quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

E eu estava ali, cumprindo meu ajuste


A bronzes. O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já vai que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo dele. Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; eu queria bondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui. Entendi o estado de jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro de primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo à traição, espreitar a gente por conta dos bebelos. Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O senhor vigie esses! comem o crú de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Sô Candelário, que se prezava de bondoso, mandava mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus. ― E Deus, Diadorim? ― uma hora eu perguntei. Ele me olhou, com silenciozinho todo natural, daí disse, em resposta! ― Joca Ramiro deu cinco contos de réis para o padre vigário de Espinosa...
Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza.
Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas outra vez, quando um inimigo foi pego, ele mandou! ― Guardem este. Sei o que foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ia lá, sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou falar, ou rir, ele deixava a boca prôpria se abrir alta no meio, qual sem vontade, boca de dôr. Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele ― um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um filho deve de gostar do pai. As tantas coisas me tonteavam: eu em claro. De repente, eu via que estava desejando que Zé Bebelo vencesse, porque era ele quem estava com a razão. Zé Bebelo devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rás, com o inferno da jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, por fora, com todo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo do meu coração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numa árvore. Aí eu não queria ficar dôido, no nem mesmo. Puxei conversa com Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido, de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me escutou depressa, tal duvidou de meu juizo: ― Riobaldo, onde é que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro, mas leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne é com quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens bem-comportados bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé Bebelo e aos cachorros do Governo?! A espichado, nesse dia calei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de Diadorim! que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição. Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas de tristeza.
Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom. Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber, constante comer. ― Comeu, lobo? E vozear tantas asneiras, mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, um disse! ― Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados pesares... Desentendi, mediante meu querer. Mas não me adiantou. Daí, persistentemente, essa história me remoía, esse nome de um Leopoldo. Tomava por ofensa a mim, que Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo companheiro. Até que, vai, cresci naquela ideia! que o que estava fazendo falta era uma mulher.
E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. ― Saindo por aí, ― dizia um ― qualquer uma que seja, não me escapole! Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. ― Mulher é gente tão infeliz... ― me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando estavam precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam. Deus me livrou de endurecer nesses costumes perpétuos. A primeira, que foi, bonita moça, eu estava com ela somente. Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça ― fechados os olhos ― não bulia; não fosse o coração dela rebater no meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto, de repente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres, constituído milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levava essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova, foi uma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou fria estendida, para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eu nos medonhos fosse ― e, o senhor crê? ― a mocinha me aguentava era num rezar, tempos além. As almas fugi de lá, larguei com ela o dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma minha recompensa. O que eu queria era ver a satisfação ― para aquelas, pelo meu ser. Feito com a Rosa uarda, sempre formosa, a filha de Assis Wababa, sonhos meus, turcamente; e que a qual, não lhe disse: o pai dela, que era forte negociante, em todo tempo nanja que não desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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