sexta-feira, 22 de maio de 2020

Os versos do Capitão

De viagem em viagem, nestas andanças de desterrado, cheguei a um país que ainda não conhecia e que aprendi a amar intensamente: a Itália. Nesse país tudo me pareceu fabuloso. Especialmente a simplicidade italiana: o azeite, o pão e o vinho da naturalidade. Até a polícia... A polícia que nunca me maltratou mas que me perseguiu incansavelmente, a polícia que encontrei em todas as partes, até no sonho e na sopa.
Fui convidado pelos escritores para ler meus versos. Li-os de boa-fé por toda parte: em universidades, em anfiteatros, para os portuários de Gênova, em Florença, no Palácio da Lã, em Turim, em Veneza.
Lia com infinito prazer diante de salas repletas. Depois alguém junto de mim repetia a estrofe em magnífico italiano e eu gostava de ouvir meus versos com o resplendor acrescentado pela língua soberba. Mas já à polícia não agradava tanto. Em castelhano passava mas, na versão italiana, a coisa era diferente. A apologia à paz, palavra que já estava proscrita pelos “ocidentais” e mais ainda a direção de minha poesia voltada para as lutas populares tornavam-se perigosas.
Os partidos populares tinham ganho as eleições nos municípios e desse modo fui recebido pelas câmaras municipais como visitante de honra. Fui muitas vezes nomeado cidadão honorário da cidade. Sou cidadão honorário de Milão, Florença e Gênova. Antes ou depois de meu recital, os representantes da Câmara me conferiam o título honorífico. No salão estavam reunidos autoridades, aristocratas e bispos. Tomava-se uma pequena taça de champanha, que eu agradecia em nome de minha pátria distante. Entre abraços e beija-mãos descia finalmente as escadas dos palácios municipais. Na rua me esperava a polícia, que não me deixava em paz.
O de Veneza foi cinematográfico. Dei meu costumeiro recital no palácio. Fui outra vez nomeado cidadão honorário mas a polícia queria que eu fosse embora da cidade onde nasceu e sofreu Desdêmona. Os agentes se postaram noite e dia às portas do hotel.
Meu velho amigo Vittorio Vidale, “o comandante Carlos”, veio de Trieste para ouvir meus versos, acompanhando-me também no prazer infinito de percorrer os canais e ver passar, da gôndola, os palácios cinzentos. Quanto à polícia assediou-me muito mais, vindo diretamente atrás de nós, a dois metros de distância. Então decidi fugir, tal como Casanova, de uma Veneza que queria me pôr entre quatro paredes. Saímos disparados na carreira, junto com Vittorio Vidale e o escritor costarriquenho Joaquín Gutiérrez que se encontrava ali por acaso. Em nosso encalço se lançaram os dois policiais venezianos. Rapidamente conseguimos embarcar na única gôndola motorizada de Veneza, a do prefeito comunista. A gôndola do poder municipal sulcou velozmente as águas do canal enquanto o outro poder corria como um gamo em busca de outra barca. A que tomaram era uma das muitas românticas embarcações a remo, pintada de negro e com adornos de ouro, das usadas pelos namorados em Veneza. Seguiram-nos a distância e sem esperança, como um pato pode perseguir um golfinho.
Toda aquela perseguição chegou ao auge uma manhã em Nápoles. A polícia chegou ao hotel, não muito cedo já que em Nápoles ninguém trabalha cedo – nem a polícia. Pretextaram um engano de passaporte e me pediram que os acompanhasse à Prefeitura. Ali me ofereceram café expresso e me notificaram que devia abandonar o território italiano nesse mesmo dia.
Meu amor pela Itália não contava nada.
Trata-se sem dúvida de um equívoco - disse-lhes.
Nada disso. Nós o estimamos muito mas o senhor tem que se retirar do país.
E depois, de uma maneira indireta, de forma oblíqua, informaram-me que era a Embaixada do Chile que solicitava minha expulsão.
O trem saía de tarde. Na estação já se encontravam meus amigos para se despedirem. Beijos, flores, gritos. Paolo Ricci, os Alicatta, tantos outros. A rivederci. Adiós. Adiós.
Durante minha viagem de trem, que era em direção a Roma, os policiais que me acompanhavam se desmanchavam em gentilezas. Subiam e acomodavam minhas valizes, compravam-me L'Unità e o Paese Sera (mas de jeito algum a imprensa de direita), pediam-me autógrafos, alguns para eles mesmos e outros para seus familiares. Nunca vi uma polícia mais fina:
Sentimos muito, Eccellenza. Somos pobres pais de família e temos que cumprir ordens. É odioso...
Já na estação de Roma, onde tinha que descer e mudar de trem para continuar viagem até a fronteira, vi de minha janela uma grande multidão. Ouvi gritos e observei movimentos confusos e violentos. Grandes braçadas de flores caminhavam até o trem levantadas sobre um rio de cabeças.
Pablo! Pablo!
Quando baixaram os estribos do vagão, elegantemente vigiado, tornei-me logo o centro de uma batalha prodigiosa. Escritores e escritoras, jornalistas, deputados, cerca talvez de mil pessoas, arrebataram-me em poucos segundos das mãos dos policiais. A polícia avançou, por sua vez, e me resgatou dos braços de meus amigos. Distingui naqueles momentos dramáticos alguns rostos famosos: Alberto Moravia e sua mulher Elsa Morante, novelista como ele, o famoso pintor Renato Guttuso, outros poetas e outros pintores, Carlo Levi, o célebre autor de Cristo si è Fermato a Eboli, estendia-me um ramo de rosas. Com tudo isto as flores caíam no chão, voavam chapéus e guarda-chuvas, socos soavam como explosões. A polícia levava a pior e fui recuperado outra vez pelos amigos. Na refrega pude ver a muito doce Elsa Morante golpeando com sua sombrinha de seda a cabeça de um policial. Apressadamente passavam os carrinhos de frete que levavam e traziam bagagens. Vi um dos carregadores, um facchino corpulento, descarregar uma bordoada nas costas da força pública. Eram adesões do povo romano. Tao intrincada se tornou a contenda que os policiais me disseram, num aparte:
Fale a seus amigos, diga-lhes que se acalmem.
A multidão gritava:
Neruda fica em Roma! Neruda não vai embora da Itália! Que fique o poeta! Que fique o chileno! Que vá embora o austríaco!
(O “austríaco” era De Gasperi, primeiro-ministro da Itália.)
Ao cabo de meia hora de pugilato chegou uma ordem superior por meio da qual me era concedida a permissão de ficar na Itália. Meus amigos me abraçaram e me beijaram e eu me afastei da estação pisando com pena as flores destroçadas pela batalha.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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