Quase
todos os dias, num obstinado exame de consciência, Nando procurava
ver como perdera o vácuo interior que antigamente a meditação
enchia como a água enche uma cisterna vazia.
Lembrava-se
do início de tudo, que tinha sido o seu primeiro encontro com o
casal de ingleses. Estava também no ossuário, pela manhã,
meditando, perdido como então sabia se perder na visão do juízo e
esperando como sempre captar a música que um dia ouviria. Estremeceu
ao reboar pela cripta uma voz:
— Animula
vagula, blandula!
Por
tolo que lhe parecesse isto agora, o fato é que ficara um momento
atordoado com o verso ímpio de Adriano se desdobrando em ecos
cavernosos ao seu redor. Depois o riso falso e sincopado de Hosana:
— Assustei-vos,
ó timorato padre Nando?
Nando
se limitou a dar de ombros, ocultando a irritação.
— Confessa,
confessa logo, Nandinho. Você pensou que fosse uma caveira
lamentando a existência passada na ilusão de que valia a pena
servir uma pobre alminha vágula e brândula.
— O
que é que você quer aqui, Hosana?
— Não
vim interromper sem motivo tua pia meditação, ó futuro esqueleto.
Detesto este lugar imundo. Vim a mando do barbaças, que desejava
saber onde se encontrava a menina dos seus olhos, Nando, o falso
missionário.
— D.
Anselmo quer falar comigo? — disse Nando.
— Sempre.
Principalmente agora, que pretende espremer trabalho de você. No seu
lugar, Nando, eu já estava no meio da mulherada índia. Quem me dera
que o velho Anselmo me mandasse para lá.
— Não
há de ser sobre isso que ele quer me falar. Ainda ontem tornamos a
conversar.
— Chegou
gente para visitar o mosteiro e ninguém te encontrava. Aqui o Hosana
desconfiou logo que Nando devia estar polindo os ossos da fradaria
para o instante do despertar no seio de Abraão. Ui! que bafio de
eternidade.
— Então,
vamos embora que eu tenho de trancar a porta — disse Nando.
— Você
devia deixar a porta sempre escancarada para arejar esse hálito
faraônico — disse Hosana. — Deixa isso aberto. Traz as visitas
para cá também.
— Você
sabe que não pode — disse Nando.
— Os
ingleses que estão te esperando lá fora me disseram que vinham ao
ossuário.
— Então
pediram permissão expressa a d. Anselmo — disse Nando.
— Você
devia impor condições — disse Hosana. — Já que é você o guia
e introdutor diplomático podia ao menos exigir autoridade para
trazer aqui quem quisesse ver as múmias.
— Acontece
que eu estou de pleno acordo com d. Anselmo. Isto é um lugar santo.
Para que trazer turistas analfabetos que na melhor das hipóteses
apreciarão isto tanto quanto você?
— Deixa
de inocência, Nando. D. Anselmo pouco está ligando para a santidade
dessa cripta fedorenta. Ele quer é evitar um escândalo sobre o
túnel.
Mais
um pedaço de corredor aberto na pedra e a subida que ia dar no
claustro revestido de azulejos azuis. Nando procurou Teresa tirando a
sandália. A ordem de fundar a Ordem. Depois o pleno ar livre do
pátio, o sol encharcando a branca fachada quinhentista. Outro dia
enjoado e lindo, pensou Nando sentindo o sol escorrer feito melado
pelos muros, lambuzando tudo. O céu azul como uma gamela de louça
das índias emborcada em cima do mundo. Coqueiros de palmas bordadas
pelas rendeiras, tronco cinzelado por santeiros.
— Lá
estão os ingleses — disse Hosana vendo o casal ao longe no pátio.
— Ela até que é um quitute. Ruiva.
E
Nando tinha tido a primeira conversa com os que seriam tão amigos
seus, ele chamado Leslie e ela Winifred. Leslie tinha vindo como
jornalista mas acabava de conseguir aprovação para permanecer mais
tempo e escrever um livro sobre o Brasil, principalmente sobre o
Nordeste.
