Alberto
Santos-Dumont nasceu durante o reinado de D. Pedro II, em 20 de julho
de 1873, em um local remoto de Minas Gerais. Os pais de Alberto,
Henrique Dumont e Francisca de Paula Santos, foram a primeira geração
de brasileiros a viver no distrito de João Aires, na minúscula
cidade de Cabangu. No início, Cabangu consistia em apenas sua casa.
Henrique era engenheiro e fora contratado para construir uma extensão
da estrada de ferro D. Pedro II até essa longínqua região de Minas
Gerais. A estrada de ferro fazia parte de um vasto projeto de obras
públicas do imperador, e foi uma honra para Henrique receber essa
incumbência. A desvantagem era a vida tão isolada.
Quando
Alberto tinha 6 anos, o trabalho de construção da ferrovia
terminou, e seu pai, com a herança da esposa, mudou-se com a família
para as terras férteis do estado de São Paulo e comprou uma fazenda
de café. A mudança foi difícil; foi preciso arar o terreno,
plantar 500 mil pés de café, construir paióis para estocar, secar
e beneficiar os grãos, e moradias para os trabalhadores e feitores.
A propriedade era tão extensa que Henrique construiu uma estrada de
ferro com 96 quilômetros de comprimento para percorrê-la e comprou
sete locomotivas. O trabalho foi recompensador. Henrique, apelidado
de “rei do café” pela imprensa, logo possuía uma das maiores
fazendas do país. Essa fortuna recém-adquirida permitiu-lhe
importar professores europeus para os filhos e enviar Alberto, quando
mais velho, para colégios particulares em São Paulo e Ouro Preto.
“Os
europeus imaginam as plantações brasileiras como pitorescas
colônias primitivas, perdidas na imensidade do sertão, não
conhecendo melhor a carreta nem o carrinho de mão que a luz elétrica
ou o telefone. Em verdade, há, em certas regiões recuadas do
interior, colônias desta espécie... Atravessei algumas delas... mas
não eram fazendas de café de São Paulo. Dificilmente se conceberia
meio mais sugestivo para a imaginação de uma criança que sonha com
invenções mecânicas”, escreveu mais tarde Santos-Dumont.
Aos
7 anos, ele dirigia as “locomóveis”, máquinas a vapor sobre
rodas utilizadas para carregar os frutos vermelhos de café dos
campos para a estrada de ferro. Cinco anos depois, persuadiu um
maquinista a deixá-lo guiar uma enorme locomotiva Baldwin e
transportar um vagão cheio de grãos para a usina de beneficiamento.
Dos
oito filhos de Henrique, Alberto era o sexto filho e o mais novo dos
três meninos, e o que mais se interessava pela mecânica de produção
do café. Ele conhecia cada etapa do longo processo. “Acho que se
desconhece, em geral, como é especializado o funcionamento de uma
fazenda de café no Brasil”, ele recorda, desde o momento em que os
frutos são colhidos e entram nos vagões, até quando o subproduto é
embarcado nos navios transatlânticos. Em Meus balões, sua
autobiografia escrita em 1904, Santos-Dumont descreve com minúcias o
processo de produção de café na fazenda da família.
Os
grãos vão primeiramente a grandes tanques cheios d’água
continuamente agitada e renovada. A terra aderente deposita-se no
fundo e os grãos flutuam, conjuntamente com os detritos vegetais, e
são carregados ao longo de uma calha inclinada, cujo fundo é
crivado de pequenos orifícios. Através desta passa o café com um
pouco d’água, ao passo que os pedaços de madeira e folhas
continuam flutuando.
Eis
assim os grãos limpos. Guardam sempre a cor vermelha e o aspecto e
tamanho das cerejas.
Cada
fruto contém duas sementes, cada uma das quais está envolvida por
uma película.
Na
sua passagem a água arrasta os grãos ao despolpador, que, esmagando
a polpa externa, produz o isolamento das sementes.
Longos
tubos, ditos secadores, recebem estas ainda molhadas e revestidas da
película e as agitam sem cessar, ao mesmo tempo que as submetem à
ação do ar quente.
Uma
vez secas, são as sementes apanhadas pelos alcatruzes de uma
elevadora sem fim, que as conduzem até um outro edifício, onde
ficavam as demais máquinas.
A
primeira destas é um ventilador munido de peneiras de vai e vem, que
algumas deixam passar entre suas malhas os grãos. Nenhum destes se
perde aí; nenhuma impureza fica. O mais insignificante fragmento de
madeira que parasse seria, aliás, bastante para avariar a máquina
seguinte, o descascador, que é um conjunto de peças de extrema
finura.
Apanhadas
por um outro elevador, de cadeia sem fim, as sementes, agora
descascadas, mas sempre misturadas com as cascas, são levadas a um
novo ventilador, onde as últimas, pela sua leveza, são arrastadas
pelo vento.
A
operação seguinte tem lugar no separador, que é um grande tubo de
cobre, de 7 metros de comprimento por 2 de diâmetro, em posição
ligeiramente inclinada. Este tubo, no seu primeiro percurso, tem uns
pequeninos crivos pelos quais passam os grãos menores; depois
orifícios maiores, que dão passagem aos de tamanho médio; e mais
adiante, orifícios ainda mais largos, para a saída dos grãos
volumosos que constituem o moka.
