[…]
Jimmy tinha pedido mais uísque. Tinha os olhos vidrados. Dave encheu
a boca com um trago gelado e manteve-o até que passou-lhe o arrepio
nos dentes. Dave tinha ficado quieto novamente, as mãos afundadas
nos bolsos, as rugas na testa, os olhos fechados. Jimmy tinha dois
copos cheios pela frente: não podia nem olhar para eles. Sentia-se
dominado pela náusea, mas acima da náusea sentia-se dominado por
uma espécie secreta de respeito, que não havia sentido por ninguém
antes, e que era mais forte que sua necessidade de vomitar.
Dave
disse:
– Bom.
Havia um traidor. E era preciso matar o traidor. Isso era tudo. O
major mostrou-me o traidor. Mas eu já o conhecia. Eu sabia quem era.
Só faltava prová-lo. E pôr um ponto final no assunto. Pôr um
ponto final no assunto de uma vez por todas.
Dave
bebeu de novo, mas empurrando o copo com a mão. Os músculos do
rosto se endureceram. Aspirou profundamente a fumaça do cigarro,
deixou-a escapar entre os dentes apertados. As náuseas continuavam
nascendo da boca do estômago de Jimmy.
– A
missão seguinte foi feita para isso. Tiramos os pára-quedas no meio
da selva inimiga e ele foi em uma direção e eu em outra. Mas dei a
volta e surpreendi-o por trás. Vi. Era a prova. Em uma pequena
clareira no meio do mato, vi quando ele entregava informação ao
inimigo. Voltei e esperei. Era a hora em que o sol morria e havia o
barulho de animais movendo-se e pássaros levantando voo. Ele vinha
caminhando pelo mato e me viu. E continuou caminhando. Não me
traíram nem minhas pernas nem meus braços. Estávamos a uns três
metros um do outro e ele olhou para mim e sorriu. Sorriu com uma
tristeza irremediável e fraternal, como dizendo: “Já sei que você
tem de fazê-lo”, como dizendo: “Já sei por que você vai
fazê-lo”. Olhei minha mão fechada e a faca estava nela, embora eu
não me lembrasse de tê-la tirado da bainha amarrada em minha coxa.
Aos
olhos de Jimmy, enevoados de vapores, Dave se abria em dois, tornava
a fechar-se, desdobrava-se e se juntava consigo mesmo num ritmo
balanceado. Aos ouvidos de Jimmy, a voz de Dave soava como um som
remoto e ondulado.
– Ele
mesmo o fez – disse Dave. – Poupou-me disso.
Então
houve um furtivo brilho de alarma nos olhos ausentes de Jimmy.
– Aproximou-se
de mim caminhando, com os braços abertos, sem tropeçar nem alterar
nem um pouco o ritmo dos passos e eu com a faca erguida na mão. O
irmão Tri veio e me abraçou e fundiu-se comigo. Eu senti seus dedos
crispados contra minhas costas, senti a longa lâmina que deslizava
para cima, pelo ventre, e chegava ao coração. Seu corpo se
estremeceu contra meu corpo e senti como tremia e a cara dele estava
cravada em meu ombro. Depois caiu, deslizou ao longo de meu corpo. O
sangue saía da barriga dele como uma maré. Abriu os olhos no chão.
Um trejeito retorcia sua cara. Olhava como dizendo para mim:
“Obrigado, filho da puta”.
A
mão de Dave crispou-se sobre o copo. Jimmy levantou-se. A mão de
Dave quebrou o copo.
Na
montanha, a gente pode tornar-se verde com os infinitos verdes das
plantas, escolher qualquer uma das quatrocentas vozes do cenzontle
e babar a baba que embaba, a baba da iguana; pode-se matar com a
sombra como os chinchintores, ou com o olhar, como matam os
basiliscos, contrair-se como a sensitiva, ante a menor
advertência vinda pelo ar ou flutuar nas copas das árvores e
oferecer ao inimigo frutos que adormecem: ser como o rei quiché,
sete dias águia e sete dias tigre, sete dias serpente. A selva
disfarça: a cidade despoja. Sebastian sente-se nu apesar da batina.
A chuva precipita-se na frente de seu rosto; às suas costas, o
Edifício Horizontal abriga, entre cristal e aço, centenas de olhos
possivelmente curiosos, esconde centenas de bocas possivelmente
indiscretas: centenas de possíveis inimigos. No campo, nas noites
assim, as únicas testemunhas são os fantasmas que saem dos rios
quando chove muito.
