Era
uma vez um faminto. Passando um dia diante de uma morada
singularmente grande, ele se dirigiu às pessoas que se aglomeravam
nos degraus da escadaria, perguntando a quem pertencia aquele
palácio. “A um rei dos povos, o mais poderoso do Universo”
responderam. O faminto foi então até os guardiães postados no
pórtico de entrada e pediu uma esmola em nome de Deus. “Donde vens
tu?” perguntaram os guardiães, “então não sabes que basta te
apresentares ao nosso amo e senhor para teres tudo quanto desejas?”
Animado pela resposta, o faminto, embora um tanto ressabiado,
transpôs o pórtico, atravessou o pátio espaçoso que se seguia à
entrada, assim como o jardim sombreado de vigorosas árvores, e logo
alcançou o interior do palácio, passando de aposento em aposento,
todos grandes, de paredes muito altas, mas despojados de qualquer
mobília; sem se deixar perder no labirinto daquela estranha moradia,
ele acabou por chegar a uma ampla sala revestida de azulejos
decorados com desenhos de flores e folhagens que compunham
agradavelmente com a enorme taça de alabastro plantada no meio da
peça, de onde jorrava água fresca e docemente rumorejante; um
tapete de veludo bordado com arabescos cobria parte desta sala, onde,
recostado em almofadas, estava sentado um ancião de suaves barbas
brancas, a face iluminada por um sorriso benigno. O faminto avançou
para o ancião de barbas formosas, saudando-o: “Que a paz esteja
contigo!” “E contigo a paz, a misericórdia e as bênçãos de
Deus!” respondeu o ancião inclinando ligeiramente a fronte. “Que
desejas, pobre homem?” “Ó meu senhor e amo, peço-te uma esmola
em nome de Deus, pois estou tão necessitado a ponto de cair de
fome.” “Por Deus!” exclamou o ancião “é possível que eu
esteja numa cidade onde um ser humano tenha fome como dizes? É
intolerável!” “Que Deus te abençoe e abençoada seja tua santa
mãe” disse o faminto em reconhecimento aos sentimentos do ancião.
“Fica aqui, pobre homem, quero repartir contigo o pão e que te
sirvas do sal da minha mesa.” E logo o ancião bateu palmas e ao
jovem serviçal que se apresentou ordenou que trouxesse o gomil com a
bacia. E disse pouco depois para o faminto: “Hóspede amigo,
chega-te mais perto e lava as mãos”. E o próprio ancião
levantou-se, dobrou o corpo para a frente, e fez com nobreza o gesto
de esfregar as mãos debaixo da água que era supostamente derramada
de um gomil invisível. O faminto ficou sem saber o que pensar da
encenação que seus olhos viam e, como o ancião insistisse, ele deu
dois passos e fez também de conta que lavava as mãos. “Ponham a
toalha. Depressa!” ordenou o ancião aos servidores “e não
demorem em trazer-nos o que comer, que este pobre homem está quase a
desfalecer de fome.” Vários servos começaram a ir e vir, como se
pusessem a mesa e a cobrissem com numerosos pratos. O faminto,
dobrando-se de dor, pensou com seus botões que os pobres deviam
mostrar muita paciência diante dos caprichos dos poderosos,
abstendo-se por isso de dar mostras de irritação. “Senta-te a meu
lado” disse o ancião “e trata de honrar a minha mesa.” “Ouço
e obedeço” disse o faminto sentando-se no tapete ao lado do
ancião, frente à mesa imaginária. “Senhor meu hóspede, minha
casa é a tua casa e minha mesa é a tua mesa. Não faças cerimônia,
come enquanto estiveres no apetite.” E como o ancião o estimulasse
a acompanhá-lo, o faminto não se fez esperar, logo simulando também
tocar nos supostos pratos, espetar bons nacos, e, movendo o queixo,
mastigar e engolir a comida inexistente. “Que me dizes deste pão?”
