sábado, 1 de fevereiro de 2020

A Chegada – Minas Gerais, 1873 (excerto)



Alberto Santos-Dumont nasceu durante o reinado de D. Pedro II, em 20 de julho de 1873, em um local remoto de Minas Gerais. Os pais de Alberto, Henrique Dumont e Francisca de Paula Santos, foram a primeira geração de brasileiros a viver no distrito de João Aires, na minúscula cidade de Cabangu. No início, Cabangu consistia em apenas sua casa. Henrique era engenheiro e fora contratado para construir uma extensão da estrada de ferro D. Pedro II até essa longínqua região de Minas Gerais. A estrada de ferro fazia parte de um vasto projeto de obras públicas do imperador, e foi uma honra para Henrique receber essa incumbência. A desvantagem era a vida tão isolada.
Quando Alberto tinha 6 anos, o trabalho de construção da ferrovia terminou, e seu pai, com a herança da esposa, mudou-se com a família para as terras férteis do estado de São Paulo e comprou uma fazenda de café. A mudança foi difícil; foi preciso arar o terreno, plantar 500 mil pés de café, construir paióis para estocar, secar e beneficiar os grãos, e moradias para os trabalhadores e feitores. A propriedade era tão extensa que Henrique construiu uma estrada de ferro com 96 quilômetros de comprimento para percorrê-la e comprou sete locomotivas. O trabalho foi recompensador. Henrique, apelidado de “rei do café” pela imprensa, logo possuía uma das maiores fazendas do país. Essa fortuna recém-adquirida permitiu-lhe importar professores europeus para os filhos e enviar Alberto, quando mais velho, para colégios particulares em São Paulo e Ouro Preto.
Os europeus imaginam as plantações brasileiras como pitorescas colônias primitivas, perdidas na imensidade do sertão, não conhecendo melhor a carreta nem o carrinho de mão que a luz elétrica ou o telefone. Em verdade, há, em certas regiões recuadas do interior, colônias desta espécie... Atravessei algumas delas... mas não eram fazendas de café de São Paulo. Dificilmente se conceberia meio mais sugestivo para a imaginação de uma criança que sonha com invenções mecânicas”, escreveu mais tarde Santos-Dumont.
Aos 7 anos, ele dirigia as “locomóveis”, máquinas a vapor sobre rodas utilizadas para carregar os frutos vermelhos de café dos campos para a estrada de ferro. Cinco anos depois, persuadiu um maquinista a deixá-lo guiar uma enorme locomotiva Baldwin e transportar um vagão cheio de grãos para a usina de beneficiamento.
Dos oito filhos de Henrique, Alberto era o sexto filho e o mais novo dos três meninos, e o que mais se interessava pela mecânica de produção do café. Ele conhecia cada etapa do longo processo. “Acho que se desconhece, em geral, como é especializado o funcionamento de uma fazenda de café no Brasil”, ele recorda, desde o momento em que os frutos são colhidos e entram nos vagões, até quando o subproduto é embarcado nos navios transatlânticos. Em Meus balões, sua autobiografia escrita em 1904, Santos-Dumont descreve com minúcias o processo de produção de café na fazenda da família.

Os grãos vão primeiramente a grandes tanques cheios d’água continuamente agitada e renovada. A terra aderente deposita-se no fundo e os grãos flutuam, conjuntamente com os detritos vegetais, e são carregados ao longo de uma calha inclinada, cujo fundo é crivado de pequenos orifícios. Através desta passa o café com um pouco d’água, ao passo que os pedaços de madeira e folhas continuam flutuando.
Eis assim os grãos limpos. Guardam sempre a cor vermelha e o aspecto e tamanho das cerejas.
Cada fruto contém duas sementes, cada uma das quais está envolvida por uma película.
Na sua passagem a água arrasta os grãos ao despolpador, que, esmagando a polpa externa, produz o isolamento das sementes.
Longos tubos, ditos secadores, recebem estas ainda molhadas e revestidas da película e as agitam sem cessar, ao mesmo tempo que as submetem à ação do ar quente.
Uma vez secas, são as sementes apanhadas pelos alcatruzes de uma elevadora sem fim, que as conduzem até um outro edifício, onde ficavam as demais máquinas.
A primeira destas é um ventilador munido de peneiras de vai e vem, que algumas deixam passar entre suas malhas os grãos. Nenhum destes se perde aí; nenhuma impureza fica. O mais insignificante fragmento de madeira que parasse seria, aliás, bastante para avariar a máquina seguinte, o descascador, que é um conjunto de peças de extrema finura.
Apanhadas por um outro elevador, de cadeia sem fim, as sementes, agora descascadas, mas sempre misturadas com as cascas, são levadas a um novo ventilador, onde as últimas, pela sua leveza, são arrastadas pelo vento.
A operação seguinte tem lugar no separador, que é um grande tubo de cobre, de 7 metros de comprimento por 2 de diâmetro, em posição ligeiramente inclinada. Este tubo, no seu primeiro percurso, tem uns pequeninos crivos pelos quais passam os grãos menores; depois orifícios maiores, que dão passagem aos de tamanho médio; e mais adiante, orifícios ainda mais largos, para a saída dos grãos volumosos que constituem o moka.
A função do separador consiste, portanto, em reparar o café sobre uma tremonha particular. Embaixo estão as balanças e os homens com os sacos. À medida que cada saco recebe o seu peso normal de café, é substituído por outro, vazio. Assim se formam repetidamente lotes enormes, que, depois de costurados e marcados, são expedidos para a Europa.

