terça-feira, 5 de março de 2019

Luz e trevas

A nulidade das interpretações filosóficas e históricas em matéria de religião aparece em sua total incompreensão do que significa o dualismo da luz e das trevas nas religiões orientais e na mística em geral. A alternância regular do dia e da noite - aquele, princípio da vida; esta, princípio de mistério e morte - teria inspirado a tradução da luz e das trevas em princípios metafísicos. Nada mais evidente numa primeira abordagem... Para quem pesquisa determinantes profundos, entretanto, estas interpretações revelam-se insuficientes. A questão da luz e das trevas está, na verdade, ligada à dos estados extáticos. Este dualismo apenas tem valor explicativo para aquele que conheceu a obsessão e o cativeiro, submetidos, simultânea ou sucessivamente, às forças da luz e das trevas. Os estados extáticos fazem dançar na obscuridade, de maneira insólita, as sombras junto às faíscas; eles misturam, numa visão dramática, lampejos a sombras fugitivas e misteriosas, fazendo as nuances da luz degradarem até as trevas. Não é, entretanto, este processo que impressiona, mas o fato de sermos perseguidos, invadidos e dominados. Atingimos o pico do êxtase numa sensação final, quando acreditaríamos morrer de luz e de trevas. Estranhamente, a visão extática faz desaparecer todos os objetos circundantes, todas as formas correntes de individualização; sobra somente, então, uma projeção de sombras e de luzes. É difícil explicar como é que esta seleção e purificação se cumprem, ou como são compatíveis seu poder de fascinação e sua imaterialidade. A exaltação extática comporta um elemento demoníaco. E quando não sobra mais do que luz e trevas do êxtase deste mundo, como evitar atribuir-lhe um caráter absoluto? A frequência dos estados extáticos no Oriente, e a mística de todos os tempos, têm uma natureza que demonstra nossa hipótese. Ninguém saberia encontrar o absoluto fora de si mesmo; ou ainda, o êxtase, este paroxismo da interioridade, não revela mais do que fagulhas e sombras internas. Em comparação, o dia e a noite são muito pálidos. Os estados extáticos tomam um aspecto tão essencial que fazem surgir, assim que tocam as regiões profundas da existência, uma cegante alucinação metafísica. O êxtase afeta somente as essências puras e, desta feita, imateriais. Mas sua imaterialidade produz vertigens e obsessões às quais somente escaparemos convertendo-as em princípios metafísicos.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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