Mais
fácil do que fazer uma lista das melhores músicas brasileiras de
todos os tempos é criticar as listas dos outros. Assim você se
livra do esforço de memória e só entra para flagrar as injustiças.
O grande mérito da votação recente da Globo[1], além do
inventário valioso do nosso patrimônio musical, foi esse: na
cobrança das omissões — mas como, nada do Lupiscínio?! — se
descobriu que daria para fazer uma lista igual só de esquecidos. Que
a nossa fortuna é maior do que nós mesmos sabemos. Foi como provar
uma receita e ficar dizendo o que falta para a perfeição: um pouco
mais de Cartola, um tiquinho mais de Chico Buarque, outra pitada de
Ismael Silva... Pois no fim é tudo uma questão de gosto.
Para
o meu gosto, por exemplo, ficou faltando Ataulfo Alves. “Pois é”
é um grande samba. Aquele em que se diz que mulher a gente encontra
em toda parte, mas não se encontra a mulher que a gente tem no
coração. Pois é. Faltou o “Última forma” (do Paulo Cesar
Pinheiro?), faltou o “Antonico” (de quem mesmo?). E talvez mais
algumas colheres de chá de Edu Lobo, Carlos Lyra, Johnny Alf e (por
que não?) Roberto e Erasmo. Todas as do Tom Jobim que entraram na
lista mereciam estar lá, mas não entrou a mais bonita. “Inútil
paisagem”. “Na baixa do sapateiro” é melhor do que “Aquarela
do Brasil”. E onde estava aquela do Noel Rosa que diz “o meu
samba está de luto, eu peço o silêncio de um minuto”? E o
Lupiscínio?!
Não
dá para ter um concurso só de letras, mesmo porque os cinco
primeiros lugares teriam que ser do Chico. Mas se poderia escolher
algumas frases, assim, revolucionárias do nosso cancioneiro. Eu acho
que alguma coisa aconteceu na poética nacional quando, no “Dois
pra cá, dois pra lá”, dele e do João Bosco, o Aldir Blanc falou
naquela ponta de um torturante band-aid no calcanhar da moça que
gostava de uísque com guaraná. O band-aid no calcanhar vale um
compêndio de sociologia suburbana e para explicar por que ele é
torturante você precisa, em primeiro lugar, ser homem, e em segundo
lugar não saber explicar por que, só saber que é. Talvez não
exista uma expressão maior de perdição e desejo na música
brasileira.
[1]
No “Festival 100 de música”, apresentado em dezembro de 1999, um
júri da emissora elegeu as 31 melhores músicas brasileiras do
século XX: “Aquarela do Brasil”, “Carinhoso”, “Garota de
Ipanema”, “Asa branca”, “Águas de março”, “Chega de
saudade”, “As rosas não falam”, “Travessia”, “Desafinado”,
“Eu sei que vou te amar”, “Chão de estrelas”, “Se todos
fossem iguais a você”, “Luar do sertão”, “Samba do avião”,
“Brasileirinho”, “Retrato em branco e preto”, “O que será”,
“Saudade da Bahia”, “Manhã de carnaval”, “No rancho
fundo”, “O bêbado e o equilibrista”, “Tico-tico no fubá”,
“Feitiço da Vila”, “Feitiço de oração”, “Marina”, “A
noite do meu bem”, “Foi um rio que passou em minha vida”,
“Aquele abraço”, “Sampa”, “Detalhes”, “Meu bem”.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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