A
gente recendia um cheiro fresco quando entramos no terraço, onde sua
bolsa a tiracolo estava ainda aberta sobre a mesa, e enquanto ela se
sentava numa das cadeiras de vime eu fui abrindo as cortinas que
estavam por abrir, e meio escondido atrás de uma das colunas amassei
o nariz no vidro e pude ver, apesar da cerração, a dona Mariana
agachada junto a um canteiro da horta lá embaixo, as mãos na terra,
o regador ao lado, espreitando de espaço a espaço e discretamente
na direção dos vidros altos do terraço, e foi então que saí pro
patamar da escada e, prendendo as mãos na cerâmica da mureta,
gritei seu nome pedindo por café, mas logo tornei a entrar no foco
dos seus olhos, sua cabeça reclinada no encosto da almofada, a pele
cor-de-rosa e apaziguada, um suspiro breve e denso como se dissesse
“eu não tive o bastante, mas tive o suficiente” (que era o que
ela me dizia sempre), e eu sem dizer nada me curvei sobre o tampo da
mesa de sucupira, deslocando pr’um canto sua bolsa de couro e meus
pesados cinzeiros de ferro, e foi nesse momento que a dona Mariana
entrou com seu jeitão de mulata protestante, as manchas na pele
parda e desbotada, os óculos de lentes grossas, nos cumprimentando
como sempre encabulada, mas sem dar bola pro seu embaraço eu
imediatamente encomendei “o café”, e ela sabia muito bem, pelo
tom, que que eu queria dizer com isso, e sabia perfeitamente em que
dias é que devia servi-lo assim completo (minha cama larga quase
sempre escancarada), por isso ela tratou envergonhada de correr
rápida pra cozinha, e eu ali no terraço corri os vidros do vão
central, logo puxando uma cadeira e me sentando junto da abertura e,
com os olhos pendurados na paisagem imprecisa que tinha em frente,
comecei a pensar quase com cuidado no que poderia passar pela sua
cabeça de purezas, e fui concluindo como sempre “bolas! pra sua
confusão, dona Mariana, bolas! pra sua falta de entendimento, dona
Mariana, sim, a mesma cama escancarada, mas bolas! pro que a senhora
pensa” e eu ia mexendo nesses cascalhos aqui dentro (na verdade me
exercitando na magia do exorcismo), e a minha caseira já tinha
estendido na mesa a toalha xadrez, e em cima já estavam as louças,
o pote de mel, a cumbuca com frutas, o cesto de pão e a
manteigueira, e mais o canecão de barro com margaridas e melindros,
e a dona Mariana, sempre sem nos olhar, já tinha voltado quem sabe
mais tranquila pra cozinha, e no terraço a gente só ouvia o ruído
alegre do alumínio das panelas, e eu estava achando muito bom que
fosse tudo exatamente assim, quando ela me perguntou “que que você
tem?”, mas eu, sentindo o cheiro poderoso do café que já vinha em
grossas ondas do coador lá na cozinha, eu não disse nada, sequer
lhe virei o rosto, continuei alisando o Bingo, meu vira-lata, e fui
pensando que o primeiro cigarro da manhã, aquele que eu acenderia
dali a pouco depois do café, era, sem a menor sombra de dúvida, uma
das sete maravilhas.
Raduan
Nassar, in Um copo de cólera
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