terça-feira, 2 de junho de 2020

Diários

É certamente uma sorte extraordinária, e muito pouco aproveitada, que existam diários de viagem vindos de culturas desconhecidas, escritos por representantes dessas e não por europeus. Cito apenas dois dos mais minuciosos, que nunca me canso de ler: o livro do peregrino chinês Huan Tsang, que visitou a Índia no século VII, e o do árabe Ibn Batuta, de Tânger, que durante 25 anos viajou por todo o mundo islâmico do século XIV, pela Índia e, provavelmente, também pela China. Com isso, porém, não se esgota toda a riqueza dos diários exóticos. No Japão encontram-se diários literários que, em sutileza e precisão, podem ser comparados a Proust: o Livro de cabeceira da dama de honra Shei Shonagon (o livro de “apontamentos” mais perfeito que conheço) e o diário da autora do romance Genji, Murasaki Shikibu — ambas, aliás, viveram na mesma corte por volta do ano 1000, conheciam-se bem, mas não se davam.
A imagem exatamente oposta a esses relatos de terras distantes é fornecida pelos diários de terras próximas. Trata-se aqui de pessoas muito próximas nas quais nos reconhecemos. O mais belo exemplo desse gênero na literatura alemã são os diários de Hebbel. Estes são amados porque neles não há quase nenhuma página em que não se encontre algo que nos toque pessoalmente. Podemos ter a impressão de já termos, nós mesmos, escrito isto ou aquilo em algum lugar. Talvez já o tenhamos feito realmente, e, se não o fizemos, é certo que poderíamos tê-lo feito. Esse processo do encontro íntimo é emocionante porque, bem ao lado daquilo que nos é “comum”, há também algo que jamais poderíamos ter pensado ou escrito da mesma forma. Trata-se, pois, do espetáculo teatral de dois espíritos que se interpenetram: em determinados pontos, eles se tocam; em outros, formam-se entre eles espaços vazios que não poderiam ser preenchidos de maneira alguma. O homogêneo e o heterogêneo encontram-se tão próximos que isso nos força a pensar; nada é mais profícuo que tais diários da proximidade, como poderiam ser chamados. É próprio deles, ainda, serem “completos” ou seja, profusos, e não escritos sob o jugo de um objetivo determinado.
Elias Canetti, in A consciência das palavras

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