terça-feira, 5 de novembro de 2019

Reinaldo: o reencontro

Mas o pai dessa mulher era um homem finório de esperto, com o jeito de tirar da gente a conversa que ele constituía. A casa dele ― espaçosa, casa-de-telha e caiada ― era na beira, ali onde o rio tem mais crôas. Se chamava Manoel Inácio, Malinácio dito, e geria uns bons pastos, com cavalhada pastando, e os bois. Me deu almoço, me pôs em fala. Eu estava querendo ser sincero. E notei que ele no falar me encarava e no ouvir piscava os olhos; e, quem encara no falar mas pisca os olhos para ouvir, não gosta muito de soldados. Aos poucos, então, contei! que dos zé-bebelos não tinha querido fazer parte; o que era a valente verdade. ― E Joca Ramiro? ― ele me perguntou. Eu disse, um pouco por me engrandecer e pôr minha prosa, que já tinha servido Joca Ramiro, e com ele conversado. Que, mesmo por isso, é que eu não podia ficar com Zé Bebelo, porque meu seguimento era por Joca Ramiro, em coração em devoção. E falei no meu padrinho Selorico Mendes, e em Aluiz e Alarico Totõe, e de como foi que Joca São Gregório. Mais coisas decerto eu disse, e aquele homem Malinácio me ouvia, só se fazendo de sossegado. Mas eu percebi que ele não estava. Deu jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que ali miasmava braba maleita. Não aceitei. Eu queria esperar, para ver se a fogueira por minha sorte se acendia, eu tinha gostado muito da filha dele casada. Por um instante, o sabido do homem se tardou no que fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armar minha rede na sombra, e descansar ― eu disse que não andava bem de saúde, ― isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para um quarto, onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá à la vontade, fechou a porta. Ferrei; abraçado com minhas armas.
Acordei só no aquele Malinácio me chamando para jantar. Cheguei na sala, e dei com outros três homens. Disseram de si que tropeiros eram, e estavam assim vestidos e parecidos. Mas o Malinácio começou a glosar e reproduzir minha conversa tida com ele ― disso desgostei, segredos frescos contados não são para todos. E o arrieiro dono da tropa ― que era o de cara redonda e pra clara ― me fez muita interrogação. Não estive em boas cócoras. Construí de desconfiar. Não do fato dele tal encarecer ― pois todo tropeiro sempre muito pergunta ―; mas do jeito como os outros dois ajudavam aquele a me ver, de tudo perseverado tomando conta. Ele queria saber para onde eu mesmo me ia além. Queria saber porquê, se eu punia por Joca Ramiro, e estava em armas, por que então eu não tinha caçado jeito de trotar para o Norte, a fito de com o pessoal ramiros me juntar?
Quem desconfia, fica sábio! dizendo como pude, muito confirmei; mas confirmei acrescentando que chegara até ali por dar volta cautelosa, e mesmo para sobre ter a calma de resolver os projetos em meu espírito. Ah, mas, ah! ― enquanto que me ouviam, mais um homem, tropeiro também, vinha entrando, na soleira da porta. Aguentei aquele nos meus olhos, Mas era um susto de coração alto, parecia a maior alegria.
Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. Arvoamento desses, a gente estatela e não entende; que dirá o senhor, eu contando só assim? Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram ― isso no estado de tudo percebi. O Menino me deu a mão! e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo ao senhor! até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo.
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido ― porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é! coração bem batendo. Do que o que! o real roda e põe diante. ― Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos ― me explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece ― só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu. Por que? Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta. Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu vencendo, aí estremeci num relance claro de medo ― medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que eu de repente me perguntei, para não me responder: ― Você é o rei-dos-homens?... Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão bravo. Desfechei. Ventava em todas as árvores. Mas meus olhos viam só o alto tremer da poeira. E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe.
