Cruzemos
a fronteira que separa o Brasil da Argentina e ouçamos Javier
Maidana, professor em um colégio de um bairro popular da grande
Buenos Aires. Ele relembra o dia em que duas mulheres vieram propor a
abertura de um "Centro de Leitura para Todos". Ele estava
lá, do lado dos alunos, tão desconfiado quanto aqueles jovens
brasileiros quando viram chegar as animadoras de A Cor da Letra. Uma
das duas visitantes, Ani Siro, leu em voz alta um texto que falava da
descoberta dos paraísos pessoais e perguntou se eles tinham um tal
paraíso:
“Aconteceu
comigo uma coisa bizarra, eu redescobri o prazer de ouvir uma
história, como quando eu era pequena, a voz da nossa leitora nos
envolvia delicadamente e eu esquecia tudo, que era professora, que
era adulta, que estava diante de meus alunos, e viajei até a minha
infância. E me lembrei que meu paraíso era dentro dos banheiros
precários que existiam na minha casa. Eram feitos de madeira e a
umidade fazia marcas que adquiriam formas humanas, ou demoníacas, ou
se transformavam em monstros mitológicos com quem eu podia conversar
se quisesse ou se tivesse necessidade de fazê-lo, ou ficar ouvindo o
que me diziam. Ali, quando eu tinha sete anos, me sentia protegida.
[...] Não consegui resistir e tive que compartilhar essa lembrança
com aqueles que participavam da reunião. Em seguida, alguma coisa
mudou. O ambiente ficou mais relaxado, tudo parecia mais à vontade e
todos começaram a falar de seus paraísos”.
Javier
se tornou um dos animadores desse centro de leitura. E se esse centro
está localizado dentro de um colégio, ele é ao mesmo tempo dotado
de uma certa extraterritorialidade: como dizem seus entusiastas, é
"um espaço de não obrigação no meio da obrigação",
uma terra de liberdade não submetida ao rendimento escolar, e os
adolescentes, meninos e meninas de doze a dezessete anos, fazem parte
do projeto porque optaram por isso. Nem todos são bons alunos e a
maioria não teve uma infância embalada por leituras noturnas, mas
nesse centro eles desfrutam da presença calorosa e da escuta de
mulheres ou homens que adoram a literatura e que se sobressaem na
arte de falar de sua própria experiência como leitores.
Assim
como os adolescentes brasileiros, eles aprenderam a ler em voz alta
sem temer o olhar dos outros. No início, também ficavam apavorados:
“Eu não tinha medo dos livros, tinha medo da rejeição das
pessoas para quem eu lia”. Também eles foram reconhecidos, como
Dario, que se lembra da primeira vez que leu em público: “Quando
eu os olhava, via um pequeno sorriso em seus rostos que me fazia
sentir como em minha casa, e o melhor momento foi quando, no final,
eles me aplaudiram. Pela primeira vez na minha vida, eu me senti
importante. [...] Quando leio para as crianças e elas me aplaudem,
me sinto único e importante”. Aqueles que desejam vão ler para
outros no colégio ou fora dele, enquanto seus companheiros são
“exploradores de livros”, que renovam as leituras propostas
depois de ter aprofundado os critérios de seleção. Todas as
semanas eles se encontram, primeiro para momentos de especulação
pessoal, de intimidade com os livros, depois comentam suas
impressões, suas preferências, suas histórias singulares de
leitores. Em seguida, o coordenador lê em voz alta um texto que
selecionou e todos debatem as possíveis interpretações. Como na
experiência brasileira, às vezes são organizadas saídas culturais
que levam à descoberta de outros bairros.
Na
véspera da minha chegada, eles haviam buscado na internet poemas de
Jacques Prévert de que gostavam para que eu lesse em francês e
eles, em espanhol. Também deram voz a outros poemas e a contos que,
em sua maioria, falavam de amor e, algumas vezes, da morte; depois
discutiram um deles, no caso, o conto “A dama ou o tigre?”, do
americano Raymond Smullyan. Sentia-se no grupo muita amizade e,
ouvindo-os, eu pensava que havia ali uma escola de atenção delicada
ao outro — e ao outro sexo. Alguns leram os próprios textos e um
deles contou que escrevia sempre sobre uma mulher, até o dia em que
um poeta foi ao centro e lhe disse para tentar encontrar a beleza que
buscava naquela mulher na natureza. “Gostei daquilo, me abriu
muitas portas. Fiz uma poesia combinando a mulher com a natureza.”
A partir da mulher sonhada, o mundo entrou em seus poemas. Um outro
garoto, Juan Carlos, disse: “Era preciso que eu fizesse algo por
minha vida. Se não tivesse encontrado o centro de leitura, não sei
o que teria sido dela”. E uma jovem, Soledad: “O centro de
leitura me ajuda a ser a pessoa que sou, a encontrar vida nas
palavras [...] é um espaço para descobrir a si mesmo, um lugar para
compartilhar, um lugar para estar com os livros, sem pudores”.
Michèle
Petit,
in A
arte de ler: ou como resistir à adversidade
Nenhum comentário:
Postar um comentário