domingo, 17 de maio de 2020

Jerônimo Barreto


Apareceu uma dificuldade, insolúvel durante meses. Como adquirir livros? No fim da história do lenhador, dos fugitivos e dos lobos havia um pequeno catálogo. Cinco, seis tostões o volume. Tencionei comprar alguns, mas José Batista me afirmou que aquilo era preço de Lisboa, em moeda forte. E Lisboa ficava longe.
Invoquei, num desespero, o socorro de Emília. Eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, vinganças, coisas até então desconhecidas. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e anedotas das folhinhas. Esses retalhos me excitavam o desejo, que se ia transformando em ideia fixa. Queria isolar-me, como fiz quando nos mudamos em razão de consertos na casa. Para bem dizer, os outros é que se mudaram. A pretexto de ver os trabalhos, escapulia-me com o romance debaixo do paletó, voltava, desviava-me dos pedreiros, serventes e pintores, ia esconder-me na sala. Mergulhava numa espreguiçadeira e, empoeirado, sujo de cal, sentindo o cheiro das tintas, passava horas adivinhando a narrativa, à luz que se coava pelos vidros baços. Privara-me desse refúgio. E onde conseguir livros?
Emília tentou auxiliar-me, contou pelos dedos os possuidores prováveis de bibliotecas, sisudos, inacessíveis: Dr. Mota Lima, Professor Rijo, Padre Loureiro. Não me arriscaria a chateá-los. Mais próximo, havia o tabelião Jerônimo Barreto. Diariamente, percorrendo a Ladeira da Matriz, demorava-me em frente do cartório dele, enfiava os olhos famintos pela janela, via numa estante, em fileiras densas, bonitas encadernações de cores vivas. À mesa larga, em mangas de camisa, o funcionário manejava instrumentos jurídicos. E um respeito cheio de inveja me detinha na calçada. Atribuí àquele rapaz moreno ciência poderosa, estranhei vê-lo, simples e calmo, juntar-se aos frequentadores da loja, onde metia na conversa Robespierre e Marat, dois tipos que venerei antes de me chegar qualquer notícia de revolução e da França.
Esperei que Emília falasse a Jerônimo. Recusou-se. Expus a situação a José Batista, o único empregado que não me inspirava rancor. José Batista fechou o diário, escutou-me, julgou dispensáveis os medianeiros, pois a minha pretensão era modesta. Eu a considerava exorbitante.
Saí do escritório num desânimo. Impossível entender-me com o homem sabido, conhecedor de Marat, Robespierre, outros que me fugiam da memória e da língua. Essas personagens me acovardavam. E o proprietário delas guardava-as com certeza ciumento, não deixaria mãos bisonhas manchá-las de suor. Afirmei, repeti mentalmente que não me avizinharia de Jerônimo Barreto.
Dirigi-me a casa, subi a calçada, retardei o passo, como de costume, diante das procurações e públicas-formas. E bati à porta. Um minuto depois estava na sala, explicando meu infortúnio, solicitando o empréstimo de uma daquelas maravilhas. Mais tarde me assombrou o arranco de energia, que em horas de tormento se reproduziu. Como veio semelhante desígnio? De fato não houve desígnio. Foi uma inexplicável desaparição da timidez, quase a desaparição de mim mesmo. Expressei-me claro, exibi os gadanhos limpos, assegurei que não dobraria as folhas, não as estragaria com saliva. Jerônimo abriu a estante, entregou-me sorrindo O Guarani, convidou-me a voltar, franqueou-me as coleções todas.
Retirei-me enlevado, vesti em papel de embrulho a percalina vermelha, entretive-me com D. Antônio de Mariz, Cecília, Peri, fidalgos, aventureiros, o Paquequer. Certas expressões me recordaram a seleta e a linguagem de meu pai em lances de entusiasmo. Vi o retrato de José de Alencar, barbado, semelhante ao Barão de Macaúbas, e achei notável usarem os dois uma prosa fofa. Vencidos o incêndio e a cheia, dois elementos de resistência na literatura nacional, examinei os volumes, desencapei-os, restituí-os ao dono.
Jerônimo Barreto me desviou para as obras de carregação. Viajei bastante, abeirei-me de condessas. Mas permaneci no desalinho, esgueirando-me pelos cantos, e o juízo severo da família se agravava. Apenas meu primo José, ouvindo-me descrever uma casa queimada, resmungou:
Falante como o diabo.
Talvez me houvessem ficado alguns adjetivos do Guarani. Isto não representou vantagem, pelo menos no princípio.
Surgiu na cidade uma espécie de colégio e introduziram-me nele. Quando cheguei, o diretor, insinuante, macio, ditou meia dúzia de linhas a diversos novatos. Emendou e classificou os ditados; pegou o meu, horrorizou-se, escreveu na margem larga do almaço: incorrigível. Esta dura sentença não me abalou. Até que me envaideci um pouco vendo a minha escrita diferente das outras.
