quarta-feira, 6 de março de 2019

A cidade como um tigre (trecho final)

[…] Jimmy tinha pedido mais uísque. Tinha os olhos vidrados. Dave encheu a boca com um trago gelado e manteve-o até que passou-lhe o arrepio nos dentes. Dave tinha ficado quieto novamente, as mãos afundadas nos bolsos, as rugas na testa, os olhos fechados. Jimmy tinha dois copos cheios pela frente: não podia nem olhar para eles. Sentia-se dominado pela náusea, mas acima da náusea sentia-se dominado por uma espécie secreta de respeito, que não havia sentido por ninguém antes, e que era mais forte que sua necessidade de vomitar.
Dave disse:
Bom. Havia um traidor. E era preciso matar o traidor. Isso era tudo. O major mostrou-me o traidor. Mas eu já o conhecia. Eu sabia quem era. Só faltava prová-lo. E pôr um ponto final no assunto. Pôr um ponto final no assunto de uma vez por todas.
Dave bebeu de novo, mas empurrando o copo com a mão. Os músculos do rosto se endureceram. Aspirou profundamente a fumaça do cigarro, deixou-a escapar entre os dentes apertados. As náuseas continuavam nascendo da boca do estômago de Jimmy.
A missão seguinte foi feita para isso. Tiramos os pára-quedas no meio da selva inimiga e ele foi em uma direção e eu em outra. Mas dei a volta e surpreendi-o por trás. Vi. Era a prova. Em uma pequena clareira no meio do mato, vi quando ele entregava informação ao inimigo. Voltei e esperei. Era a hora em que o sol morria e havia o barulho de animais movendo-se e pássaros levantando voo. Ele vinha caminhando pelo mato e me viu. E continuou caminhando. Não me traíram nem minhas pernas nem meus braços. Estávamos a uns três metros um do outro e ele olhou para mim e sorriu. Sorriu com uma tristeza irremediável e fraternal, como dizendo: “Já sei que você tem de fazê-lo”, como dizendo: “Já sei por que você vai fazê-lo”. Olhei minha mão fechada e a faca estava nela, embora eu não me lembrasse de tê-la tirado da bainha amarrada em minha coxa.
Aos olhos de Jimmy, enevoados de vapores, Dave se abria em dois, tornava a fechar-se, desdobrava-se e se juntava consigo mesmo num ritmo balanceado. Aos ouvidos de Jimmy, a voz de Dave soava como um som remoto e ondulado.
Ele mesmo o fez – disse Dave. – Poupou-me disso.
Então houve um furtivo brilho de alarma nos olhos ausentes de Jimmy.
Aproximou-se de mim caminhando, com os braços abertos, sem tropeçar nem alterar nem um pouco o ritmo dos passos e eu com a faca erguida na mão. O irmão Tri veio e me abraçou e fundiu-se comigo. Eu senti seus dedos crispados contra minhas costas, senti a longa lâmina que deslizava para cima, pelo ventre, e chegava ao coração. Seu corpo se estremeceu contra meu corpo e senti como tremia e a cara dele estava cravada em meu ombro. Depois caiu, deslizou ao longo de meu corpo. O sangue saía da barriga dele como uma maré. Abriu os olhos no chão. Um trejeito retorcia sua cara. Olhava como dizendo para mim: “Obrigado, filho da puta”.
A mão de Dave crispou-se sobre o copo. Jimmy levantou-se. A mão de Dave quebrou o copo.
Na montanha, a gente pode tornar-se verde com os infinitos verdes das plantas, escolher qualquer uma das quatrocentas vozes do cenzontle e babar a baba que embaba, a baba da iguana; pode-se matar com a sombra como os chinchintores, ou com o olhar, como matam os basiliscos, contrair-se como a sensitiva, ante a menor advertência vinda pelo ar ou flutuar nas copas das árvores e oferecer ao inimigo frutos que adormecem: ser como o rei quiché, sete dias águia e sete dias tigre, sete dias serpente. A selva disfarça: a cidade despoja. Sebastian sente-se nu apesar da batina. A chuva precipita-se na frente de seu rosto; às suas costas, o Edifício Horizontal abriga, entre cristal e aço, centenas de olhos possivelmente curiosos, esconde centenas de bocas possivelmente indiscretas: centenas de possíveis inimigos. No campo, nas noites assim, as únicas testemunhas são os fantasmas que saem dos rios quando chove muito.
