Apareceu
uma dificuldade, insolúvel durante meses. Como adquirir livros? No
fim da história do lenhador, dos fugitivos e dos lobos havia um
pequeno catálogo. Cinco, seis tostões o volume. Tencionei comprar
alguns, mas José Batista me afirmou que aquilo era preço de Lisboa,
em moeda forte. E Lisboa ficava longe.
Invoquei,
num desespero, o socorro de Emília. Eu precisava ler, não os
compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor,
vinganças, coisas até então desconhecidas. Em falta disso,
agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e
anedotas das folhinhas. Esses retalhos me excitavam o desejo, que se
ia transformando em ideia fixa. Queria isolar-me, como fiz quando nos
mudamos em razão de consertos na casa. Para bem dizer, os outros é
que se mudaram. A pretexto de ver os trabalhos, escapulia-me com o
romance debaixo do paletó, voltava, desviava-me dos pedreiros,
serventes e pintores, ia esconder-me na sala. Mergulhava numa
espreguiçadeira e, empoeirado, sujo de cal, sentindo o cheiro das
tintas, passava horas adivinhando a narrativa, à luz que se coava
pelos vidros baços. Privara-me desse refúgio. E onde conseguir
livros?
Emília
tentou auxiliar-me, contou pelos dedos os possuidores prováveis de
bibliotecas, sisudos, inacessíveis: Dr. Mota Lima, Professor Rijo,
Padre Loureiro. Não me arriscaria a chateá-los. Mais próximo,
havia o tabelião Jerônimo Barreto. Diariamente, percorrendo a
Ladeira da Matriz, demorava-me em frente do cartório dele, enfiava
os olhos famintos pela janela, via numa estante, em fileiras densas,
bonitas encadernações de cores vivas. À mesa larga, em mangas de
camisa, o funcionário manejava instrumentos jurídicos. E um
respeito cheio de inveja me detinha na calçada. Atribuí àquele
rapaz moreno ciência poderosa, estranhei vê-lo, simples e calmo,
juntar-se aos frequentadores da loja, onde metia na conversa
Robespierre e Marat, dois tipos que venerei antes de me chegar
qualquer notícia de revolução e da França.
Esperei
que Emília falasse a Jerônimo. Recusou-se. Expus a situação a
José Batista, o único empregado que não me inspirava rancor. José
Batista fechou o diário, escutou-me, julgou dispensáveis os
medianeiros, pois a minha pretensão era modesta. Eu a considerava
exorbitante.
Saí
do escritório num desânimo. Impossível entender-me com o homem
sabido, conhecedor de Marat, Robespierre, outros que me fugiam da
memória e da língua. Essas personagens me acovardavam. E o
proprietário delas guardava-as com certeza ciumento, não deixaria
mãos bisonhas manchá-las de suor. Afirmei, repeti mentalmente que
não me avizinharia de Jerônimo Barreto.
Dirigi-me
a casa, subi a calçada, retardei o passo, como de costume, diante
das procurações e públicas-formas. E bati à porta. Um minuto
depois estava na sala, explicando meu infortúnio, solicitando o
empréstimo de uma daquelas maravilhas. Mais tarde me assombrou o
arranco de energia, que em horas de tormento se reproduziu. Como veio
semelhante desígnio? De fato não houve desígnio. Foi uma
inexplicável desaparição da timidez, quase a desaparição de mim
mesmo. Expressei-me claro, exibi os gadanhos limpos, assegurei que
não dobraria as folhas, não as estragaria com saliva. Jerônimo
abriu a estante, entregou-me sorrindo O Guarani, convidou-me a
voltar, franqueou-me as coleções todas.
Retirei-me
enlevado, vesti em papel de embrulho a percalina vermelha,
entretive-me com D. Antônio de Mariz, Cecília, Peri, fidalgos,
aventureiros, o Paquequer. Certas expressões me recordaram a seleta
e a linguagem de meu pai em lances de entusiasmo. Vi o retrato de
José de Alencar, barbado, semelhante ao Barão de Macaúbas, e achei
notável usarem os dois uma prosa fofa. Vencidos o incêndio e a
cheia, dois elementos de resistência na literatura nacional,
examinei os volumes, desencapei-os, restituí-os ao dono.
Jerônimo
Barreto me desviou para as obras de carregação. Viajei bastante,
abeirei-me de condessas. Mas permaneci no desalinho, esgueirando-me
pelos cantos, e o juízo severo da família se agravava. Apenas meu
primo José, ouvindo-me descrever uma casa queimada, resmungou:
— Falante
como o diabo.
Talvez
me houvessem ficado alguns adjetivos do Guarani. Isto não
representou vantagem, pelo menos no princípio.
Surgiu
na cidade uma espécie de colégio e introduziram-me nele. Quando
cheguei, o diretor, insinuante, macio, ditou meia dúzia de linhas a
diversos novatos. Emendou e classificou os ditados; pegou o meu,
horrorizou-se, escreveu na margem larga do almaço: incorrigível.
Esta dura sentença não me abalou. Até que me envaideci um pouco
vendo a minha escrita diferente das outras.
Dias
depois o sujeito me pediu a constituição do Brasil e uma gramática.