— Principalmente
sobre o Nordeste e principalmente sobre o papel que desempenharam os
holandeses no Nordeste — disse, rindo, a mulher, Winifred.
— Winifred
gosta de implicar comigo — disse Leslie. — Como minha mãe é
holandesa, ela acha que estou querendo justificar os antepassados.
Mas vou apenas tocar nos holandeses em busca do Nordeste atual. E
estou começando a achar que antes de botar mãos à obra eu devia
conhecer melhor o Brasil em geral. Tenho conversado com muita gente
para poder formar um roteiro que me dê uma base mínima.
— Cuidado,
cuidado — disse Nando. — Em geral os estrangeiros estudiosos do
Brasil vão ao Rio, a São Paulo, às cidades barrocas de Minas, à
Bahia, alguns se arriscam até o rio Amazonas e...
— E
pelo seu tom não é nada disto que deviam fazer — riu Winifred.
— Qual
é o melhor caminho para se formar uma ideia deste gigante de país?
— disse
Leslie. — Eu por mim — disse Nando — acho que para se pegar o
espírito do Brasil e as raízes de sua vocação no mundo o roteiro
seria outro. Pouquíssimos brasileiros o fazem e daí a confusão em
que vivemos. Eu considero a ida ao centro do Brasil, onde vivem os
índios em estado selvagem, mais importante, muito mais importante do
que conhecer o Rio ou São Paulo. E considero uma visita à zona das
Missões, no Rio Grande do Sul, mais importante do que visitar
Olinda, Bahia, Ouro Preto. Vejam bem — continuou Nando concentrado
—, é só no Brasil que ainda existem, tão perto das grandes
cidades, homens mais em contato com Deus do que com a história, isto
é, com o mundo da razão e do tempo. Entre eles a aventura do homem
na terra poderia começar de novo. Quanto às Missões, às ruínas
dos Sete Povos, elas são os restos de uma experiência maior do que
qualquer das utopias abstratas já escritas. Ali os jesuítas
tentaram recomeçar o mundo com os índios guaranis.
— O
que é que eles fizeram? — disse Winifred.
— Uma
República cristã e comunista que durou século e meio, minha
senhora. Incrível a displicência de historiadores diante da maior
experiência social que se fez sem dúvida na América e que
possivelmente foi a maior do mundo desde o Império Romano —
continuou Nando.
— Realmente
eu nunca tinha ouvido...
— Como
ouvir, minha senhora, se ninguém diz nada? Hoje só restam ruínas,
dignas ruínas, mas ali se provou, durante cento e cinquenta anos,
que com índios se poderia retomar, refazer o império sem fim e
criar na América uma República teocrática e comunista, na base do
cristianismo dos Atos dos Apóstolos. Com seres novinhos ainda da
Criação dava-se o salto definitivo para uma nova sociedade mundial.
— Fantástico
— disse Leslie, e Nando perguntou a si mesmo se o inglês achava
fantástico o que ele narrava ou fantástico ele próprio, narrando
tais coisas.
— Fantástico
o que acontece desde então — disse Nando. — Espanha e Portugal
destroem a fulgurante República Guarani. A ideia comunista,
fundamental no homem, é torcida e recriada no século seguinte pelo
Manifesto Comunista. Para sempre a Igreja perde a primazia. E, no
entanto, o que se sabe hoje desse instante crucial da história
humana, dessa tragédia nos campos e florestas do sul da América do
Sul? Nada. Umas vinte linhas em Toynbee, volumes oito e nove.
Fantástico, literalmente fantástico. Isto, minha senhora, no
historiador que reduziu as civilizações a mero adubo das religiões.
Quando menciona em livro oceânico a grande experiência jesuíta de
criar simultaneamente o adubo e a flor, o estrume e a espiga,
despacha tudo em vinte linhas desgarradas.
Antonio
Callado, in Quarup
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