O Jicaque não está, agora, ao seu lado. Sebastian não escuta a voz cordial de Miguel Angel, nem tem pela frente sua figura cômica baixinha e cabeçuda como um fósforo, nem se sente guardado pela serenidade sem titubeios dos olhos de Mário. Na memória, é visitado como acontece sempre que está sozinho e em perigo – pelos mortos: um exorcismo, talvez, para conjurar o medo, a antiga magia dos feiticeiros da fraternidade contra o demônio do medo. Alberto dizia que um homem pode considerar-se virgem até que tenha matado outro homem e criado outro: matar, ter um filho. É estranho não ter matado, como é estranho não ter morrido. Sebastian queria ter duas pistolas e que o gringo escolhesse e atirassem ao mesmo tempo. Mas coloca a primeira bala, clic, na agulha.
Quando Jimmy voltou à mesa, muito pálido, com a testa banhada de suor, encontrou um desconhecido que acabava de entrar e se inclinava, solícito, sobre a mesa. Estava empapado pela chuva. Tinha óculos de vidros grossos e um sorriso agradável.
O senhor sofreu um acidente – disse.
O sangue corria, abundante, da palma da mão de Dave.
Se me permite... – disse o desconhecido, desdobrando o lenço.
Não tem importância – agradeceu Dave. – Não tem nenhuma importância.
O tenente Thomas Vaughan?
Jimmy comprovou que o homem chegava na altura de sua axila – e nada mais, apesar do chapéu. O chapéu, dobrado para baixo como um sino, escorria água da chuva. Rios de chuva. Jimmy sentia-se fraco:
Faz um tempinho que Tom... – começou a dizer.
Sou eu – interrompeu Dave, e levantou-se.
Onde é que nosso amigo...?
Na porta do Edifício Horizontal – respondeu o desconhecido, apontando para a direita –, quarta avenida, esquina com a sexta rua. A duas quadras daqui.
Vou com você – disse Jimmy.
Dave negou, com a cabeça. Aproximou-se do balcão para pagar.
Sebastian quisera poder ver além da noite e do outro lado da chuva, seguir vendo a partir do momento exato em que o inimigo saísse do Pan American Bar: Thomas Vaughan vindo rua acima, rumo à quarta avenida, protegendo-se da chuva sob um guarda-chuva ou debaixo das marquises dos edifícios ou debaixo do seu próprio braço ou não protegendo-se da chuva em absoluto, abrindo a chuva com seus grandes passos de bruto – virá, aí vem, Dave saiu do bar, entra na chuva, Dave caminha, envolvido ainda nos efeitos de sua tristeza teimosa, sem celebrar a frescura da chuva na cara e no corpo, a camisa grudada na pele, a pele empapada, a densa cortina de chuva fria se desloca, enquanto ele passa, junto com ele, sobre ele, através dele: não desconfia da mistura escorregadia de barro e graxa que está pisando, não descobre a ameaça vibrando na chuva, não adivinha que há um enigma nesse encontro ao qual ele comparece em lugar de outro: não sabe que ele está cumprindo, sem possibilidade de traição ou renúncia, com um encontro que estava marcado a esta determinada hora e nesse determinado lugar – marcado para ele: Sebastian sente um arrepio que atravessa seu crânio, escorre pela nuca e pelo couro cabeludo: a história é assunto de dinâmica e de machos, dizia Marco Antonio, e Alberto, que dizia?, tantas coisas ele dizia, tantas coisas tinha para dizer, um homem nasce com uma quantidade de palavras para dizer e de coisas para fazer ao longo da vida e Alberto tinha uma quantidade extra de palavras para dizer e coisas para fazer e quando morreu pensei: talvez já tenha dito todas as suas palavras, feito todas as suas coisas, e me respondi que não e soube que era um crime, que um crime era exatamente isso: é ele, não é ele, Thomas não-sei-quê, não enxergo direito, se aproxima, cara de gringo ele tem, mas quer dizer que era um tipo magro, este não é, é sim, vem para cá, na certa me viu, já me viu, a doze metros, a dez; aliados piedosos como poucos, pensa Dave, aliados de batina, quem diria, isto prova que Deus está do nosso lado – não é? – a oito metros, a seis, é uma velha convicção americana; uma onda ao mesmo tempo fervendo e gélida sobe e desce pelas costas de Sebastian e Dave a cinco metros, Dave a quatro, o dedo no gatilho debaixo da batina, e oh, não tenho forças, não posso fazer isso, não posso, mãos geladas, lábios ressecados, dois metros, o terror nos olhos e boa-noite amigo e uma detonação surda da bala no segundo em que Dave se atira sobre Sebastian e outra bala e Dave se retorce e cai e Sebastian subitamente está seguro de que já tinha feito isso antes, alguma vez, ainda que não soubesse, que havia matado esse homem tempos atrás embora não soubesse e agora um cheiro acre de pólvora e sangue vai atravessando, lentamente, o cheiro da chuva.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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