Levei a gramática, mas embirrei com a constituição, mudei-a numa
história do Brasil de perguntas e respostas. Assim, não analisei o
estatuto do meu país e dei a Jovino Xavier uma impressão miserável.
Recebendo as cartonagens, Jovino travou comigo um diálogo:
espantou-se, franziu os beiços, machucou o bigode, cocou a cabeça,
entalado. E deixou-me em paz, esteve semanas sem me dirigir palavra,
certamente julgando-me imbecil, o que muito me serviu.
Nesse
tempo eu andava nos fuzuês de Rocambole. Jerônimo Barreto me fazia
percorrer diversos caminhos: revelara-me Joaquim Manuel de Macedo,
Júlio Verne, afinal Ponson du Terrail, em folhetos devorados na
escola, debaixo das laranjeiras do quintal, nas pedras do Paraíba,
em cima do caixão de velas, junto ao dicionário que tinha bandeiras
e figuras.
Os
meus colegas se afastavam de mim, declamavam as capitais, os rios da
Europa. E eu mascava os prolegômenos: vinte e quatro horas,
trezentos e sessenta e cinco dias, raça branca, raça negra. Quando
tomei pé na Europa, eles exploravam outras partes do mundo. Surdo às
explicações do mestre, alheio aos remoques dos garotos,
embrenhava-me na leitura do precioso fascículo, escondido entre as
folhas de um atlas. Às vezes procurava na carta os lugares que o
ladrão terrível percorrera. E o mapa crescia, povoava-se,
riscava-se de estradas por onde rodavam caleças e diligências.
Conheci
desse jeito várias cidades, vivi nelas, enquanto os pequenos em
redor se esgoelavam, num barulho de feira. O rumor não me atingia.
Em vão me falavam. Sacudido, sobressaltava-me, as ideias ausentes,
como se me arrancassem do sono. Olhavam-me estupefatos, devagar me
inteirava da realidade.
Governadores-gerais,
holandeses e franceses começavam a importunar-me. Esquartejavam-se
períodos, subdividiam-se e rotulavam-se as peças em medonha
algazarra. Os meus novos amigos guardavam maquinalmente façanhas
portuguesas, francesas e holandesas, regras de sintaxe — e
brilhavam nas sabatinas. Segunda-feira estavam esquecidos, e no fim
da semana precisavam repetir o exercício, decorar provisoriamente
toda a matéria. À medida que avançavam, a tarefa se ia tornando
mais penosa: ficavam apenas, algum tempo, as últimas lições. Eu
achava estupidez pretenderem obrigar-me a papaguear de oitiva.
Desonestidade
falar de semelhante maneira, fingindo sabedoria. Ainda que tivesse de
cor um texto incompreensível, calava-me diante do professor — e a
minha reputação era lastimosa.
Um
dia, porém, houve exame imprevisto e os alunos encrencaram nos rios
e nas capitais. Haviam-me chegado pedaços disso. Geografia velha,
anterior à locomotiva, cheia de soluções de continuidade, mas foi
exposta e produziu eleito regular. Mencionei o bosque de Bolonha,
Versalhes, o Sena, a torre de Londres, as pontes de Veneza, o Reno e
o Tibre, o porto de Marselha.
Não
era exatamente o que desejavam. Em todo o caso fui ouvido. Certas
interrupções me avivavam a eloquência. O Mediterrâneo?
Perfeitamente, a Córsega, terra de Napoleão. Da poeira de Ajácio
ao trono de S. Luís. Jerônimo Barreto me falara na poeira e no
trono — e isto não apresentava dificuldade: Ajácio estava ali no
mapa, S. Luís tinha sido rei da França, Napoleão se estrepara na
campanha da Rússia, logo nas primeiras páginas do Rocambole.
Num
desconchavo, referi-me à catedral de Notre-Dame e ao Vesúvio
familiarmente, como se os tivesse visto. Além disso, arrolei plantas
e animais exóticos: carvalhos e pinheiros, vinhedos e trigais, lobos
e javalis, melros e rouxinóis.
Finda
a novidade, os meus conhecimentos originaram desconfiança e algum
desdém: Versalhes, Notre-Dame e os rouxinóis tinham aparência de
contrabando. E eram inúteis, com certeza. Mas serviam para a
composição de narrativas — e fora daí não me inspiravam
interesse.
A
existência comum se distanciava e deformava; conhecidos e
transeuntes ganhavam caracteres das personagens do folhetim. Descurei
as obrigações da escola e os deveres que me impunham na loja.
Algumas disciplinas, porém, me ajudavam a compreensão do romance e
tolerei-as — bocejei e cochilei buscando penetrá-las.
Em
poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e
linguagem. Minha mãe notou as modificações com impaciência. E
Jovino Xavier também se impacientou, porque às vezes eu revelava
progresso considerável, outras vezes manifestava ignorância de
selvagem. Os caixeiros do estabelecimento deixaram de afligir-me e,
pelos modos, entraram a considerar-me um indivíduo esquisito.
Minha
mãe, Jovino Xavier e os caixeiros evaporavam-se. A única pessoa
real e próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de
sonhos, me falava na poeira de Ajácio, no trono de S. Luís, em
Robespierre, em Marat.
Graciliano
Ramos, in Infância
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