Conto. Reinaldo ― ele se chamava. Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. Se sem peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, o amor podia vir mandado do Dê? Desminto. Ah ― e Otacília? Otacília, o senhor verá, quando eu lhe contar ― ela eu conheci em conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, se diz! quando os anjos e o voo em volta, quase, quase. A Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Otacília, estilo dela, era toda exata, criatura de belezas. Depois lhe conto; tudo tem o tempo. Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que eu tive de Se pode? Vem horas, digo! se um aquele amor veio de Deus, como veio, então ― o outro?... Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e antôntem amanhã! é sempre.Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível. Digo! afora esses dois ― e aquela mocinha Nhorinhá, da Aroeirinha, filha de Ana Duzuza ― eu nunca supri outro amor, nenhum. E Nhorinhá eu deamei no passado, com um retardo custoso. No passado, eu, digo e sei, sou assim! relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua casa, nem das cinzas carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu incendiei! eu ficava escutando ― o barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!
Logo que o Reinaldo me conheceu e me saudou, não tive mais dificuldade em dar certeza aos outros de minha situação. Ao quase sem sobejar palavras, ele afiançou o meu valimento, para aquele mestre de cara redonda e bom parecer, que passava por arrieiro da tropa e se chamava Titão Passos. De fato, tropeiros não eram, eu soube, mas pessoal brigal de Joca Ramiro. E a tropa? Essa, que se estava para seguir porquanto pra o Norte, com os três lotes de bons animais, era para levar munição. Nem tiveram mais prevenimento de esconder isso de mim. Aquele Malinácio era o guardador: com as munições bem encobertadas. Defronte da casa dele, mesmo, e para cima e para baixo, o rio possuía as crôas de areia ― cada qual com seu nome, que os remadores do das-Velhas botavam, e que todos tanto conheciam. Três crôas e uma ilha. Mas uma delas três, maior, também sendo meio ilha: isto é, ilha de terra, na parte de baixo, com grandes pedras e árvores, e suja de suas folhagens nágua e o bunda-de-negro verde vivente; e crôa, só de areia, na parte de cima. Uma crôa-com-ilha, que é conforme se diz. A Crôa-com-Ilha do Malinácio, dita. A lá, que aonde estava o oculto, a gente ia em canoa, baldear a munição. Os outros companheiros, afetados de tropeiros, sendo o Triol e João Vaqueiro, e mais Acrísio e Assunção, de sentinelas, e Vove, Jenolim e Admeto, que acabavam de enquerir a carga na mulada. A gente, jantou-se, já se estava de saída, para toda viagem. Eu ia com eles. Pois fomos. Nem tive pesar nenhum de não esperar o sinal da fogueira da mulher casada, filha do Malinácio. E ela era bonita, sacudida. Mulher assim de ser: que nem braçada de cana ― da bica para os cochos, dos cochos para os tachos. Menos pensei. A andada de noite principiava como sobre algodão ― produzida cuidadosa. Aquilo era munição de contos e contos de réis, a gente prezava grandes responsabilidades. Se vinha sem beiradear, mas sabendo o rio. Titão Passos comandava.
De seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro que espera viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe vá achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei. Conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio de um meu dever honesto. Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto, transtornei um imaginar. Só não quis arrependimento! porque aquilo sempre era começo, e descoroçoamento era modo-de-matéria que eu já tinha aprendido a protelar. Mas o Reinaldo vinha comigo, no mesmo lote, e não caçava minha companhia, não se chegou para perto de mim, nem vez, não dava sinal de prosseguir amizade. A gente descarecia de cuidar dos burros, um por um, enfileirados naquela paciência, na escuridão da noite eles tudo enxergavam. Se eu não tivesse combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida, tinha topado com o Menino? ― era o que eu pensava. Veja o senhor! eu puxava essa ideia; e com ela em vez de me alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu. Sorte? O que Deus sabe, Deus sabe. Eu vi a neblina encher o vulto do rio, e se estralar da outra banda a barra da madrugada. Assaz as seriemas para trás cantaram. Ao que, esbarramos num sitiozinho, se avistou um preto, o preto já levantado para o trabalho, descampando mato. O preto era nosso; fizemos paragem.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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