Quando menino, Santos-Dumont passava dias inteiros observando as máquinas e aprendendo a consertá-las. Elas quebravam com muita frequência.

As peneiras móveis, com especialidade, arriscam-se a se avariar a cada momento. Sua velocidade bastante grande, seu balanço horizontal muito rápido consumiam uma quantidade enorme de energia motriz. Constantemente fazia-se necessário reparar as polias. E bem me recordo dos vãos esforços que empregávamos para remediar os defeitos mecânicos do sistema.
Causava-me espécie que, entre todas as máquinas da usina, só essas desastradas peneiras móveis não fossem rotativas. Não eram rotativas e eram defeituosas! Creio que foi este pequeno fato que, desde cedo, me pôs de prevenção contra todos os processos mecânicos de agitação, e me predispôs a favor do movimento rotatório, de mais fácil governo e mais prático.

Essa preferência pelos motores rotativos o ajudou muito na construção das máquinas voadoras quando adulto.
Alberto também era o faz-tudo da casa. A máquina de costura da mãe travava constantemente, e ele parava qualquer coisa que estivesse fazendo para consertá-la. Quando as pernas ou os braços das bonecas de suas irmãs caíam, ele os colocava de novo no lugar. Quando as rodas das bicicletas dos irmãos entortavam, era ele quem as alinhava.
Alberto era um menino solitário e sonhador, e preferia mais a companhia das máquinas da usina que as refeições com a família. O ambiente em casa era quase sempre tenso. O pai, um homem racional e de espírito científico, zombava abertamente da profunda religiosidade e das superstições da mãe nos jantares com a família. Embora Henrique apreciasse a fascinação do filho mais novo pela tecnologia, ele não compreendia por que Alberto não se interessava em caçar, brigar e outras atividades masculinas como os irmãos. Alberto nunca se juntava aos homens nos passeios a cavalo e nos piqueniques em locais distantes da fazenda.
À noite, lia até bem tarde. O pai, que estudara engenharia em Paris na École Centrale des Arts et Métiers, tinha espalhadas pela casa pilhas de livros em francês, inglês e português. Alberto leu a maioria deles, até mesmo os manuais técnicos. Os livros favoritos eram de ficção científica. Ele gostava da imagem de Júlio Verne de um céu povoado de máquinas voadoras e, aos 10 anos, já tinha lido todos os seus romances. Aprendeu nos livros de engenharia do pai que o balão de ar quente fora inventado em 1783, por Joseph e Etienne Montgolfier, fabricantes de papel em Annonay, na França, uma cidade no vale do Ródano, a 64 quilômetros de Lyon. Os irmãos Montgolfier construíram um grande invólucro em forma de pera, de papel e seda, com uma abertura na base para ser inflado com a fumaça de palha queimada. Um relato dizia que a inspiração viera quando Joseph jogou despropositadamente uma embalagem cônica de papel de pão doce na lareira e surpreso a viu subir na chaminé sem queimar. Outra história a atribuía ao ver a camisola de sua mulher levitar depois que ela a colocara diante do forno para secar.
O fato de que “milhões de pessoas” ao longo da história viram o mesmo fenômeno, observou um comentarista, “e que não tenham tirado proveito prático dessa experiência, só engrandece aqueles que a partir de indícios tão banais fizeram a descoberta”. O projeto mais antigo de aerostação, como o balonismo era chamado, precedeu os Montgolfier em dois mil anos, mas provavelmente não é autêntico. Em Noctes Atticae, o escritor romano Aulus Gellius descreveu uma pomba voadora construída por Arquitas de Tarento, um matemático pitagórico que viveu no século IV a.C. Era um “modelo com a forma de uma pomba ou de um pombo esculpido em madeira dotado de um mecanismo engenhoso que lhe permitia voar: equilibrava-se muito bem e movia-se impulsionado por um fluxo de ar oculto e direcionado”. Embora o “ar oculto e direcionado” sugira uma antecipação do balão de ar quente, é duvidoso que um pássaro de madeira oco fosse suficientemente leve para ascender. É mais provável que o voo aparente da pomba fosse produzido por um engenho mecânico acionado por fios invisíveis.
