terça-feira, 5 de março de 2019

Margens seca da cidade

Era um canto matinal, não sei se antes ou depois dos galos, já nem sei quando, porque a infância é um mundo distante, transformado pelo tempo.
O homem era uma surpresa na luz da manhã, e a manhã, sim, era infância: terra nua, rio de horizonte sem fim. Carregava um tabuleiro pesado, o rosto dele mal aparecia no meio de frutas e galhos, frutas arrancadas das árvores de algum quintal ou terreno baldio, ou da floresta que nos cercava. Um homem-árvore, um ser da floresta.
Como era distante e tão próxima de nós, a floresta. Na minha memória, esse vendedor ambulante era um fauno de Manaus. Hoje eu o imagino como uma das figuras fantásticas de Arcimboldo: um caboclo equilibrando-se na rua de pedras, um pomar suspenso oscilando sobre a cabeça invisível, a voz trinando sons tremidos pelo vento que vinha do rio Negro. Os sons das palavras encantavam, me atraíam como a serpente que ergue a cabeça ao som de uma flauta. Na voz, nenhum travo de raiva ou desespero, apenas a melodia de um homem humilde que deseja viver e depende da voz para sobreviver. Eu ia até a sacada do sobrado da infância, vizinho ao armazém de secos e molhados Renascença, nossos vizinhos portugueses, e avistava o arbusto humano carregado de frutas e ouvia as palavras taperebá, ingá, sorva, tucumã, graviola, jatobá, cupuaçu, bacaba: palavras (sons) que nunca mais deixei de ouvir por onde andei e morei. Lembro que certa vez em Lima ele apareceu com o pomar no tabuleiro, e pensei nas voltas que havia dado para chegar à capital do Peru, talvez por Iquitos, e quando estendi a mão para apanhar uma fruta ele riu ou deve ter rido e curvou o corpo e me ofereceu o pomar inteiro. Então acordei. Fiquei pensando no homem-floresta em Lima. Vá saber o significado de um sonho.
Na realidade, na vida que chamamos realidade, o homem sempre aparecia quando eu regressava para Manaus, não sei se mais velho, mais acabado, ou mais corcunda, sei que a voz flauteava nomes de frutas e a mesma voz dizia “E aí, mano”, me oferecendo cachos de pitombas, sem mesmo receber dinheiro, como se eu ainda fosse aquela criança na janela da casa da avenida Joaquim Nabuco 457, e ele um avô da natureza.
Obrigado, seu…” Não sabia o nome dele, nada. A árvore móvel atravessava a cidade e creio que atravessou minha vida e o tempo, teimando em sobreviver com a cabeça vegetal e os pés de raízes aéreas, o corpo invisível, a cabeça escondida, as frutas caindo dos galhos e das folhas verdes, frutas que cheiravam a léguas de distância e davam água na boca aos astros, como se um punhado da Amazônia estivesse ali, concentrado com a força da umidade, a alegria solar e a beleza das formas e cores, passando, passeando entre carros, caminhões e ônibus até o dia em que ele, o homem-árvore, era a única natureza viva na cidade que se destruía ou se deixava destruir pela sanha imobiliária, pelo progresso que é apenas caricatura sinistra do progresso.
Como é possível perder a razão de ser?
Você não ouve mais o som flauteado, não vê mais a árvore da vida, não encontra o desejo nem os indícios da primeira manhã. Aquela árvore e seu tronco foram se atrofiando, a aspereza da cidade usurpou o indivíduo do nosso convívio, tudo se tornou enorme e disforme. O tempo nos consome com lentidão. O homem-árvore foi desfolhando, perdendo galhos, sua força vegetal arrefeceu, as frutas, antes polidas, perderam o brilho, alguma praga roeu o arbusto aéreo. O sol incendiou as manhãs frescas, ruas e calçadas, a floresta que nos cercava tornou-se um caos de casebres e palafitas, os pequenos caminhos de água secaram. Há dois anos vi o homem-árvore e agora o perdi de vista.
Por onde andam seus pés descalços, seu turbante de pano barato, sua voz de flauta doce? É inútil procurá-lo, pensei. Já não sinto o cheiro perfumado do sapoti, o sabor do jambo arroxeado, cuja semente algum português do Algarve trouxe da Índia e plantou no Amazonas. E, sem querer, um ato involuntário nos conduz ao coração da realidade. Fui me despedir do igarapé agora aterrado, as palafitas pobres substituídas por casas feias, fechadas, sem varanda, janelas pequenas. Andava por vielas de terra quando vi um tabuleiro no chão. Frutas miúdas, pálidas, espalhadas na madeira desgastada. Ele estava sentado ao lado de sua árvore desfolhada. O homem era só tronco, esquálido, sem voz, com um olhar resignado voltado para o chão. Escolhi uns tucumãs, peguei dois cachos de pitomba e dessa vez paguei.
Ainda se lembrava do menino que o olhava como quem olha um mágico? Recebeu o dinheiro, dobrou as notas e pôs no bolso da camisa. Esperei um aceno, um cumprimento qualquer, mas no olhar dele não havia nada. Triste e sem voz, parado no mormaço, sobrevivente que a morte espreita nas margens secas da minha cidade.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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