Era
um canto matinal, não sei se antes ou depois dos galos, já nem sei
quando, porque a infância é um mundo distante, transformado pelo
tempo.
O
homem era uma surpresa na luz da manhã, e a manhã, sim, era
infância: terra nua, rio de horizonte sem fim. Carregava um
tabuleiro pesado, o rosto dele mal aparecia no meio de frutas e
galhos, frutas arrancadas das árvores de algum quintal ou terreno
baldio, ou da floresta que nos cercava. Um homem-árvore, um ser da
floresta.
Como
era distante e tão próxima de nós, a floresta. Na minha memória,
esse vendedor ambulante era um fauno de Manaus. Hoje eu o imagino
como uma das figuras fantásticas de Arcimboldo: um caboclo
equilibrando-se na rua de pedras, um pomar suspenso oscilando sobre a
cabeça invisível, a voz trinando sons tremidos pelo vento que vinha
do rio Negro. Os sons das palavras encantavam, me atraíam como a
serpente que ergue a cabeça ao som de uma flauta. Na voz, nenhum
travo de raiva ou desespero, apenas a melodia de um homem humilde que
deseja viver e depende da voz para sobreviver. Eu ia até a sacada do
sobrado da infância, vizinho ao armazém de secos e molhados
Renascença, nossos vizinhos portugueses, e avistava o arbusto humano
carregado de frutas e ouvia as palavras taperebá, ingá, sorva,
tucumã, graviola, jatobá, cupuaçu, bacaba: palavras (sons) que
nunca mais deixei de ouvir por onde andei e morei. Lembro que certa
vez em Lima ele apareceu com o pomar no tabuleiro, e pensei nas
voltas que havia dado para chegar à capital do Peru, talvez por
Iquitos, e quando estendi a mão para apanhar uma fruta ele riu ou
deve ter rido e curvou o corpo e me ofereceu o pomar inteiro. Então
acordei. Fiquei pensando no homem-floresta em Lima. Vá saber o
significado de um sonho.
Na
realidade, na vida que chamamos realidade, o homem sempre aparecia
quando eu regressava para Manaus, não sei se mais velho, mais
acabado, ou mais corcunda, sei que a voz flauteava nomes de frutas e
a mesma voz dizia “E aí, mano”, me oferecendo cachos de
pitombas, sem mesmo receber dinheiro, como se eu ainda fosse aquela
criança na janela da casa da avenida Joaquim Nabuco 457, e ele um
avô da natureza.
“Obrigado,
seu…” Não sabia o nome dele, nada. A árvore móvel atravessava
a cidade e creio que atravessou minha vida e o tempo, teimando em
sobreviver com a cabeça vegetal e os pés de raízes aéreas, o
corpo invisível, a cabeça escondida, as frutas caindo dos galhos e
das folhas verdes, frutas que cheiravam a léguas de distância e
davam água na boca aos astros, como se um punhado da Amazônia
estivesse ali, concentrado com a força da umidade, a alegria solar e
a beleza das formas e cores, passando, passeando entre carros,
caminhões e ônibus até o dia em que ele, o homem-árvore, era a
única natureza viva na cidade que se destruía ou se deixava
destruir pela sanha imobiliária, pelo progresso que é apenas
caricatura sinistra do progresso.
Como
é possível perder a razão de ser?
Você
não ouve mais o som flauteado, não vê mais a árvore da vida, não
encontra o desejo nem os indícios da primeira manhã. Aquela árvore
e seu tronco foram se atrofiando, a aspereza da cidade usurpou o
indivíduo do nosso convívio, tudo se tornou enorme e disforme. O
tempo nos consome com lentidão. O homem-árvore foi desfolhando,
perdendo galhos, sua força vegetal arrefeceu, as frutas, antes
polidas, perderam o brilho, alguma praga roeu o arbusto aéreo. O sol
incendiou as manhãs frescas, ruas e calçadas, a floresta que nos
cercava tornou-se um caos de casebres e palafitas, os pequenos
caminhos de água secaram. Há dois anos vi o homem-árvore e agora o
perdi de vista.
Por
onde andam seus pés descalços, seu turbante de pano barato, sua voz
de flauta doce? É inútil procurá-lo, pensei. Já não sinto o
cheiro perfumado do sapoti, o sabor do jambo arroxeado, cuja semente
algum português do Algarve trouxe da Índia e plantou no Amazonas.
E, sem querer, um ato involuntário nos conduz ao coração da
realidade. Fui me despedir do igarapé agora aterrado, as palafitas
pobres substituídas por casas feias, fechadas, sem varanda, janelas
pequenas. Andava por vielas de terra quando vi um tabuleiro no chão.
Frutas miúdas, pálidas, espalhadas na madeira desgastada. Ele
estava sentado ao lado de sua árvore desfolhada. O homem era só
tronco, esquálido, sem voz, com um olhar resignado voltado para o
chão. Escolhi uns tucumãs, peguei dois cachos de pitomba e dessa
vez paguei.
Ainda
se lembrava do menino que o olhava como quem olha um mágico? Recebeu
o dinheiro, dobrou as notas e pôs no bolso da camisa. Esperei um
aceno, um cumprimento qualquer, mas no olhar dele não havia nada.
Triste e sem voz, parado no mormaço, sobrevivente que a morte
espreita nas margens secas da minha cidade.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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