A
bronzes. O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já vai que o
Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo dele. Digo ao
senhor que aquele povo era jagunços; eu queria bondade neles?
Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui. Entendi o estado de
jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro de primeira viagem. Um dia,
agarraram um homem, que tinha vindo à traição, espreitar a gente
por conta dos bebelos. Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao
vago do ar. O senhor vigie esses! comem o crú de cobras. Carecem. Só
por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Sô
Candelário, que se prezava de bondoso, mandava mesmo em tempo de
paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da
vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos
exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo
envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração
mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que
tinha pena de toda cria de Jesus. ― E Deus, Diadorim? ― uma hora
eu perguntei. Ele me olhou, com silenciozinho todo natural, daí
disse, em resposta! ― Joca Ramiro deu cinco contos de réis para o
padre vigário de Espinosa...
Mas
o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza.
Ele
gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava valentias,
vivia dizendo que não era mau. Mas outra vez, quando um inimigo foi
pego, ele mandou! ― Guardem este. Sei o que foi. Levaram aquele
homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento,
amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava
sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos
dele. Depois dum tempo, ia lá, sozinho, calmoso? Consumia horas,
afiando a faca. Eu ficava vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele
estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo
para comer, ou falar, ou rir, ele deixava a boca prôpria se abrir
alta no meio, qual sem vontade, boca de dôr. Eu não queria olhar
para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o
pé dele ― um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de
remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que
tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para elas,
mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à
gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele homem. Nessa
hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um filho deve de gostar do
pai. As tantas coisas me tonteavam: eu em claro. De repente, eu via
que estava desejando que Zé Bebelo vencesse, porque era ele quem
estava com a razão. Zé Bebelo devia de vir, forte viesse: liquidar
mesmo, a rás, com o inferno da jagunçada! E eu estava ali,
cumprindo meu ajuste, por fora, com todo rigor; mas estava tudo
traindo, traidor, no cabo do meu coração. Alheio, ao que, encostei
minhas costas numa árvore. Aí eu não queria ficar dôido, no nem
mesmo. Puxei conversa com Diadorim. Por que era que Joca Ramiro,
sendo chefe tão subido, de nobres costumes, consentia em ter como
seu alferes um sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal?
Diadorim me escutou depressa, tal duvidou de meu juizo: ― Riobaldo,
onde é que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro,
mas leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne é
com quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens
bem-comportados bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé
Bebelo e aos cachorros do Governo?! A espichado, nesse dia calei.
Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de Diadorim! que eu já
parava fundo no falso, dormia com a traição. Um nublo. Tinha
perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas de tristeza.
Então,
eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom. Aquele povo da
malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber, constante comer.
― Comeu, lobo? E vozear tantas asneiras, mesmo de Diadorim e de mim
já pensavam. Um dia, um disse! ― Eh, esse Reinaldo gosta de ser
bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase morreu também,
dos demorados pesares... Desentendi, mediante meu querer. Mas não me
adiantou. Daí, persistentemente, essa história me remoía, esse
nome de um Leopoldo. Tomava por ofensa a mim, que Diadorim tivesse
tido, mesmo tão antes, um amigo companheiro. Até que, vai, cresci
naquela ideia! que o que estava fazendo falta era uma mulher.
E
eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá,
eles sacolejavam bestidades. ― Saindo por aí, ― dizia um ―
qualquer uma que seja, não me escapole! Ao que contavam casos de
mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas
safadas. ― Mulher é gente tão infeliz... ― me disse Diadorim,
uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando
estavam precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam.
Deus me livrou de endurecer nesses costumes perpétuos. A primeira,
que foi, bonita moça, eu estava com ela somente. Tanto gritava, que
xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça
― fechados os olhos ― não bulia; não fosse o coração dela
rebater no meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar.
Assim tanto, de repente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os
olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres, constituído
milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores! Pudesse,
levava essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da
Serra Nova, foi uma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou
fria estendida, para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eu
nos medonhos fosse ― e, o senhor crê? ― a mocinha me aguentava
era num rezar, tempos além. As almas fugi de lá, larguei com ela o
dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto que nunca mais abusei
de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que
Deus me dê alguma minha recompensa. O que eu queria era ver a
satisfação ― para aquelas, pelo meu ser. Feito com a Rosa uarda,
sempre formosa, a filha de Assis Wababa, sonhos meus, turcamente; e
que a qual, não lhe disse: o pai dela, que era forte negociante, em
todo tempo nanja que não desconfiou. Feito com aquela moça
Nhorinhá, filha de Ana Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve
eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito
devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério
preciso.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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