O
Jicaque não está, agora, ao seu lado. Sebastian não escuta a voz
cordial de Miguel Angel, nem tem pela frente sua figura cômica
baixinha e cabeçuda como um fósforo, nem se sente guardado pela
serenidade sem titubeios dos olhos de Mário. Na memória, é
visitado como acontece sempre que está sozinho e em perigo – pelos
mortos: um exorcismo, talvez, para conjurar o medo, a antiga magia
dos feiticeiros da fraternidade contra o demônio do medo. Alberto
dizia que um homem pode considerar-se virgem até que tenha matado
outro homem e criado outro: matar, ter um filho. É estranho não ter
matado, como é estranho não ter morrido. Sebastian queria ter duas
pistolas e que o gringo escolhesse e atirassem ao mesmo tempo. Mas
coloca a primeira bala, clic, na agulha.
Quando
Jimmy voltou à mesa, muito pálido, com a testa banhada de suor,
encontrou um desconhecido que acabava de entrar e se inclinava,
solícito, sobre a mesa. Estava empapado pela chuva. Tinha óculos de
vidros grossos e um sorriso agradável.
– O
senhor sofreu um acidente – disse.
O
sangue corria, abundante, da palma da mão de Dave.
– Se
me permite... – disse o desconhecido, desdobrando o lenço.
– Não
tem importância – agradeceu Dave. – Não tem nenhuma
importância.
– O
tenente Thomas Vaughan?
Jimmy
comprovou que o homem chegava na altura de sua axila – e nada mais,
apesar do chapéu. O chapéu, dobrado para baixo como um sino,
escorria água da chuva. Rios de chuva. Jimmy sentia-se fraco:
– Faz
um tempinho que Tom... – começou a dizer.
– Sou
eu – interrompeu Dave, e levantou-se.
– Onde
é que nosso amigo...?
– Na
porta do Edifício Horizontal – respondeu o desconhecido, apontando
para a direita –, quarta avenida, esquina com a sexta rua. A duas
quadras daqui.
– Vou
com você – disse Jimmy.
Dave
negou, com a cabeça. Aproximou-se do balcão para pagar.
Sebastian
quisera poder ver além da noite e do outro lado da chuva, seguir
vendo a partir do momento exato em que o inimigo saísse do Pan
American Bar: Thomas Vaughan vindo rua acima, rumo à quarta avenida,
protegendo-se da chuva sob um guarda-chuva ou debaixo das marquises
dos edifícios ou debaixo do seu próprio braço ou não
protegendo-se da chuva em absoluto, abrindo a chuva com seus grandes
passos de bruto – virá, aí vem, Dave saiu do bar, entra na chuva,
Dave caminha, envolvido ainda nos efeitos de sua tristeza teimosa,
sem celebrar a frescura da chuva na cara e no corpo, a camisa grudada
na pele, a pele empapada, a densa cortina de chuva fria se desloca,
enquanto ele passa, junto com ele, sobre ele, através dele: não
desconfia da mistura escorregadia de barro e graxa que está pisando,
não descobre a ameaça vibrando na chuva, não adivinha que há um
enigma nesse encontro ao qual ele comparece em lugar de outro: não
sabe que ele está cumprindo, sem possibilidade de traição ou
renúncia, com um encontro que estava marcado a esta determinada hora
e nesse determinado lugar – marcado para ele: Sebastian sente um
arrepio que atravessa seu crânio, escorre pela nuca e pelo couro
cabeludo: a história é assunto de dinâmica e de machos, dizia
Marco Antonio, e Alberto, que dizia?, tantas coisas ele dizia, tantas
coisas tinha para dizer, um homem nasce com uma quantidade de
palavras para dizer e de coisas para fazer ao longo da vida e Alberto
tinha uma quantidade extra de palavras para dizer e coisas para fazer
e quando morreu pensei: talvez já tenha dito todas as suas palavras,
feito todas as suas coisas, e me respondi que não e soube que era um
crime, que um crime era exatamente isso: é ele, não é ele, Thomas
não-sei-quê, não enxergo direito, se aproxima, cara de gringo ele
tem, mas quer dizer que era um tipo magro, este não é, é sim, vem
para cá, na certa me viu, já me viu, a doze metros, a dez; aliados
piedosos como poucos, pensa Dave, aliados de batina, quem diria, isto
prova que Deus está do nosso lado – não é? – a oito metros, a
seis, é uma velha convicção americana; uma onda ao mesmo tempo
fervendo e gélida sobe e desce pelas costas de Sebastian e Dave a
cinco metros, Dave a quatro, o dedo no gatilho debaixo da batina, e
oh, não tenho forças, não posso fazer isso, não posso, mãos
geladas, lábios ressecados, dois metros, o terror nos olhos e
boa-noite amigo e uma detonação surda da bala no segundo em que
Dave se atira sobre Sebastian e outra bala e Dave se retorce e cai e
Sebastian subitamente está seguro de que já tinha feito isso antes,
alguma vez, ainda que não soubesse, que havia matado esse homem
tempos atrás embora não soubesse e agora um cheiro acre de pólvora
e sangue vai atravessando, lentamente, o cheiro da chuva.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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