Mas
o pai dessa mulher era um homem finório de esperto, com o jeito de
tirar da gente a conversa que ele constituía. A casa dele ―
espaçosa, casa-de-telha e caiada ― era na beira, ali onde o rio
tem mais crôas. Se chamava Manoel Inácio, Malinácio dito, e geria
uns bons pastos, com cavalhada pastando, e os bois. Me deu almoço,
me pôs em fala. Eu estava querendo ser sincero. E notei que ele no
falar me encarava e no ouvir piscava os olhos; e, quem encara no
falar mas pisca os olhos para ouvir, não gosta muito de soldados.
Aos poucos, então, contei! que dos zé-bebelos não tinha querido
fazer parte; o que era a valente verdade. ― E Joca Ramiro? ― ele
me perguntou. Eu disse, um pouco por me engrandecer e pôr minha
prosa, que já tinha servido Joca Ramiro, e com ele conversado. Que,
mesmo por isso, é que eu não podia ficar com Zé Bebelo, porque meu
seguimento era por Joca Ramiro, em coração em devoção. E falei no
meu padrinho Selorico Mendes, e em Aluiz e Alarico Totõe, e de como
foi que Joca São Gregório. Mais coisas decerto eu disse, e aquele
homem Malinácio me ouvia, só se fazendo de sossegado. Mas eu
percebi que ele não estava. Deu jeito de aconselhar que eu fosse
embora. Que ali miasmava braba maleita. Não aceitei. Eu queria
esperar, para ver se a fogueira por minha sorte se acendia, eu tinha
gostado muito da filha dele casada. Por um instante, o sabido do
homem se tardou no que fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armar
minha rede na sombra, e descansar ― eu disse que não andava bem de
saúde, ― isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para um quarto,
onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá à la vontade, fechou
a porta. Ferrei; abraçado com minhas armas.
Acordei
só no aquele Malinácio me chamando para jantar. Cheguei na sala, e
dei com outros três homens. Disseram de si que tropeiros eram, e
estavam assim vestidos e parecidos. Mas o Malinácio começou a
glosar e reproduzir minha conversa tida com ele ― disso desgostei,
segredos frescos contados não são para todos. E o arrieiro dono da
tropa ― que era o de cara redonda e pra clara ― me fez muita
interrogação. Não estive em boas cócoras. Construí de
desconfiar. Não do fato dele tal encarecer ― pois todo tropeiro
sempre muito pergunta ―; mas do jeito como os outros dois ajudavam
aquele a me ver, de tudo perseverado tomando conta. Ele queria saber
para onde eu mesmo me ia além. Queria saber porquê, se eu punia por
Joca Ramiro, e estava em armas, por que então eu não tinha caçado
jeito de trotar para o Norte, a fito de com o pessoal ramiros me
juntar?
Quem
desconfia, fica sábio! dizendo como pude, muito confirmei; mas
confirmei acrescentando que chegara até ali por dar volta cautelosa,
e mesmo para sobre ter a calma de resolver os projetos em meu
espírito. Ah, mas, ah! ― enquanto que me ouviam, mais um homem,
tropeiro também, vinha entrando, na soleira da porta. Aguentei
aquele nos meus olhos, Mas era um susto de coração alto, parecia a
maior alegria.
Soflagrante,
conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor
quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do
porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio
comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco
me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das
compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho.
Arvoamento desses, a gente estatela e não entende; que dirá o
senhor, eu contando só assim? Eu queria ir para ele, para abraço,
mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com o passo, num
rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos
donos de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento
forte, porque as outras pessoas o novo notaram ― isso no estado de
tudo percebi. O Menino me deu a mão! e o que mão a mão diz é o
curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também.
E ele como sorriu. Digo ao senhor! até hoje para mim está sorrindo.
Digo. Ele se chamava o Reinaldo.
Para
que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso
se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em
jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é
que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido ― porque,
enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a
próprio é! coração bem batendo. Do que o que! o real roda e põe
diante. ― Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo,
são as horas de todos ― me explicou o compadre meu Quelemém. Que
fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se
esteja, e que tudo ajunta e amortece ― só rara vez se consegue
subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu. Por
que? Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se
começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor ajudando; mas,
quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço
fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor
desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio.
Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o
amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe?
Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não,
minha confusão aumenta. Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho
da guerra, eu vencendo, aí estremeci num relance claro de medo ―
medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior
do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que eu
de repente me perguntei, para não me responder: ― Você é o
rei-dos-homens?... Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão bravo.
Desfechei. Ventava em todas as árvores. Mas meus olhos viam só o
alto tremer da poeira. E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu,
ninguém não sabe.
Conto.