Dias depois o sujeito me pediu a constituição do Brasil e uma gramática. Levei a gramática, mas embirrei com a constituição, mudei-a numa história do Brasil de perguntas e respostas. Assim, não analisei o estatuto do meu país e dei a Jovino Xavier uma impressão miserável. Recebendo as cartonagens, Jovino travou comigo um diálogo: espantou-se, franziu os beiços, machucou o bigode, cocou a cabeça, entalado. E deixou-me em paz, esteve semanas sem me dirigir palavra, certamente julgando-me imbecil, o que muito me serviu.
Nesse tempo eu andava nos fuzuês de Rocambole. Jerônimo Barreto me fazia percorrer diversos caminhos: revelara-me Joaquim Manuel de Macedo, Júlio Verne, afinal Ponson du Terrail, em folhetos devorados na escola, debaixo das laranjeiras do quintal, nas pedras do Paraíba, em cima do caixão de velas, junto ao dicionário que tinha bandeiras e figuras.
Os meus colegas se afastavam de mim, declamavam as capitais, os rios da Europa. E eu mascava os prolegômenos: vinte e quatro horas, trezentos e sessenta e cinco dias, raça branca, raça negra. Quando tomei pé na Europa, eles exploravam outras partes do mundo. Surdo às explicações do mestre, alheio aos remoques dos garotos, embrenhava-me na leitura do precioso fascículo, escondido entre as folhas de um atlas. Às vezes procurava na carta os lugares que o ladrão terrível percorrera. E o mapa crescia, povoava-se, riscava-se de estradas por onde rodavam caleças e diligências.
Conheci desse jeito várias cidades, vivi nelas, enquanto os pequenos em redor se esgoelavam, num barulho de feira. O rumor não me atingia. Em vão me falavam. Sacudido, sobressaltava-me, as ideias ausentes, como se me arrancassem do sono. Olhavam-me estupefatos, devagar me inteirava da realidade.
Governadores-gerais, holandeses e franceses começavam a importunar-me. Esquartejavam-se períodos, subdividiam-se e rotulavam-se as peças em medonha algazarra. Os meus novos amigos guardavam maquinalmente façanhas portuguesas, francesas e holandesas, regras de sintaxe — e brilhavam nas sabatinas. Segunda-feira estavam esquecidos, e no fim da semana precisavam repetir o exercício, decorar provisoriamente toda a matéria. À medida que avançavam, a tarefa se ia tornando mais penosa: ficavam apenas, algum tempo, as últimas lições. Eu achava estupidez pretenderem obrigar-me a papaguear de oitiva.
Desonestidade falar de semelhante maneira, fingindo sabedoria. Ainda que tivesse de cor um texto incompreensível, calava-me diante do professor — e a minha reputação era lastimosa.
Um dia, porém, houve exame imprevisto e os alunos encrencaram nos rios e nas capitais. Haviam-me chegado pedaços disso. Geografia velha, anterior à locomotiva, cheia de soluções de continuidade, mas foi exposta e produziu eleito regular. Mencionei o bosque de Bolonha, Versalhes, o Sena, a torre de Londres, as pontes de Veneza, o Reno e o Tibre, o porto de Marselha.
Não era exatamente o que desejavam. Em todo o caso fui ouvido. Certas interrupções me avivavam a eloquência. O Mediterrâneo? Perfeitamente, a Córsega, terra de Napoleão. Da poeira de Ajácio ao trono de S. Luís. Jerônimo Barreto me falara na poeira e no trono — e isto não apresentava dificuldade: Ajácio estava ali no mapa, S. Luís tinha sido rei da França, Napoleão se estrepara na campanha da Rússia, logo nas primeiras páginas do Rocambole.
Num desconchavo, referi-me à catedral de Notre-Dame e ao Vesúvio familiarmente, como se os tivesse visto. Além disso, arrolei plantas e animais exóticos: carvalhos e pinheiros, vinhedos e trigais, lobos e javalis, melros e rouxinóis.
Finda a novidade, os meus conhecimentos originaram desconfiança e algum desdém: Versalhes, Notre-Dame e os rouxinóis tinham aparência de contrabando. E eram inúteis, com certeza. Mas serviam para a composição de narrativas — e fora daí não me inspiravam interesse.
A existência comum se distanciava e deformava; conhecidos e transeuntes ganhavam caracteres das personagens do folhetim. Descurei as obrigações da escola e os deveres que me impunham na loja. Algumas disciplinas, porém, me ajudavam a compreensão do romance e tolerei-as — bocejei e cochilei buscando penetrá-las.
Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e linguagem. Minha mãe notou as modificações com impaciência. E Jovino Xavier também se impacientou, porque às vezes eu revelava progresso considerável, outras vezes manifestava ignorância de selvagem. Os caixeiros do estabelecimento deixaram de afligir-me e, pelos modos, entraram a considerar-me um indivíduo esquisito.
Minha mãe, Jovino Xavier e os caixeiros evaporavam-se. A única pessoa real e próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de sonhos, me falava na poeira de Ajácio, no trono de S. Luís, em Robespierre, em Marat.
Graciliano Ramos, in Infância

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