segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A trilha da carne


Uma floresta escura de abetos armava sua carranca nos dois lados do canal congelado. Um vento recente despira as árvores de sua cobertura branca de geada, e elas pareciam se inclinar umas para as outras, negras e sinistras, na luz que definhava. Um vasto silêncio reinava sobre a terra. A própria terra era uma desolação, sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que o seu espírito nem era de tristeza. Havia nela uma sugestão de riso, mas de um riso mais terrível que qualquer tristeza – um riso tão sem alegria como o sorriso da Esfinge, um riso frio como a geada, partícipe do caráter lúgubre da infalibilidade. Era a sabedoria dominadora e incomunicável da eternidade rindo da futilidade da vida e dos esforços da vida. Era a Floresta, a selvagem Floresta Boreal de coração gelado.
Mas havia vida, por toda parte e desafiadora. Mais abaixo no canal congelado labutava uma fileira de mastins. Seu pelo eriçado estava coberto de geada. O sopro congelava no ar assim que saía das suas bocas, espirrando em espumas de vapor que se fixavam sobre o pelo de seus corpos e formavam cristais de geada. Havia arreios de couro nos cães, e tirantes de couro os ligavam a um trenó que se arrastava atrás. O trenó não tinha patins. Era feito de uma forte casca de bétula, e toda a sua superfície pousava sobre a neve. A ponta dianteira do trenó era virada para cima, como um pergaminho, a fim de forçar para baixo o torvelinho de neve macia que se lançava como uma onda à sua frente. Sobre o trenó, amarrada com segurança, estava uma longa e estreita caixa oblonga. Havia outras coisas sobre o trenó – cobertores, um machado, uma cafeteira e uma frigideira; mas proeminente, ocupando a maior parte do espaço, estava a longa e estreita caixa oblonga.
À frente dos cachorros, sobre raquetes de neve brancas, labutava um homem. Na retaguarda do trenó, labutava um segundo homem. Sobre o trenó, na caixa, jazia um terceiro homem cuja labuta estava finda – um homem que a Floresta tinha conquistado e abatido até ele nunca mais voltar a se mover ou lutar. Não é da natureza da Floresta gostar de movimento. A vida é uma ofensa para ela, pois a vida é movimento; e a Floresta sempre aspira a destruir o movimento. Congela a água para impedir que corra até o mar; retira a seiva das árvores até elas ficarem congeladas em seu próprio e poderoso âmago; e, o mais feroz e terrível de tudo, a Floresta oprime, esmaga e submete o homem – o homem, que é o ser mais inquieto da vida, sempre em revolta contra a sentença de que todo movimento deve por fim chegar à cessação do movimento.
Mas à frente e na retaguarda, não intimidados e inabaláveis, labutavam os dois homens que ainda não estavam mortos. Seus corpos estavam vestidos compeles e couro macio. Os cílios, as bochechas e os lábios estavam tão cobertos com os cristais de sua respiração congelada que não se podia discernir suas faces. Isso lhes dava a aparência de máscaras fantasmagóricas, agentes funerários num mundo espectral acompanhando o funeral de um fantasma. Mas, embaixo de tudo isso, eram homens penetrando a terra da desolação, zombaria e silêncio, aventureiros insignificantes empenhados numa aventura colossal, lançando-se contra o poder de um mundo tão remoto, alheio e sem vida quanto os abismos do espaço.
Eles viajavam sem falar, poupando a respiração para o trabalho dos corpos. Em todos os lados pairava o silêncio, pressionando-os com uma presença tangível. Isso afetava as suas mentes como as muitas atmosferas das águas profundas afetam o corpo do mergulhador. Esmagava-os com o peso da vastidão infindável e do decreto inalterável. Esmagava-os nos recessos mais remotos de suas mentes, delas extraindo, como sumos da uva, todos os ardores e exaltações falsos, os valores indevidos da alma humana, até eles se perceberem finitos e pequenos, pontos e grãos, movendo-se com fraca astúcia e pouca sabedoria entre a ação e reação dos grandes elementos e forças cegos.
Uma hora se passou, depois uma segunda hora. A luz pálida do curto dia sem sol estava começando a esmorecer, quando um grito fraco e distante subiu no ar parado. Elevou-se com um ímpeto veloz, até alcançar a sua nota mais alta, na qual persistiu, palpitante e tenso, e depois lentamente se extinguiu. Poderia ter sido o lamento de uma alma perdida, se não tivesse se revestido de uma certa ferocidade triste e de uma ansiedade faminta. O homem da frente virou a cabeça, até seus olhos encontrarem os olhos do homem mais atrás. E então, sobre a estreita caixa oblonga, um acenou para o outro.
Um segundo grito elevou-se no ar, furando o silêncio com um som estridente. Os dois homens localizaram o som. Estava na retaguarda, em algum lugar no trecho de neve que tinham acabado de atravessar. Um terceiro grito de resposta elevou-se no ar, também na retaguarda e à esquerda do segundo grito.
