um papo atravessado e raso.
Ele tentou desconversar. Perguntou se ela ainda adorava Janis Joplin.
Ela riu. Não um riso de memória. Aquele riso estranho.
Ele
percebeu que precisava parar logo com aquilo. Precisava parar, antes
que as boas lembranças fossem mais massacradas. Antes que a memória
fosse soterrada por um presente tão fora do previsto. Pediu mil
desculpas, disse que tinha uma reunião com o orientador, que, como
todo bom orientador, estava num congresso em Recife, uma conferência
em Assunção, uma temporada na Libéria ou em qualquer local fora do
mapa.
Levantaram-se.
Abraçaram-se, mais sem sentido ainda. Não trocaram telefones.
Desejaram-se “tudo de bom”.
Ele
subiu até o quarto andar. Sentou-se num banco, colocou o estojo no
colo, foi invadido por memórias e outros perigos. Abriu o estojo
calmamente e… estava tudo lá. Exceto a caneta do avô. Tudo, menos
ela. Parou. Um súbito misto de dor e de raiva. Subiu pelas narinas o
cheiro do abraço da moça que havia ficado represado pela repulsa.
Sentiu-se violado. Tanto pelo sujeito que abriu o estojo, analisou o
conteúdo e escolheu a dedo o que levar, quanto pela vida que veio
sem freio e levou aquela Joana de cheiro de tangerina para os
submundos da lembrança remota e deixou no lugar aquela mulher de
gestos programados e perfume doce todo errado.
Percebeu
que existem coisas que é melhor a gente não encontrar nunca mais.
Porque viver de lembranças costuma ser menos ruim do que os novos
ares que muitas vezes o presente traz.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
Nenhum comentário:
Postar um comentário