A
função do separador consiste, portanto, em reparar o café sobre
uma tremonha particular. Embaixo estão as balanças e os homens com
os sacos. À medida que cada saco recebe o seu peso normal de café,
é substituído por outro, vazio. Assim se formam repetidamente lotes
enormes, que, depois de costurados e marcados, são expedidos para a
Europa.
Quando
menino, Santos-Dumont passava dias inteiros observando as máquinas e
aprendendo a consertá-las. Elas quebravam com muita frequência.
As
peneiras móveis, com especialidade, arriscam-se a se avariar a cada
momento. Sua velocidade bastante grande, seu balanço horizontal
muito rápido consumiam uma quantidade enorme de energia motriz.
Constantemente fazia-se necessário reparar as polias. E bem me
recordo dos vãos esforços que empregávamos para remediar os
defeitos mecânicos do sistema.
Causava-me
espécie que, entre todas as máquinas da usina, só essas
desastradas peneiras móveis não fossem rotativas. Não eram
rotativas e eram defeituosas! Creio que foi este pequeno fato que,
desde cedo, me pôs de prevenção contra todos os processos
mecânicos de agitação, e me predispôs a favor do movimento
rotatório, de mais fácil governo e mais prático.
Essa
preferência pelos motores rotativos o ajudou muito na construção
das máquinas voadoras quando adulto.
Alberto
também era o faz-tudo da casa. A máquina de costura da mãe travava
constantemente, e ele parava qualquer coisa que estivesse fazendo
para consertá-la. Quando as pernas ou os braços das bonecas de suas
irmãs caíam, ele os colocava de novo no lugar. Quando as rodas das
bicicletas dos irmãos entortavam, era ele quem as alinhava.
Alberto
era um menino solitário e sonhador, e preferia mais a companhia das
máquinas da usina que as refeições com a família. O ambiente em
casa era quase sempre tenso. O pai, um homem racional e de espírito
científico, zombava abertamente da profunda religiosidade e das
superstições da mãe nos jantares com a família. Embora Henrique
apreciasse a fascinação do filho mais novo pela tecnologia, ele não
compreendia por que Alberto não se interessava em caçar, brigar e
outras atividades masculinas como os irmãos. Alberto nunca se
juntava aos homens nos passeios a cavalo e nos piqueniques em locais
distantes da fazenda.
À
noite, lia até bem tarde. O pai, que estudara engenharia em Paris na
École Centrale des Arts et Métiers, tinha espalhadas pela casa
pilhas de livros em francês, inglês e português. Alberto leu a
maioria deles, até mesmo os manuais técnicos. Os livros favoritos
eram de ficção científica. Ele gostava da imagem de Júlio Verne
de um céu povoado de máquinas voadoras e, aos 10 anos, já tinha
lido todos os seus romances. Aprendeu nos livros de engenharia do pai
que o balão de ar quente fora inventado em 1783, por Joseph e
Etienne Montgolfier, fabricantes de papel em Annonay, na França, uma
cidade no vale do Ródano, a 64 quilômetros de Lyon. Os irmãos
Montgolfier construíram um grande invólucro em forma de pera, de
papel e seda, com uma abertura na base para ser inflado com a fumaça
de palha queimada. Um relato dizia que a inspiração viera quando
Joseph jogou despropositadamente uma embalagem cônica de papel de
pão doce na lareira e surpreso a viu subir na chaminé sem queimar.
Outra história a atribuía ao ver a camisola de sua mulher levitar
depois que ela a colocara diante do forno para secar.
O
fato de que “milhões de pessoas” ao longo da história viram o
mesmo fenômeno, observou um comentarista, “e que não
tenham tirado proveito prático dessa experiência, só engrandece
aqueles que a partir de indícios tão banais fizeram a descoberta”.
O projeto mais antigo de aerostação, como o balonismo era chamado,
precedeu os Montgolfier em dois mil anos, mas provavelmente não é
autêntico. Em Noctes Atticae, o escritor romano Aulus Gellius
descreveu uma pomba voadora construída por Arquitas de Tarento, um
matemático pitagórico que viveu no século IV a.C. Era um “modelo
com a forma de uma pomba ou de um pombo esculpido em madeira dotado
de um mecanismo engenhoso que lhe permitia voar: equilibrava-se muito
bem e movia-se impulsionado por um fluxo de ar oculto e direcionado”.
Embora o “ar oculto e direcionado” sugira uma antecipação do
balão de ar quente, é duvidoso que um pássaro de madeira oco fosse
suficientemente leve para ascender. É mais provável que o voo
aparente da pomba fosse produzido por um engenho mecânico acionado
por fios invisíveis.