Eles estão nos perseguindo, Bill – disse o homem à frente.
A sua voz soou rouca e irreal, e ele tinha falado com visível esforço.
A carne está escassa – respondeu seu camarada. – Não vejo sinal de coelho há dias.
Depois disso não falaram mais, embora seus ouvidos estivessem atentos aos gritos de caçada que continuavam a se elevar atrás deles.
Ao cair da escuridão, viraram os cachorros para um grupo de abetos na beirado canal e fizeram um acampamento. O caixão, ao lado do fogo, servia de assento e mesa. Os mastins, aglomerados no lado mais distante do fogo, rosnavam e brigavam entre si, mas não mostravam nenhuma vontade de se perder na escuridão.
Acho, Henry, que eles estão se mantendo bem perto do acampamento –comentou Bill.
Acocorado sobre o fogo e ajeitando o bule de café com um pedaço de gelo,Henry acenou com a cabeça. E não falou até se sentar sobre o caixão e começara comer.
Eles sabem onde o seu couro está seguro – disse. – Melhor comer a boia do que virar boia. São bem inteligentes, os cachorros.Bill sacudiu a cabeça.
Oh, não sei.
O seu camarada olhou para ele curioso.
É a primeira vez que ouço você falar alguma coisa sobre eles não serem inteligentes.
Henry – disse o outro, mastigando com deliberação os feijões que estava comendo –, você por acaso notou o barulho que esses cachorros fizeram quando eu estava lhes dando comida?
Mais barulhentos do que o normal – reconheceu Henry.
Quantos cachorros temos, Henry?– Seis.
Bem, Henry... – Bill parou por um momento, para que suas palavras pudessem adquirir maior significação. – Como estava dizendo, Henry, temos seis cachorros. Peguei seis peixes do saco. Dei um peixe para cada cachorro e, Henry, ficou faltando um peixe.
Você contou errado.
Temos seis cachorros – o outro reiterou calmamente. – Tirei seis peixes.Uma Orelha ficou sem peixe. Voltei depois ao saco e peguei o seu peixe.
Só temos seis cachorros – disse Henry.
Henry – continuou Bill –, não quero dizer que todos fossem cachorros, mas sete pegaram peixe.
Henry parou de comer para olhar através do fogo e contou os cachorros.
Agora são apenas seis – disse.– Vi o outro sair correndo pela neve – anunciou Bill com uma certeza calma.– Vi sete.
O seu camarada olhou para ele com pena e disse:
Vou ficar muito contente, quando essa viagem chegar ao fim.
O que você quer dizer com isso? – perguntou Bill.
Quero dizer que essa nossa carga está atacando os seus nervos, e você está começando a ver coisas.
Foi o que também pensei – respondeu Bill sério. – E por isso, quando o vi correndo pela neve, procurei no chão e descobri o rasto. Depois contei os cachorros e ainda havia seis. O rasto ainda está ali, sobre a neve. Quer vê-lo? Vou lhe mostrar.
Henry não respondeu, mas continuou a mastigar em silêncio, até que,terminada a refeição, completou-a com uma última xícara de café. Limpou a boca com as costas da mão e disse:
Então você acha que era…
Um longo grito de lamento, ferozmente triste, vindo de algum lugar na escuridão, o interrompera. Ele parou para escutá-lo, depois terminou a frase comum aceno na direção do som:
...um deles?
Bill fez que sim com a cabeça.– Mil vezes pensar isso que qualquer outra coisa. Você mesmo notou o barulho que os cachorros fizeram.
Grito após grito, e mais gritos em resposta, estavam transformando o silêncio num tumulto. De todo lado elevavam-se gritos, e os cachorros traíam o seu medo aconchegando-se uns aos outros e aproximando-se tanto do fogo que o calor chamuscava seu pelo. Bill jogou mais lenha no fogo, antes de acender o cachimbo.
Acho que você está um pouco desanimado – disse Henry.
Henry... – Ele chupou meditativo o cachimbo por algum tempo antes de continuar. – Henry, estava pensando como ele tem mil vezes mais sorte que você e eu.
Indicou a terceira pessoa com um golpe do polegar virado para baixo sobre a caixa em que estavam sentados.
Você e eu, Henry, quando a gente morrer, vamos ter sorte se conseguirmos algumas pedras sobre nossas carcaças para manter os cães longe de nós.
Mas não temos criados, dinheiro e todo o resto como ele – respondeu Henry. – Funerais a longa distância é algo que você e eu não podemos pagar.
O que me intriga, Henry, é o que um camarada como ele, que é um senhor ou alguma coisa no seu país, que nunca teve de se preocupar com boia ou cobertores, por que ele vem se meter nesses confins da terra renegados porDeus... isso é que não consigo realmente compreender.
Ele poderia ter vivido até ficar bem velho, se tivesse ficado em casa –concordou Henry.