O princípio físico da aerostação era tão simples como a solução dos Montgolfiers de encerrar ar quente num saco: o balão flutuava porque pesava menos que o volume equivalente de ar, assim como um navio flutua porque pesa menos que o volume equivalente de água. Mas a analogia entre um navio e um balão só funciona se aceitarmos o pressuposto da pressão atmosférica, fato desconhecido antes da época de Galileu, quando Evangelista Torricelli, o inventor do barômetro, demonstrou que a pressão atmosférica diminuía com a altitude. Outro pesquisador do século XVII, Otto von Guericke, de Magdeburgo, Alemanha, inventou uma bomba a vácuo para criar um “ar rarefeito” encontrado em altitudes muito elevadas. Em 1670, Francesco de Lana-Terzi, um padre jesuíta italiano, concebeu uma nave tripulada, sustentada por quatro enormes esferas ocas de cobre desprovidas de ar. Como essas esferas seriam mais leves que o ar que deslocavam, ele esperava que a nave ascendesse como uma bolha de ar sobe através da água. Com conhecimentos matemáticos sofisticados, o padre calculou que as esferas teriam 7,5 metros de diâmetro e poucos milímetros de espessura. Quando seus colegas físicos o advertiram que esferas tão finas se romperiam quando o ar fosse retirado delas, ele respondeu — segundo o historiador e engenheiro L. T. C. Rolt — “que isso era só um exercício teórico, argumentando que como Deus não agraciou os homens com o dom de voar, qualquer tentativa séria e prática de escarnecer de Seu desígnio seria uma atitude ímpia e repleta de perigo para a raça humana. Suspeita-se que os jesuítas possam ter tido uma conversa séria com esse padre cientista, e que ele ocultara suas verdadeiras intenções porque sentira o cheiro de madeira queimando na fogueira”.
Mas outros clérigos prosseguiram com os exercícios teóricos. Em 1755, Joseph Galien, um frei dominicano e teólogo da universidade papal de Avignon, propôs recolher o ar rarefeito das camadas superiores da atmosfera e encerrá-lo num navio com 1,6 quilômetro de comprimento, capaz de levantar 54 vezes o peso carregado pela arca de Noé. Em primeiro lugar, Galien nunca explicou como planejava alcançar as altas camadas atmosféricas, e seu supervisor na universidade implorou-lhe que tirasse um longo descanso de suas obrigações eclesiásticas e, na volta, restringisse suas especulações à teologia e não à tecnologia.
Esses projetos quiméricos para o balonismo foram abandonados quando os Montgolfiers demonstraram quão distantes estavam da realidade. Em 5 de junho de 1783, os dois irmãos fizeram uma demonstração com um balão não tripulado de 9 metros de diâmetro na praça pública de Annonay. Oito homens seguraram o balão com 6.000 metros cúbicos, cujo invólucro consistia em pedaços de seda e papel presos por botões e botoeiras. Quando os Montgolfiers deram o sinal, os homens soltaram o enorme envelope de gás e ele ascendeu cerca de 2.000 metros. Após dez minutos, caiu num campo a uns 2 quilômetros de distância.
As notícias sobre o experimento chegaram à Academia de Ciências de Paris, cujos membros trabalhavam na construção de um balão mais leve que o ar, mas não haviam obtido até então nenhum resultado prático. Os cientistas parisienses, não querendo ser suplantados por fabricantes de papéis incultos, aceleraram seus esforços. O engenheiro-físico Jacques Alexandre César Charles, ajudado por dois artesãos, os irmãos Ainé e Cadet Robert, substituíram a fumaça de palha queimada por hidrogênio e, em 23 de agosto de 1783, começaram a inflar um balão de seda de 4 metros de diâmetro na praça des Victoires. O hidrogênio era obtido derramando 226 quilos de ácido sulfúrico sobre 453 quilos de limalhas de ferro. Charles não previu que a reação química produzisse tanto calor, e o tecido do balão precisou ser aspergido repetidamente com água fria para não queimar. O vapor acumulado pelo balão condensou-se e o invólucro vergou-se com o peso.
O balão levou três dias para encher e, quando a notícia desse evento se espalhou, uma multidão aglomerou-se na praça impedindo a livre circulação nas ruas vizinhas. Para diminuir o congestionamento, Charles mandou que levassem o balão à noite, escoltado por guardas armados, para o Campo de Marte, uma área maior, próximo ao local onde se encontra hoje a torre Eiffel. Barthélemy Faujas de Saint-Fond presenciou a cena:

Não poderia haver espetáculo mais magnífico que ver o Balão ser assim transportado, precedido por tochas iluminadas, cercado por um “cortejo” e escoltado por um destacamento de guardas a pé e a cavalo; a caminhada noturna, a forma e o tamanho do balão carregado com tanta precaução; o silêncio que reinava, a hora pouco usual, tudo dava uma impressão singular e misteriosa àqueles que conheciam o motivo. Os cocheiros dos fiacres ficaram tão atônitos que pararam as carruagens e se ajoelharam humildemente, com o chapéu na mão, enquanto a procissão passava.
Paul Hoffman, in Asas da loucura

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