Reinaldo ― ele se chamava. Era o Menino do Porto, já
expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da
porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da
companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que entendi em mim: direito
como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu tivesse
acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma
alguma a minha família. Se sem peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim
como sendo, o amor podia vir mandado do Dê? Desminto. Ah ― e
Otacília? Otacília, o senhor verá, quando eu lhe contar ― ela eu
conheci em conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, se
diz! quando os anjos e o voo em volta, quase, quase. A Fazenda Santa
Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Otacília, estilo
dela, era toda exata, criatura de belezas. Depois lhe conto; tudo tem
o tempo. Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que eu tive de Se pode?
Vem horas, digo! se um aquele amor veio de Deus, como veio, então ―
o outro?... Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e
antôntem amanhã! é sempre.Tormentos. Sei que tenho culpas em
aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal
me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é
entendível. Digo! afora esses dois ― e aquela mocinha Nhorinhá,
da Aroeirinha, filha de Ana Duzuza ― eu nunca supri outro amor,
nenhum. E Nhorinhá eu deamei no passado, com um retardo custoso. No
passado, eu, digo e sei, sou assim! relembrando minha vida para trás,
eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha
mesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão
de justiça, botou fogo em sua casa, nem das cinzas carecia a
possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu incendiei! eu
ficava escutando ― o barulho de coisas rompendo e caindo, e
estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!
Logo
que o Reinaldo me conheceu e me saudou, não tive mais dificuldade em
dar certeza aos outros de minha situação. Ao quase sem sobejar
palavras, ele afiançou o meu valimento, para aquele mestre de cara
redonda e bom parecer, que passava por arrieiro da tropa e se chamava
Titão Passos. De fato, tropeiros não eram, eu soube, mas pessoal
brigal de Joca Ramiro. E a tropa? Essa, que se estava para seguir
porquanto pra o Norte, com os três lotes de bons animais, era para
levar munição. Nem tiveram mais prevenimento de esconder isso de
mim. Aquele Malinácio era o guardador: com as munições bem
encobertadas. Defronte da casa dele, mesmo, e para cima e para baixo,
o rio possuía as crôas de areia ― cada qual com seu nome, que os
remadores do das-Velhas botavam, e que todos tanto conheciam. Três
crôas e uma ilha. Mas uma delas três, maior, também sendo meio
ilha: isto é, ilha de terra, na parte de baixo, com grandes pedras e
árvores, e suja de suas folhagens nágua e o bunda-de-negro verde
vivente; e crôa, só de areia, na parte de cima. Uma crôa-com-ilha,
que é conforme se diz. A Crôa-com-Ilha do Malinácio, dita. A lá,
que aonde estava o oculto, a gente ia em canoa, baldear a munição.
Os outros companheiros, afetados de tropeiros, sendo o Triol e João
Vaqueiro, e mais Acrísio e Assunção, de sentinelas, e Vove,
Jenolim e Admeto, que acabavam de enquerir a carga na mulada. A
gente, jantou-se, já se estava de saída, para toda viagem. Eu ia
com eles. Pois fomos. Nem tive pesar nenhum de não esperar o sinal
da fogueira da mulher casada, filha do Malinácio. E ela era bonita,
sacudida. Mulher assim de ser: que nem braçada de cana ― da bica
para os cochos, dos cochos para os tachos. Menos pensei. A andada de
noite principiava como sobre algodão ― produzida cuidadosa. Aquilo
era munição de contos e contos de réis, a gente prezava grandes
responsabilidades. Se vinha sem beiradear, mas sabendo o rio. Titão
Passos comandava.
De
seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro que espera
viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe vá achar que eu
seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei. Conheci que estava chocho,
dado no mundo, vazio de um meu dever honesto. Tudo, naquele tempo, e
de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo
numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão
nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto,
transtornei um imaginar. Só não quis arrependimento! porque aquilo
sempre era começo, e descoroçoamento era modo-de-matéria que eu já
tinha aprendido a protelar. Mas o Reinaldo vinha comigo, no mesmo
lote, e não caçava minha companhia, não se chegou para perto de
mim, nem vez, não dava sinal de prosseguir amizade. A gente
descarecia de cuidar dos burros, um por um, enfileirados naquela
paciência, na escuridão da noite eles tudo enxergavam. Se eu não
tivesse combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca
mais, nesta vida, tinha topado com o Menino? ― era o que eu
pensava. Veja o senhor! eu puxava essa ideia; e com ela em vez de me
alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu. Sorte? O que
Deus sabe, Deus sabe. Eu vi a neblina encher o vulto do rio, e se
estralar da outra banda a barra da madrugada. Assaz as seriemas para
trás cantaram. Ao que, esbarramos num sitiozinho, se avistou um
preto, o preto já levantado para o trabalho, descampando mato. O
preto era nosso; fizemos paragem.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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