Um
grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas,
incontáveis, as letras fervilhavam, miúdas, e as ilustrações
avultavam num papel brilhante como rasto de lesma ou catarro seco.
Principiei a leitura de má vontade. E
logo emperrei na história de um menino vadio que, dirigindo-se à
escola, se retardava a conversar com os passarinhos e recebia deles
opiniões sisudas e bons conselhos.
— Passarinho, queres tu brincar comigo?
Forma de perguntar esquisita, pensei. E o
animalejo, atarefado na construção de um ninho, exprimia-se de
maneira ainda mais confusa. Ave sabida e imodesta, que se confessava
trabalhadora em excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do
dever.
Em seguida vinham outros irracionais,
igualmente bem intencionados e bem falantes. Havia a moscazinha, que
morava na parede de uma chaminé e voava à toa, desobedecendo às
ordens maternas. Tanto voou que afinal caiu no fogo.
Esses dois contos me intrigaram com o
Barão de Macaúbas. Examinei-lhe o retrato e assaltaram-me
presságios funestos. Um tipo de barbas espessas, como as do mestre
rural visto anos atrás. Carrancudo, cabeludo. E perverso. Perverso
com a mosca inocente e perverso com os leitores. Que levava a
personagem barbuda a ingerir-se em negócios de pássaros, de insetos
e de crianças? Nada tinha com esses viventes. O que ele intentava
era elevar as crianças, os insetos e os pássaros ao nível dos
professores.
Não me parecia desarrazoado os brutos se
entenderem, brigarem, fazerem as pazes, narrarem as suas aventuras,
sem dúvida curiosas. Tinha refletido nisso, admitia que os sapos do
açude da Penha manifestassem, cantando, coisas ininteligíveis para
nós Os fracos se queixavam, os fortes gritavam mandando.
Constituíam uma sociedade. Sapos
negociantes, sapos vaqueiros, o Reverendo sapo João Inácio, o sapo
José da Luz, amigo da distinta farda, sapos traquinas, filhos do
cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate mestre Firmo, a sapa
Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O nosso
mundo exíguo podia alargar-se um pouco, enfeitar-se de sonhos e
caraminholas. Infelizmente um doutor, utilizando bichinhos,
impunha-nos a linguagem dos doutores.
— Queres tu brincar comigo?
O passarinho, no galho, respondia com
preceito e moral. E a mosca usava adjetivos colhidos no dicionário.
A figura do barão manchava o frontispício do livro — e a gente
percebia que era dele o pedantismo atribuído à mosca e ao
passarinho. Ridículo um indivíduo hirsuto e grave, doutor e barão,
pipilar conselhos, zumbir admoestações.
E isso ainda era condescendência.
Decifrados a custo os dois apólogos, encolhi-me e desanimei, incapaz
de achar sentido nas páginas seguintes. Li-as soletrando e
gaguejando, nauseado. Lembro-me de um desses horrores, que bocejei
longamente. Um sujeito, acossado, ocultava-se numa caverna. A aranha
providencial veio estender fios à entrada do refúgio. E os
perseguidores não incomodaram o fugitivo: se ele estivesse ali,
teria desmanchado a teia.
D. Maria resumiu essa literatura,
explicou-a. E o meu desalento aumentou. Julguei que ela fantasiava;
impossível enxergar a narrativa simples nas palavras desarrumadas e
compridas.
Temi o Barão de Macaúbas, considerei-o
um sábio enorme, confundi a ciência dele com o enigma apresentado
no catecismo.
— Podemos entender bem isso?
— Não: é um mistério.
Os meus infelizes miolos ferviam,
evaporavam-se, transformavam-se em nevoeiro, e nessa neblina
flutuavam moscas, aranhas e passarinhos, nomes difíceis, vastas
barbas pedagógicas. Achava-me obtuso. A cabeça pendia em largos
cochilos, os dedos esmoreciam, deixavam cair o volume pesado. Contudo
cheguei ao fim dele. Acordei bambo, certo de que nunca me
desembaraçaria dos cipoais escritos. De quem seria o defeito, do
Barão de Macaúbas ou meu? Devia ser meu.
Um homem coberto de responsabilidades com
certeza escrevia direito. Não havia desordem na composição. Só eu
me atrapalhava nela, os meninos comuns viam facilmente o fugitivo
esconder-se na gruta, a aranha fabricar a teia. Humilhava-me — e na
horrível cartonagem só percebia uma confusão de veredas
espinhosas. Não valia a pena esforçar-me por andar nelas. Na
verdade nem tentava qualquer esforço: o exercício me produzia
enjoo.
Restava-me, porém, uma débil esperança,
pois naquela idade ninguém é inteiramente pessimista: segurava-me à
ilusão de que o terceiro livro não seria tão ruim como o segundo.
Procurava enganar-me amparando-me numa incongruência. De fato,
reconhecendo-me inepto, era absurdo pretender melhoria. Não me
conformava. E se o catecismo tivesse para mim algum significado,
pegar-me-ia a Deus, pedir-lhe-ia que me livrasse do Barão de
Macaúbas. Nenhum proveito a libertação me daria: os outros
organizadores de histórias infantis eram provavelmente como ele. Em
todo o caso ambicionei afastar a mosca, a teia de aranha, o pássaro
virtuoso.
Desejo perdido. Recebi um livro
corpulento, origem de calafrios. Papel ordinário, letra safada. E,
logo no intróito, o sinal do malefício: as barbas consideráveis, a
sisudez cabeluda. Desse objeto sinistro guardo a lembrança
mortificadora de muitas páginas relativas à boa pontuação.
Avizinhava-me dos sete anos, não conseguia ler e os meus rascunhos
eram pavorosos. Apesar disso emaranhei-me em regras complicadas,
resmunguei expressões técnicas e encerrei-me num embrutecimento
admirável.
A tabuada e o catecismo eram penosos, mas
aí apenas me obrigavam a decorar certo número de linhas.
— Sete vezes nove?
— Sessenta, pouco mais ou menos. A
exigência de D. Maria não se inquietava com unidades.
— Quantos são os inimigos da alma?
Em três palavras isentava-me da
imposição. Estranhava que se juntasse a carne ao diabo:
naturalmente havia equívoco na resposta. Quis insurgir-me contra o
disparate, mas os sortilégios da tipografia começavam a dominar-me.
Em falta de explicação, imaginei um
diabo carnívoro. A redação desviava esta ideia.
Paciência. Todas as frases artificiais me deixavam perplexo. Enfim a
minha obrigação era papaguear algumas sílabas. D. Maria não
entrava em minúcias, talvez aceitasse o diabo carnívoro. Um
mistério, curto, por felicidade.
O outro mistério, o que se referia a
pontos, vírgulas, parênteses e aspas, estirava-se demais e produzia
um sono terrível.
Foi por esse tempo que me infligiram
Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres
borrados — e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste,
ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua
estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões
assinalados. Um desses barões era provavelmente o de Macaúbas, o
dos passarinhos, da mosca, da teia de aranha, da pontuação. Deus me
perdoe.
Abominei Camões. E ao Barão de Macaúbas
associei Vasco da Gama, Afonso de Alburquerque, o gigante Adamastor,
barão também, decerto.
Graciliano Ramos,
in Infância
Nenhum comentário:
Postar um comentário