sexta-feira, 5 de junho de 2020

Oceanografia dispersa



Sou um apaixonado do mar. Há anos coleciono conhecimentos que não me servem de muito porque navego sobre a terra.
Agora regresso ao Chile, ao meu país oceânico, e meu navio se aproxima das costas da África. Já passou as antigas Colunas de Hércules hoje encouraçadas, a serviço do penúltimo imperialismo.
Olho o mar com o maior desinteresse, o do oceanógrafo puro que conhece a superfície e a profundidade, sem prazer literário, mas sim com um sabor de conhecedor, de paladar cetáceo.
Sempre gostei das histórias marinhas e tenho uma rede em minha biblioteca. O livro que mais consulto é um de William Beebe ou uma boa monografia descritiva das volutas marinhas do mar antártico.
É o plâncton o que me interessa, essa água nutritiva, molecular e eletrizada que tinge os mares de uma cor de relâmpago violeta. Assim cheguei a saber que as baleias se nutrem quase que exclusivamente deste inumerável crescimento marinho. Pequeníssimas plantas e infusórios irreais povoam nosso continente trêmulo. As baleias abrem as imensas bocas enquanto se deslocam, levantando a língua até o céu da boca, de modo que estas águas vivas e viscerais as vão enchendo e nutrindo. Assim se alimenta a baleia glauca (Bachianetas glaucas) que passa, rumo ao sul do Pacifico e às ilhas quentes, diante das janelas de minha Isla Negra.
Por ali também passa a rota migratória do cachalote ou baleia dentada, a mais chilena dos perseguidos. Os marinheiros chilenos ilustram com eles o mundo folclórico do mar. Em seus dentes gravaram a faca corações e flechas, pequenos monumentos de amor, retratos ingênuos de seus veleiros e de suas noivas. Mas nossos baleeiros, os mais audazes do hemisfério marinho, não atravessaram o estreito e o Cabo de Hornos, o Antártico e suas cóleras, simplesmente para tirar os dentes do ameaçador cachalote mas sim para arrebatar-lhe seu tesouro de gordura e, mais ainda, a bolsa de âmbar cinzento que somente este monstro esconde em sua montanha abdominal.

Agora venho de outra parte. Deixei para trás o último santuário azul do Mediterrâneo, as grutas e os contornos mannhos e submarinos da ilha de Capri, onde as sereias saíam para pentear os cabelos azuis sobre os penhascos porque o movimento do mar havia tingido e encharcado as suas loucas cabeleiras.
No aquário de Nápoles vi as moléculas elétricas dos organismos primaveris e vi subir e descer a medusa, feita de vapor e prata, agitando-se em sua dança doce e solene, circundada por dentro pelo único cinturão elétrico nunca ostentado até agora por nenhuma outra dama das profundidades submarinas.
Há muitos anos em Madras, na sombria índia de minha juventude, visitei um aquário maravilhoso. Até hoje recordo os peixes luzidios, as moreias venenosas, os cardumes vestidos de incêndio e arco-íris e, mais ainda, os polvos extraordinariamente sérios e medidos, metálicos como máquinas registradoras, com inumeráveis olhos, pernas, ventosas e conhecimentos.
Do grande polvo que nós todos conhecemos pela primeira vez em Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo (também Victor Hugo é um polvo tentacular e polimorfo da poesia), dessa espécie só cheguei a ver um fragmento de tentáculo no Museu de História Natural de Copenhague. Esse sim era o antigo Kraken, terror dos mares antigos, que agarrava um veleiro e o envolvia, cobrindo-o e o enredando. O fragmento que eu vi conservado em álcool sugeria que seu comprimento passava dos trinta metros.
Mas o que eu persegui com maior constância foi o vestígio, ou melhor, o próprio narval. Por ser tão desconhecido para meus amigos o gigantesco unicórnio marinho dos mares do Norte, cheguei a me sentir o responsável exclusivo dos narvais e a me acreditar narval eu mesmo.
Existirá o narval?
É possível que um animal do mar extraordinariamente pacífico, que tem na testa uma lança de marfim de quatro a cinco metros, estriada em todo o seu comprimento no estilo salomônico, terminada em agulha, possa passar despercebido por milhões de seres, inclusive em sua lenda e em seu maravilhoso nome?
De seu nome posso dizer – narwhal ou narval – que é o mais belo dos nomes submarinos, nome de taça marinha que canta, nome de esporão de cristal.
E por que então ninguém sabe seu nome?
Por que não existe os Narval, a bela casa dos Narval, e ainda Narval Ramírez ou Narvala Carvajal?
Não existem. O unicórnio marinho continua em seu mistério, em suas correntes de sombra transoceânica, com sua longa espada de marfim submersa no oceano ignoto.
Na Idade Média a caça a todos os unicórnios foi um esporte místico e estético. O unicórnio terrestre ficou para sempre, deslumbrante, nas tapeçarias, rodeado de damas alabastrinas e de alta linhagem, aureolado em sua majestade por todas as aves que trinam ou fulguram.
Quanto ao narval, os monarcas medievais enviavam uns aos outros, como presente magnífico, algum fragmento de seu corpo fabuloso e deste raspavam pó que, diluído em licores, dava – oh eterno sonho do homem! – saúde, juventude e potência.
Vagando certa vez pela Dinamarca, entrei numa antiga loja de história natural, esses negócios desconhecidos em nossa América que para mim têm toda a fascinação da terra. Ali, num canto, descobri três ou quatro cornos de narval. Os maiores mediam quase cinco metros. Por longo tempo os brandi e acariciei.
O velho proprietário da loja me via fazer lances ilusórios com a lança de marfim em minhas mãos contra os invisíveis moinhos do mar. Depois os deixei cada um em seu canto. Só pude comprar um pequeno, de narval recém-nascido, dos que saem explorando com seu esporao inocente as frias águas árticas.
Guardei-o em minha maleta. Mas em minha pequena pensão da Suíça, defronte ao lago Leman, precisei ver e tocar o mágico tesouro de unicórnio marinho que me pertencia e o tirei de minha maleta.
Agora não o encontro.
Terei esquecido na pensão de Vésenaz ou terá rolado à última hora para baixo da cama? Ou na verdade terá regressado de forma misteriosa e noturna ao círculo polar?
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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