O
princípio físico da aerostação era tão simples como a solução
dos Montgolfiers de encerrar ar quente num saco: o balão flutuava
porque pesava menos que o volume equivalente de ar, assim como um
navio flutua porque pesa menos que o volume equivalente de água. Mas
a analogia entre um navio e um balão só funciona se aceitarmos o
pressuposto da pressão atmosférica, fato desconhecido antes da
época de Galileu, quando Evangelista Torricelli, o inventor do
barômetro, demonstrou que a pressão atmosférica diminuía com a
altitude. Outro pesquisador do século XVII, Otto von Guericke, de
Magdeburgo, Alemanha, inventou uma bomba a vácuo para criar um “ar
rarefeito” encontrado em altitudes muito elevadas. Em 1670,
Francesco de Lana-Terzi, um padre jesuíta italiano, concebeu uma
nave tripulada, sustentada por quatro enormes esferas ocas de cobre
desprovidas de ar. Como essas esferas seriam mais leves que o ar que
deslocavam, ele esperava que a nave ascendesse como uma bolha de ar
sobe através da água. Com conhecimentos matemáticos sofisticados,
o padre calculou que as esferas teriam 7,5 metros de diâmetro e
poucos milímetros de espessura. Quando seus colegas físicos o
advertiram que esferas tão finas se romperiam quando o ar fosse
retirado delas, ele respondeu — segundo o historiador e engenheiro
L. T. C. Rolt — “que isso era só um exercício teórico,
argumentando que como Deus não agraciou os homens com o dom de voar,
qualquer tentativa séria e prática de escarnecer de Seu desígnio
seria uma atitude ímpia e repleta de perigo para a raça humana.
Suspeita-se que os jesuítas possam ter tido uma conversa séria com
esse padre cientista, e que ele ocultara suas verdadeiras intenções
porque sentira o cheiro de madeira queimando na fogueira”.
Mas
outros clérigos prosseguiram com os exercícios teóricos. Em 1755,
Joseph Galien, um frei dominicano e teólogo da universidade papal de
Avignon, propôs recolher o ar rarefeito das camadas superiores da
atmosfera e encerrá-lo num navio com 1,6 quilômetro de comprimento,
capaz de levantar 54 vezes o peso carregado pela arca de Noé. Em
primeiro lugar, Galien nunca explicou como planejava alcançar as
altas camadas atmosféricas, e seu supervisor na universidade
implorou-lhe que tirasse um longo descanso de suas obrigações
eclesiásticas e, na volta, restringisse suas especulações à
teologia e não à tecnologia.
Esses
projetos quiméricos para o balonismo foram abandonados quando os
Montgolfiers demonstraram quão distantes estavam da realidade. Em 5
de junho de 1783, os dois irmãos fizeram uma demonstração com um
balão não tripulado de 9 metros de diâmetro na praça pública de
Annonay. Oito homens seguraram o balão com 6.000 metros cúbicos,
cujo invólucro consistia em pedaços de seda e papel presos por
botões e botoeiras. Quando os Montgolfiers deram o sinal, os homens
soltaram o enorme envelope de gás e ele ascendeu cerca de 2.000
metros. Após dez minutos, caiu num campo a uns 2 quilômetros de
distância.
As
notícias sobre o experimento chegaram à Academia de Ciências de
Paris, cujos membros trabalhavam na construção de um balão mais
leve que o ar, mas não haviam obtido até então nenhum resultado
prático. Os cientistas parisienses, não querendo ser suplantados
por fabricantes de papéis incultos, aceleraram seus esforços. O
engenheiro-físico Jacques Alexandre César Charles, ajudado por dois
artesãos, os irmãos Ainé e Cadet Robert, substituíram a fumaça
de palha queimada por hidrogênio e, em 23 de agosto de 1783,
começaram a inflar um balão de seda de 4 metros de diâmetro na
praça des Victoires. O hidrogênio era obtido derramando 226 quilos
de ácido sulfúrico sobre 453 quilos de limalhas de ferro. Charles
não previu que a reação química produzisse tanto calor, e o
tecido do balão precisou ser aspergido repetidamente com água fria
para não queimar. O vapor acumulado pelo balão condensou-se e o
invólucro vergou-se com o peso.
O
balão levou três dias para encher e, quando a notícia desse evento
se espalhou, uma multidão aglomerou-se na praça impedindo a livre
circulação nas ruas vizinhas. Para diminuir o congestionamento,
Charles mandou que levassem o balão à noite, escoltado por guardas
armados, para o Campo de Marte, uma área maior, próximo ao local
onde se encontra hoje a torre Eiffel. Barthélemy Faujas de
Saint-Fond presenciou a cena:
Não
poderia haver espetáculo mais magnífico que ver o Balão ser assim
transportado, precedido por tochas iluminadas, cercado por um
“cortejo” e escoltado por um destacamento de guardas a pé e a
cavalo; a caminhada noturna, a forma e o tamanho do balão carregado
com tanta precaução; o silêncio que reinava, a hora pouco usual,
tudo dava uma impressão singular e misteriosa àqueles que conheciam
o motivo. Os cocheiros dos fiacres ficaram tão atônitos que pararam
as carruagens e se ajoelharam humildemente, com o chapéu na mão,
enquanto a procissão passava.
Paul
Hoffman, in Asas da loucura
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