quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A caneta do avô e o cheiro da tangerina

Gustavo, desde os tempos de escola, tinha um estojo preto, magricelo como ele. Nunca houve grande coisa lá dentro: uma borracha encardida, um lápis de ponta quebrada, duas canetas Bic (uma sem tampa, outra mordida na ponta), uns clipes alheios, pedaços de papel. Mas, quando passou no vestibular de História naquela universidade pública tão respeitada, o rapaz ganhou um presente do avô: uma caneta preta, simples e bonita, de marca boa. Daquelas pra durar a vida toda.
No primeiro ano, deixou-a em casa, tinha medo de perder. Foi nesse mesmo primeiro ano que conheceu Joana, que tinha cara de tarde de sol na praia e cheiro de tangerina. Estudavam em dupla: abriam os livros sentados nos degraus da faculdade e iam parar na Mesopotâmia, em Machu Picchu, em Mianmar. Estavam juntos, estavam felizes.
No fim do tal primeiro ano, o avô foi dormir e não acordou mais. Quando conseguiu voltar para o mundo, Gustavo levou a caneta: abriu o estojo velho, colocou-a lá dentro como quem coloca um filho no berço.
Dois anos depois do primeiro ano, Joana criou coragem. Disse que nada mais fazia sentido: o curso de História, as batas floridas, os abraços do rapaz de tronco magro. Ela estava indo embora de tudo, inclusive dele. Pediu que não mais a procurasse, trancou a matrícula, sumiu do mapa. Ele chorou uma semana, comeu mal durante duas, andou cabisbaixo durante três. Na quarta, vivia. Os anos passaram, outras garotas sorridentes vieram, mas a lembrança e a dúvida martelavam. Ele nunca deixou de imaginá-la voltando, contando viagens e equívocos.
Terminou o curso, entrou no mestrado. Quatro anos depois, no doutorado. Mais de dez anos perambulando pelos tempos do mundo. Uma noite, preocupado com a banca, com a revisora que não dava notícias, com o preço da impressão de doze exemplares da tese, deu-se conta de que estava sem o estojo. Voltou correndo à biblioteca de silêncio mórbido. Nada. Passou no banheiro, na lanchonete, na mureta onde fumava seu cigarrinho. O achados e perdidos já estava fechado. Com o coração apertado, foi para casa, tentando se convencer de que no dia seguinte o estojo estaria lá, esperando-o como criança na saída da escola.
Acordou na manhã seguinte, colocou a camisa xadrez, os sapatos de couro marrom e foi apressado ao necessário reencontro. Quando o careca de farto bigode saiu de trás do biombo com o estojo preto nas mãos, Gustavo suspirou aliviado. Quando encostou as mãos naquela quase relíquia, ouviu seu nome pronunciado por uma voz mais do que conhecida.
Depois de tantos anos, de tantas laudas, de tantas tardes, era ela. Ela, que continuava permeando seus dias com lembranças doces.
Virou-se, por esperança ou teimosia, esperando a menina de tantos anos atrás. É claro que não era ela. Era outra Joana, com calças estranhamente largas, salto assustadoramente fino, lenço de estampa de bicho no pescoço e uma bolsa com iniciais repetidas, espalhadas, insistentes.
Sorriram desnorteados, deram um abraço forçado, conversaram o óbvio: quanto tempo – verdade – tá fazendo o que aqui? – vim buscar meu histórico – você tá diferente – você não mudou nada – um café? – um café.
Sentaram-se de frente. Ele ainda queria acreditar que num dado momento ela ia começar a se parecer com a velha Joana. Mas a cara de tarde de sol estava encoberta por uma nuvem de base, pó e pó bronzeador. Enquanto ela começava a contar sobre a agência de publicidade onde trabalhava, ele só se perguntava por que ela começou a tentar se pintar de tarde de sol que não dava certo se ela já era uma tarde de sol tão certa. Ou será que não era mais? Talvez não fosse mais.
Ela falava de outro jeito. A voz vinha da boca, não mais do peito como antes. Contava de grandes projetos, grandes clientes, grandes cifras. Gesticulava, franzia a testa, ria de um jeito falso e alto, jogando a cabeça pra trás. Estava preocupada em parecer sei lá o quê. Ele ouviu muito, depois contou rapidamente sobre a dissertação de mestrado que tratava dos impactos da Revolução Industrial na América Latina e sobre a tese de doutorado, que, como toda boa tese de doutorado, era absolutamente inexplicável em menos de três dias.
Havia um milhão de coisas sobre as quais ela poderia perguntar. Família, opinião, literatura, sonhos, caneta. Mas ela começou a perguntar sobre como ele estava se sustentando. Sobre o valor da bolsa da Capes. Sobre perspectivas profissionais. Um papo atravessado e raso. Ele tentou desconversar. Perguntou se ela ainda adorava Janis Joplin. Ela riu. Não um riso de memória. Aquele riso estranho.
Ele percebeu que precisava parar logo com aquilo. Precisava parar, antes que as boas lembranças fossem mais massacradas. Antes que a memória fosse soterrada por um presente tão fora do previsto. Pediu mil desculpas, disse que tinha uma reunião com o orientador, que, como todo bom orientador, estava num congresso em Recife, uma conferência em Assunção, uma temporada na Libéria ou em qualquer local fora do mapa.
Levantaram-se. Abraçaram-se, mais sem sentido ainda. Não trocaram telefones. Desejaram-se “tudo de bom”.
Ele subiu até o quarto andar. Sentou-se num banco, colocou o estojo no colo, foi invadido por memórias e outros perigos. Abriu o estojo calmamente e… estava tudo lá. Exceto a caneta do avô. Tudo, menos ela. Parou. Um súbito misto de dor e de raiva. Subiu pelas narinas o cheiro do abraço da moça que havia ficado represado pela repulsa. Sentiu-se violado. Tanto pelo sujeito que abriu o estojo, analisou o conteúdo e escolheu a dedo o que levar, quanto pela vida que veio sem freio e levou aquela Joana de cheiro de tangerina para os submundos da lembrança remota e deixou no lugar aquela mulher de gestos programados e perfume doce todo errado.
Percebeu que existem coisas que é melhor a gente não encontrar nunca mais. Porque viver de lembranças costuma ser menos ruim do que os novos ares que muitas vezes o presente traz.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

Nenhum comentário:

Postar um comentário