De
viagem em viagem, nestas andanças de desterrado, cheguei a um país
que ainda não conhecia e que aprendi a amar intensamente: a Itália.
Nesse país tudo me pareceu fabuloso. Especialmente a simplicidade
italiana: o azeite, o pão e o vinho da naturalidade. Até a
polícia... A polícia que nunca me maltratou mas que me perseguiu
incansavelmente, a polícia que encontrei em todas as partes, até no
sonho e na sopa.
Fui
convidado pelos escritores para ler meus versos. Li-os de boa-fé por
toda parte: em universidades, em anfiteatros, para os portuários de
Gênova, em Florença, no Palácio da Lã, em Turim, em Veneza.
Lia
com infinito prazer diante de salas repletas. Depois alguém junto de
mim repetia a estrofe em magnífico italiano e eu gostava de ouvir
meus versos com o resplendor acrescentado pela língua soberba. Mas
já à polícia não agradava tanto. Em castelhano passava mas, na
versão italiana, a coisa era diferente. A apologia à paz, palavra
que já estava proscrita pelos “ocidentais” e mais ainda a
direção de minha poesia voltada para as lutas populares tornavam-se
perigosas.
Os
partidos populares tinham ganho as eleições nos municípios e desse
modo fui recebido pelas câmaras municipais como visitante de honra.
Fui muitas vezes nomeado cidadão honorário da cidade. Sou cidadão
honorário de Milão, Florença e Gênova. Antes ou depois de meu
recital, os representantes da Câmara me conferiam o título
honorífico. No salão estavam reunidos autoridades, aristocratas e
bispos. Tomava-se uma pequena taça de champanha, que eu agradecia em
nome de minha pátria distante. Entre abraços e beija-mãos descia
finalmente as escadas dos palácios municipais. Na rua me esperava a
polícia, que não me deixava em paz.
O
de Veneza foi cinematográfico. Dei meu costumeiro recital no
palácio. Fui outra vez nomeado cidadão honorário mas a polícia
queria que eu fosse embora da cidade onde nasceu e sofreu Desdêmona.
Os agentes se postaram noite e dia às portas do hotel.
Meu
velho amigo Vittorio Vidale, “o comandante Carlos”, veio de
Trieste para ouvir meus versos, acompanhando-me também no prazer
infinito de percorrer os canais e ver passar, da gôndola, os
palácios cinzentos. Quanto à polícia assediou-me muito mais, vindo
diretamente atrás de nós, a dois metros de distância. Então
decidi fugir, tal como Casanova, de uma Veneza que queria me pôr
entre quatro paredes. Saímos disparados na carreira, junto com
Vittorio Vidale e o escritor costarriquenho Joaquín Gutiérrez que
se encontrava ali por acaso. Em nosso encalço se lançaram os dois
policiais venezianos. Rapidamente conseguimos embarcar na única
gôndola motorizada de Veneza, a do prefeito comunista. A gôndola do
poder municipal sulcou velozmente as águas do canal enquanto o outro
poder corria como um gamo em busca de outra barca. A que tomaram era
uma das muitas românticas embarcações a remo, pintada de negro e
com adornos de ouro, das usadas pelos namorados em Veneza.
Seguiram-nos a distância e sem esperança, como um pato pode
perseguir um golfinho.
Toda
aquela perseguição chegou ao auge uma manhã em Nápoles. A polícia
chegou ao hotel, não muito cedo já que em Nápoles ninguém
trabalha cedo – nem a polícia. Pretextaram um engano de passaporte
e me pediram que os acompanhasse à Prefeitura. Ali me ofereceram
café expresso e me notificaram que devia abandonar o território
italiano nesse mesmo dia.
Meu
amor pela Itália não contava nada.
– Trata-se
sem dúvida de um equívoco - disse-lhes.
– Nada
disso. Nós o estimamos muito mas o senhor tem que se retirar do
país.
E
depois, de uma maneira indireta, de forma oblíqua, informaram-me que
era a Embaixada do Chile que solicitava minha expulsão.
O
trem saía de tarde. Na estação já se encontravam meus amigos para
se despedirem. Beijos, flores, gritos. Paolo Ricci, os Alicatta,
tantos outros. A rivederci. Adiós. Adiós.
Durante
minha viagem de trem, que era em direção a Roma, os policiais que
me acompanhavam se desmanchavam em gentilezas. Subiam e acomodavam
minhas valizes, compravam-me L'Unità e o Paese Sera
(mas de jeito algum a imprensa de direita), pediam-me autógrafos,
alguns para eles mesmos e outros para seus familiares. Nunca vi uma
polícia mais fina:
– Sentimos
muito, Eccellenza. Somos pobres pais de família e temos que cumprir
ordens. É odioso...
Já
na estação de Roma, onde tinha que descer e mudar de trem para
continuar viagem até a fronteira, vi de minha janela uma grande
multidão. Ouvi gritos e observei movimentos confusos e violentos.
Grandes braçadas de flores caminhavam até o trem levantadas sobre
um rio de cabeças.
– Pablo!
Pablo!
Quando
baixaram os estribos do vagão, elegantemente vigiado, tornei-me logo
o centro de uma batalha prodigiosa. Escritores e escritoras,
jornalistas, deputados, cerca talvez de mil pessoas, arrebataram-me
em poucos segundos das mãos dos policiais. A polícia avançou, por
sua vez, e me resgatou dos braços de meus amigos. Distingui naqueles
momentos dramáticos alguns rostos famosos: Alberto Moravia e sua
mulher Elsa Morante, novelista como ele, o famoso pintor Renato
Guttuso, outros poetas e outros pintores, Carlo Levi, o célebre
autor de Cristo si è Fermato a Eboli, estendia-me um ramo de rosas.
Com tudo isto as flores caíam no chão, voavam chapéus e
guarda-chuvas, socos soavam como explosões. A polícia levava a pior
e fui recuperado outra vez pelos amigos. Na refrega pude ver a muito
doce Elsa Morante golpeando com sua sombrinha de seda a cabeça de um
policial. Apressadamente passavam os carrinhos de frete que levavam e
traziam bagagens. Vi um dos carregadores, um facchino corpulento,
descarregar uma bordoada nas costas da força pública. Eram adesões
do povo romano. Tao intrincada se tornou a contenda que os policiais
me disseram, num aparte:
– Fale
a seus amigos, diga-lhes que se acalmem.
A
multidão gritava:
– Neruda
fica em Roma! Neruda não vai embora da Itália! Que fique o poeta!
Que fique o chileno! Que vá embora o austríaco!
(O
“austríaco” era De Gasperi, primeiro-ministro da Itália.)
Ao
cabo de meia hora de pugilato chegou uma ordem superior por meio da
qual me era concedida a permissão de ficar na Itália. Meus amigos
me abraçaram e me beijaram e eu me afastei da estação pisando com
pena as flores destroçadas pela batalha.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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