perguntou o ancião. “Este pão é bem alvo e muito bom, nunca na
vida comi outro que mais me soubesse” respondeu prontamente o
faminto, sem forçar sua gentileza. “Que prazer tu me dás, ó
senhor meu hóspede! Mas penso que não mereço esses elogios, senão
que dirás tu das iguarias que estão à tua esquerda, este assado
com recheio de arroz e amêndoas, este peixe em molho de gergelim, ou
estas costelas de carneiro! E que dirás do aroma?” “O aroma é
embriagador tanto quanto o aspecto e o paladar divinos.” “Não
posso deixar de reconhecer que o senhor meu hóspede está animado da
maior indulgência para com a minha mesa, por isso mesmo vais provar
agora da minha própria mão um bocado incomparável” disse o
ancião, simulando tirar entre as pontas dos dedos um bocado da
travessa e chegá-lo aos lábios do faminto, dizendo: “Deves
mastigar bem!”. O faminto estendeu os lábios para que o bocado lhe
fosse introduzido na boca, mastigando-o bastante em seguida, fechando
até os olhos de deleite para dar maior realidade à sua
representação: “Excelente!” exclamou em acabamento. “Ó meu
hóspede amigo, pelo modo como falas bem se vê que és pessoa de
gosto, habituado a comer à mesa de príncipes e de grandes; come
mais, e que te faça bom proveito.” “Estou satisfeito, já provei
de todos os pratos, não posso mais” disse o faminto sorrindo em
agradecimento, e mal contendo as dores da sua terrível fome. O
ancião então bateu palmas e quando vieram os servos disse: “Podem
trazer a sobremesa”. Os jovens servos romperam numa azáfama,
agitando os braços em gestos variados e com certo ritmo, depois de
tantos outros rápidos e precisos que significavam levantar uma
toalha e pôr outra, embora nada fosse mudado. Finalmente o ancião
ergueu a mão e eles se retiraram. “Dulcifiquemo-nos” disse
o ancião com algum preciosismo “vamos aos doces: esta torta
empolada de nozes e romãs, com certo ar épico, parece muito capaz
de nos tentar. Prova um bocado, hóspede amigo, é em tua honra que
ela há de ser partida. Tens aqui a calda almiscarada, talvez queiras
mesmo polvilhá-la... Come, come, não faças cerimônia.” E o
ancião dava o exemplo, imolando colherada sobre colherada, com
apetite e requinte, numa encenação tão perfeita, como se
saboreasse uma torta de verdade. E o faminto o imitava com arte,
embora a fome mais do que nunca lhe contraísse o estômago.
“Geleias? Frutas? Tens aqui tâmaras secas, tâmaras em licor,
passas... De que é que mais gostas? Por mim prefiro a fruta seca à
fruta preparada pelo confeiteiro, não se perdeu o sabor nativo. Tens
de provar também esses figos acabados de colher da árvore. Não? E
os pêssegos? Talvez prefiras ameixas... Tens aqui, come, come, Deus
é clemente com os humanos!” O faminto, que à força de mastigar
em falso tinha a boca e a língua e os maxilares cansados, ao passo
que o estômago lhe gritava cada vez mais alto, respondeu à
insistência continuada do ancião: “Estou satisfeito, senhor, não
quero mais nada!”. “É estranho! Pela fome que te trouxe até
aqui, hóspede amigo, admira que te saciasses tão depressa; de
qualquer forma, foi uma honra dividir minha mesa contigo. Mas ainda
não bebemos...” disse o ancião com um leve traço de zomba lhe
percorrendo os lábios, e logo bateu palmas e a esse sinal acorreram
adolescentes de braços graciosos em suas túnicas claras, e
simularam levantar a toalha, pôr outra, e plantar em cima taças e
copos de toda a ordem. E o anfitrião, encenando sempre, encheu as
taças, oferecendo uma ao faminto que a recebeu com vênia amável,
levando-a em seguida aos lábios: “Que vinho sublime!” exclamou
ele fechando de novo os olhos e estalando a língua. E mais vinho foi
derramado nas taças, e outros supostos vinhos foram trazidos, de
muitas espécies e sabores. Um e outro entremeavam a consumação,
entregando-se ao jogo instável dos embriagados, pendulando
lentamente a cabeça e o meio-corpo, além de muitos outros
trejeitos, até que todas as garrafas fossem provadas. E depois de
ter deitado tanto vinho nos copos, o ancião interrompeu subitamente
a falsa bebedeira, e, assumindo sua antiga simplicidade, a fisionomia
de repente austera, falou com sobriedade ao faminto com quem dividira
imaginariamente sua mesa: “Finalmente, à força de procurar muito
pelo mundo todo, acabei por encontrar um homem que tem o espírito
forte, o caráter firme, e que, sobretudo, revelou possuir a maior
das virtudes de que um homem é capaz: a paciência. Por tuas
qualidades raras, passas doravante a morar nesta casa tão grande e
tão despojada de habitantes, e está certo de que alimento não te
há de faltar à mesa”. E naquele mesmo instante trouxeram pão, um
pão robusto e verdadeiro, e o faminto, graças à sua paciência,
nunca mais soube o que era fome.
(Como
podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o
vinho, contar a história de um faminto? como podia o pai, Pedro, ter
omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental?
terminava confusamente o encontro entre o ancião e o faminto, mas
era com essa confusão terapêutica que o pai deveria ter narrado a
história que ele mais contou nos seus sermões; o soberano mais
poderoso do Universo confessava de fato que acabara de encontrar, à
custa de muito procurar, o homem de espírito forte, caráter firme e
que, sobretudo, tinha revelado possuir a virtude mais rara de que um
ser humano é capaz: a paciência; antes porém que esse elogio fosse
proferido, o faminto — com a força surpreendente e descomunal da
sua fome, desfechara um murro violento contra o ancião de barbas
brancas e formosas, explicando-se diante de sua indignação: “Senhor
meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu escravo, o teu
escravo submisso, o homem que recebeste à tua mesa e a quem
banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim
mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o
espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo
que fiz quando ergui a mão contra o meu benfeitor”.)
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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