quarta-feira, 6 de maio de 2020

O café da manhã

A gente recendia um cheiro fresco quando entramos no terraço, onde sua bolsa a tiracolo estava ainda aberta sobre a mesa, e enquanto ela se sentava numa das cadeiras de vime eu fui abrindo as cortinas que estavam por abrir, e meio escondido atrás de uma das colunas amassei o nariz no vidro e pude ver, apesar da cerração, a dona Mariana agachada junto a um canteiro da horta lá embaixo, as mãos na terra, o regador ao lado, espreitando de espaço a espaço e discretamente na direção dos vidros altos do terraço, e foi então que saí pro patamar da escada e, prendendo as mãos na cerâmica da mureta, gritei seu nome pedindo por café, mas logo tornei a entrar no foco dos seus olhos, sua cabeça reclinada no encosto da almofada, a pele cor-de-rosa e apaziguada, um suspiro breve e denso como se dissesse “eu não tive o bastante, mas tive o suficiente” (que era o que ela me dizia sempre), e eu sem dizer nada me curvei sobre o tampo da mesa de sucupira, deslocando pr’um canto sua bolsa de couro e meus pesados cinzeiros de ferro, e foi nesse momento que a dona Mariana entrou com seu jeitão de mulata protestante, as manchas na pele parda e desbotada, os óculos de lentes grossas, nos cumprimentando como sempre encabulada, mas sem dar bola pro seu embaraço eu imediatamente encomendei “o café”, e ela sabia muito bem, pelo tom, que que eu queria dizer com isso, e sabia perfeitamente em que dias é que devia servi-lo assim completo (minha cama larga quase sempre escancarada), por isso ela tratou envergonhada de correr rápida pra cozinha, e eu ali no terraço corri os vidros do vão central, logo puxando uma cadeira e me sentando junto da abertura e, com os olhos pendurados na paisagem imprecisa que tinha em frente, comecei a pensar quase com cuidado no que poderia passar pela sua cabeça de purezas, e fui concluindo como sempre “bolas! pra sua confusão, dona Mariana, bolas! pra sua falta de entendimento, dona Mariana, sim, a mesma cama escancarada, mas bolas! pro que a senhora pensa” e eu ia mexendo nesses cascalhos aqui dentro (na verdade me exercitando na magia do exorcismo), e a minha caseira já tinha estendido na mesa a toalha xadrez, e em cima já estavam as louças, o pote de mel, a cumbuca com frutas, o cesto de pão e a manteigueira, e mais o canecão de barro com margaridas e melindros, e a dona Mariana, sempre sem nos olhar, já tinha voltado quem sabe mais tranquila pra cozinha, e no terraço a gente só ouvia o ruído alegre do alumínio das panelas, e eu estava achando muito bom que fosse tudo exatamente assim, quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, sentindo o cheiro poderoso do café que já vinha em grossas ondas do coador lá na cozinha, eu não disse nada, sequer lhe virei o rosto, continuei alisando o Bingo, meu vira-lata, e fui pensando que o primeiro cigarro da manhã, aquele que eu acenderia dali a pouco depois do café, era, sem a menor sombra de dúvida, uma das sete maravilhas.
Raduan Nassar, in Um copo de cólera

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