quarta-feira, 6 de março de 2019

A hora e vez de Augusto Matraga (trecho final)

[...] Nisso, fizeram um estardalhaço, à entrada.
Quem é?
É o tal velho caduco, chefe.
Deixa ele entrar. Vem cá, velho.
O velhote chorava e tremia, e se desacertou, frente às pessoas. Afinal, conseguiu ajoelhar-se aos pés de seu Joãozinho Bem-Bem.
Ai, meu senhor que manda em todos... Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, tem pena!... Tem pena do meu povinho miúdo... Não corta o coração de um pobre pai...
Levanta, velho...
O senhor é poderoso, é dono do choro dos outros... Mas a Virgem Santíssima lhe dará o pago por não pisar em formiguinha do chão... Tem piedade de nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem!
Levanta, velho! Quem é que teve piedade do Juruminho, baleado por detrás?
Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da senhora sua mãe, que o teve e lhe deu de mamar, eu lhe peço que dê ordem de matarem só este velho, que não presta para mais nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos dos meus filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de medo, e que não têm culpa nenhuma do que fez o irmão... Pelo sangue de Jesus Cristo e pelas lágrimas da Virgem Maria!...
E o velho tapou a cara com as mãos, sempre ajoelhado, curvado, soluçando e arquejando.
Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e falou:
Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta de traição?... É a regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas não posso perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de morrer, de tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é que deve de pagar pelo crime do irmão. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são para os meus homens...
Perdão, para nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem... Pelo corpo de Cristo na Sexta-feira da Paixão!
Cala a boca, velho. Vamos logo cumprir a nossa obrigação...
Mas, aí, o velho, sem se levantar, inteiriçou-se, distendeu o busto para cima, como uma caninana enfunada, e pareceu que ia chegar com a cara até em frente à de seu Joãozinho Bem-Bem. Hirto, cordoveias retesas, mastigando os dentes e cuspindo baba, urrou:
Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p’ra ajudar a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!
Houve um silêncio. E, aí:
Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!
Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral.
Você está caçoando com a gente, mano velho?
Estou não. Estou pedindo como amigo, mas a conversa é no sério, meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem.
Pois pedido nenhum desse atrevimento eu até hoje nunca que ouvi nem atendi!...
O velho engatinhou, ligeiro, para se encostar na parede. No calor da sala, uma mosca esvoaçou.
Pois então... — e Nhô Augusto riu, como quem vai contar uma grande anedota — ...Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...
Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem-assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:
Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!...
E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.
Ô gostosura de fim-de-mundo!...
E garrou a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência, e que havia muitos anos não proferia. E atroava, também, a voz de seu Joãozinho Bem-Bem:
Sai, Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!
A coronha do rifle, no pé-do-ouvido... Outro pulo... Outro tiro... Três dos cabras correram, porque outros três estavam mortos, ou quase, ou fingindo.
E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão.
Se entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar...
Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem...
Mano velho! Agora é que tu vai dizer: quantos palmos é que tem, do calcanhar ao cotovelo!...
Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho p’ra o inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!...
Úi, estou morto...
A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago, e um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.
Aí, o povo quis amparar Nhô Augusto, que punha sangue por todas as partes, até do nariz e da boca, e que devia de estar pesando demais, de tanto chumbo e bala. Mas tinha fogo nos olhos de gato-do-mato, e o busto, especado, não vergava para o chão.
Espera aí, minha gente, ajudem o meu parente ali, que vai morrer mais primeiro... Depois, então, eu posso me deitar.
Estou no quase, mano velho... Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta e de mais coragem que eu já conheci!... Eu sempre lhe disse quem era bom mesmo, mano velho... E só assim que gente como eu tem licença de morrer... Quero acabar sendo amigos...
Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas, agora, se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é para a gente poder ir juntos...
Mas, seu Joãozinho Bem-Bem, quando respirava, as rodilhas dos intestinos subiam e desciam. Pegou a gemer. Estava no estorcer do fim. E, como teimava em conversar, apressou ainda mais a despedida. E foi mesmo.
Alguém gritou: — “Eh, seu Joãozinho Bem-Bem já bateu com o rabo na cerca! Não tem mais!”... — E então Nhô Augusto se bambeou nas pernas, e deixou que o carregassem.
P’ra dentro de casa, não, minha gente. Quero me acabar no solto, olhando o céu, e no claro... Quero é que um de vocês chame um padre... Pede para ele vir me abençoando pelo caminho, que senão é capaz de não me achar mais...
E riu.
E o povo, enquanto isso, dizia: “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...” E a turba começou a querer desfeitear o cadáver de seu Joãozinho Bem-Bem, todos cantando uma cantiga que qualquer-um estava inventando na horinha:

Não me mata, não me mata seu Joãozinho Bem-Bem!
Você não presta mais pra nada, seu Joãozinho Bem-Bem!...

Nhô Augusto falou, enérgico:
Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!
E o velho choroso exclamava:
Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não deixem este santo morrer assim... P’ra que foi que foram inventar arma de fogo, meu Deus?!
Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou: — Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas!
Virgem Santa! Eu logo vi que só podia ser você, meu primo Nhô Augusto...
Era o João Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu: — E hein, hein João?!
P’ra ver...
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento.
Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: — Põe a benção na minha filha.., seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem!
Depois, morreu.
Guimarães Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga

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