domingo, 7 de junho de 2020

Torturante band-aid



Mais fácil do que fazer uma lista das melhores músicas brasileiras de todos os tempos é criticar as listas dos outros. Assim você se livra do esforço de memória e só entra para flagrar as injustiças. O grande mérito da votação recente da Globo[1], além do inventário valioso do nosso patrimônio musical, foi esse: na cobrança das omissões — mas como, nada do Lupiscínio?! — se descobriu que daria para fazer uma lista igual só de esquecidos. Que a nossa fortuna é maior do que nós mesmos sabemos. Foi como provar uma receita e ficar dizendo o que falta para a perfeição: um pouco mais de Cartola, um tiquinho mais de Chico Buarque, outra pitada de Ismael Silva... Pois no fim é tudo uma questão de gosto.
Para o meu gosto, por exemplo, ficou faltando Ataulfo Alves. “Pois é” é um grande samba. Aquele em que se diz que mulher a gente encontra em toda parte, mas não se encontra a mulher que a gente tem no coração. Pois é. Faltou o “Última forma” (do Paulo Cesar Pinheiro?), faltou o “Antonico” (de quem mesmo?). E talvez mais algumas colheres de chá de Edu Lobo, Carlos Lyra, Johnny Alf e (por que não?) Roberto e Erasmo. Todas as do Tom Jobim que entraram na lista mereciam estar lá, mas não entrou a mais bonita. “Inútil paisagem”. “Na baixa do sapateiro” é melhor do que “Aquarela do Brasil”. E onde estava aquela do Noel Rosa que diz “o meu samba está de luto, eu peço o silêncio de um minuto”? E o Lupiscínio?!
Não dá para ter um concurso só de letras, mesmo porque os cinco primeiros lugares teriam que ser do Chico. Mas se poderia escolher algumas frases, assim, revolucionárias do nosso cancioneiro. Eu acho que alguma coisa aconteceu na poética nacional quando, no “Dois pra cá, dois pra lá”, dele e do João Bosco, o Aldir Blanc falou naquela ponta de um torturante band-aid no calcanhar da moça que gostava de uísque com guaraná. O band-aid no calcanhar vale um compêndio de sociologia suburbana e para explicar por que ele é torturante você precisa, em primeiro lugar, ser homem, e em segundo lugar não saber explicar por que, só saber que é. Talvez não exista uma expressão maior de perdição e desejo na música brasileira.

[1] No “Festival 100 de música”, apresentado em dezembro de 1999, um júri da emissora elegeu as 31 melhores músicas brasileiras do século XX: “Aquarela do Brasil”, “Carinhoso”, “Garota de Ipanema”, “Asa branca”, “Águas de março”, “Chega de saudade”, “As rosas não falam”, “Travessia”, “Desafinado”, “Eu sei que vou te amar”, “Chão de estrelas”, “Se todos fossem iguais a você”, “Luar do sertão”, “Samba do avião”, “Brasileirinho”, “Retrato em branco e preto”, “O que será”, “Saudade da Bahia”, “Manhã de carnaval”, “No rancho fundo”, “O bêbado e o equilibrista”, “Tico-tico no fubá”, “Feitiço da Vila”, “Feitiço de oração”, “Marina”, “A noite do meu bem”, “Foi um rio que passou em minha vida”, “Aquele abraço”, “Sampa”, “Detalhes”, “Meu bem”.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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