Bill abriu a boca para falar, mas mudou de ideia. Em vez disso, apontou para o muro de escuridão que os pressionava de todos os lados. Não havia sugestão deforma no breu absoluto, apenas se podia ver um par de olhos brilhando como brasas. Henry indicou com a cabeça um segundo par, e um terceiro. Um círculo de olhos brilhantes se formara ao redor do acampamento. De vez em quando um par de olhos se movia ou desaparecia, para aparecer de novo um momento mais tarde.
A inquietação dos cachorros aumentara, e eles debandaram, num surto repentino de medo, para perto do fogo, encolhendo-se e rastejando ao redor das pernas dos homens. No movimento desordenado, um dos cachorros foi derrubado na beira do fogo e ganiu de dor e susto, quando o cheiro de seu pelo chamuscado impregnou o ar. A comoção fez com que o círculo de olhos se movesse inquieto por um momento e até recuasse um pouco, mas depois voltou a se acomodar quando os cachorros se aquietaram.
Henry, é uma desgraça não ter munição.
Bill acabara de fumar o seu cachimbo e estava ajudando o companheiro a estender a cama de pele e cobertor sobre os ramos de abeto que tinha disposto sobre a neve antes da ceia. Henry resmungou e começou a desamarrar os mocassins.
Quantos cartuchos você disse que ainda restam? – perguntou.
Três – foi a resposta. – Antes fossem trezentos. Então eu mostraria o que é bom a esses patifes!
Sacudiu o punho com raiva para os olhos brilhantes e começou a escorar com segurança os seus mocassins diante do fogo.
E gostaria que esse frio se interrompesse de repente – continuou. – Está cinquenta abaixo de zero há duas semanas. E gostaria que essa viagem nunca tivesse começado, Henry. Não estou gostando do que vejo. De certo modo, não me sinto bem. E, já que estou fazendo desejos, gostaria que a viagem estivesse terminada e acabada, e que você e eu estivéssemos agora sentados perto do fogo no Forte McGurry, jogando cartas... disso é que gostaria.
Henry resmungou e arrastou-se para a cama. Quando já estava cochilando,foi despertado pela voz do companheiro.
Me diga uma coisa, Henry, aquele outro que veio buscar o peixe... por que os cachorros não o atacaram? Isso é que está me incomodando.
Você está se incomodando demais, Bill – foi a resposta sonolenta. – Você nunca foi assim. Agora trate de calar a boca e durma, e vai acordar todo alegre de manhã. Acidez no estômago, isso é que está incomodando você.
Os homens dormiram, respirando pesadamente, lado a lado, embaixo da única coberta. O fogo morreu, e os olhos brilhantes apertaram o círculo que tinham armado em torno do acampamento. Os cachorros se aglomeravam de medo, rosnando de vez em quando ameaçadoramente, quando um par de olhos chegava mais perto. Certo momento, o tumulto foi tão grande que Bill acordou. Saiu da cama com cuidado, para não perturbar o sono do companheiro, e jogou mais lenha no fogo. Quando as flamas começaram a se elevar, o círculo de olhos recuou bem para trás. Ele deu uma olhada casual nos cachorros amontoados. Esfregou os olhos e enxergou com mais nitidez. Depois voltou para baixo do cobertor.
Henry – disse. – Oh, Henry.
Henry gemeu enquanto passava do sono para o estado de vigília, e perguntou:
Qual é o problema agora?
Nada – foi a resposta. – Só que há sete cachorros agora. Acabei de contar.
Henry acusou ter recebido a informação com um resmungo e resvalou para um ronco, voltando a dormir.
Pela manhã foi Henry quem despertou primeiro e arrancou o companheiro da cama. Ainda faltavam três horas para a luz do dia, embora já fossem seis horas. E na escuridão Henry começou a preparar o café da manhã, enquanto Bill enrolava os cobertores e preparava o trenó para as amarras.
Me diga, Henry – perguntou de repente –, quantos cachorros você disse que nós tínhamos?
Seis.
Errado – proclamou Bill triunfantemente.
Sete de novo? – quis saber Henry.
Não, cinco. Um se foi.
Raios! – Henry gritou de raiva, deixando o que estava cozinhando para ir contar os cachorros.
Você tem razão, Bill – concluiu. – Gordo se foi.
E desapareceu como um raio, depois que começou a correr. Não pude vê-lo por causa da fumaça.
Sem chance alguma – concluiu Henry. – Eles o engoliram vivo. Aposto que gania ao descer pelas goelas desses patifes!
Ele sempre foi um cachorro bobo – disse Bill.
Mas nenhum cachorro bobo devia ser tão bobo a ponto de sair correndo e se suicidar dessa maneira. – Ele olhou para o resto do bando com um olhar especulativo que resumia instantaneamente os traços salientes de cada animal. –Aposto que nenhum dos outros faria uma coisa dessas.
Não consegui afastá-los do fogo com um pedaço de pau – concordou Bill. – Sempre achei que havia algo de errado com Gordo, de qualquer maneira.
E esse foi o epitáfio de um cachorro morto na trilha das terras do norte –menos escasso do que o epitáfio de muitos outros cachorros, de muitos homens.
Jack London, in Caninos Brancos

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