segunda-feira, 18 de maio de 2020

Espaços não submetidos ao rendimento escolar

Cruzemos a fronteira que separa o Brasil da Argentina e ouçamos Javier Maidana, professor em um colégio de um bairro popular da grande Buenos Aires. Ele relembra o dia em que duas mulheres vieram propor a abertura de um "Centro de Leitura para Todos". Ele estava lá, do lado dos alunos, tão desconfiado quanto aqueles jovens brasileiros quando viram chegar as animadoras de A Cor da Letra. Uma das duas visitantes, Ani Siro, leu em voz alta um texto que falava da descoberta dos paraísos pessoais e perguntou se eles tinham um tal paraíso:

Aconteceu comigo uma coisa bizarra, eu redescobri o prazer de ouvir uma história, como quando eu era pequena, a voz da nossa leitora nos envolvia delicadamente e eu esquecia tudo, que era professora, que era adulta, que estava diante de meus alunos, e viajei até a minha infância. E me lembrei que meu paraíso era dentro dos banheiros precários que existiam na minha casa. Eram feitos de madeira e a umidade fazia marcas que adquiriam formas humanas, ou demoníacas, ou se transformavam em monstros mitológicos com quem eu podia conversar se quisesse ou se tivesse necessidade de fazê-lo, ou ficar ouvindo o que me diziam. Ali, quando eu tinha sete anos, me sentia protegida. [...] Não consegui resistir e tive que compartilhar essa lembrança com aqueles que participavam da reunião. Em seguida, alguma coisa mudou. O ambiente ficou mais relaxado, tudo parecia mais à vontade e todos começaram a falar de seus paraísos”.

Javier se tornou um dos animadores desse centro de leitura. E se esse centro está localizado dentro de um colégio, ele é ao mesmo tempo dotado de uma certa extraterritorialidade: como dizem seus entusiastas, é "um espaço de não obrigação no meio da obrigação", uma terra de liberdade não submetida ao rendimento escolar, e os adolescentes, meninos e meninas de doze a dezessete anos, fazem parte do projeto porque optaram por isso. Nem todos são bons alunos e a maioria não teve uma infância embalada por leituras noturnas, mas nesse centro eles desfrutam da presença calorosa e da escuta de mulheres ou homens que adoram a literatura e que se sobressaem na arte de falar de sua própria experiência como leitores.
Assim como os adolescentes brasileiros, eles aprenderam a ler em voz alta sem temer o olhar dos outros. No início, também ficavam apavorados: “Eu não tinha medo dos livros, tinha medo da rejeição das pessoas para quem eu lia”. Também eles foram reconhecidos, como Dario, que se lembra da primeira vez que leu em público: “Quando eu os olhava, via um pequeno sorriso em seus rostos que me fazia sentir como em minha casa, e o melhor momento foi quando, no final, eles me aplaudiram. Pela primeira vez na minha vida, eu me senti importante. [...] Quando leio para as crianças e elas me aplaudem, me sinto único e importante”. Aqueles que desejam vão ler para outros no colégio ou fora dele, enquanto seus companheiros são “exploradores de livros”, que renovam as leituras propostas depois de ter aprofundado os critérios de seleção. Todas as semanas eles se encontram, primeiro para momentos de especulação pessoal, de intimidade com os livros, depois comentam suas impressões, suas preferências, suas histórias singulares de leitores. Em seguida, o coordenador lê em voz alta um texto que selecionou e todos debatem as possíveis interpretações. Como na experiência brasileira, às vezes são organizadas saídas culturais que levam à descoberta de outros bairros.
Na véspera da minha chegada, eles haviam buscado na internet poemas de Jacques Prévert de que gostavam para que eu lesse em francês e eles, em espanhol. Também deram voz a outros poemas e a contos que, em sua maioria, falavam de amor e, algumas vezes, da morte; depois discutiram um deles, no caso, o conto “A dama ou o tigre?”, do americano Raymond Smullyan. Sentia-se no grupo muita amizade e, ouvindo-os, eu pensava que havia ali uma escola de atenção delicada ao outro — e ao outro sexo. Alguns leram os próprios textos e um deles contou que escrevia sempre sobre uma mulher, até o dia em que um poeta foi ao centro e lhe disse para tentar encontrar a beleza que buscava naquela mulher na natureza. “Gostei daquilo, me abriu muitas portas. Fiz uma poesia combinando a mulher com a natureza.” A partir da mulher sonhada, o mundo entrou em seus poemas. Um outro garoto, Juan Carlos, disse: “Era preciso que eu fizesse algo por minha vida. Se não tivesse encontrado o centro de leitura, não sei o que teria sido dela”. E uma jovem, Soledad: “O centro de leitura me ajuda a ser a pessoa que sou, a encontrar vida nas palavras [...] é um espaço para descobrir a si mesmo, um lugar para compartilhar, um lugar para estar com os livros, sem pudores”.
Michèle Petit, in A arte de ler: ou como resistir à adversidade

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