É
certamente uma sorte extraordinária, e muito pouco aproveitada, que
existam diários de viagem vindos de culturas desconhecidas, escritos
por representantes dessas e não por europeus. Cito apenas dois dos
mais minuciosos, que nunca me canso de ler: o livro do peregrino
chinês Huan Tsang, que visitou a Índia no século VII, e o do árabe
Ibn Batuta, de Tânger, que durante 25 anos viajou por todo o mundo
islâmico do século XIV, pela Índia e, provavelmente, também pela
China. Com isso, porém, não se esgota toda a riqueza dos diários
exóticos. No Japão encontram-se diários literários que, em
sutileza e precisão, podem ser comparados a Proust: o Livro de
cabeceira da dama de honra Shei Shonagon (o livro de
“apontamentos” mais perfeito que conheço) e o diário da autora
do romance Genji, Murasaki Shikibu — ambas, aliás, viveram
na mesma corte por volta do ano 1000, conheciam-se bem, mas não se
davam.
A
imagem exatamente oposta a esses relatos de terras distantes é
fornecida pelos diários de terras próximas. Trata-se aqui de
pessoas muito próximas nas quais nos reconhecemos. O mais
belo exemplo desse gênero na literatura alemã são os diários de
Hebbel. Estes são amados porque neles não há quase nenhuma página
em que não se encontre algo que nos toque pessoalmente. Podemos ter
a impressão de já termos, nós mesmos, escrito isto ou aquilo em
algum lugar. Talvez já o tenhamos feito realmente, e, se não o
fizemos, é certo que poderíamos tê-lo feito. Esse processo do
encontro íntimo é emocionante porque, bem ao lado daquilo que nos é
“comum”, há também algo que jamais poderíamos ter pensado ou
escrito da mesma forma. Trata-se, pois, do espetáculo teatral de
dois espíritos que se interpenetram: em determinados pontos, eles se
tocam; em outros, formam-se entre eles espaços vazios que não
poderiam ser preenchidos de maneira alguma. O homogêneo e o
heterogêneo encontram-se tão próximos que isso nos força a
pensar; nada é mais profícuo que tais diários da proximidade, como
poderiam ser chamados. É próprio deles, ainda, serem “completos”
ou seja, profusos, e não escritos sob o jugo de um objetivo
determinado.
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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