domingo, 17 de fevereiro de 2019

Velhice

Ela já viveu 96 anos. A saúde está perfeita, glicemia, colesterol, pressão. Há os lisos cabelos brancos, as pernas trôpegas, a bengala. Nunca ouvi dela uma lamentação pelas limitações da velhice. Pelo contrário, ela goza intensamente os prazeres que lhe restam, especialmente os prazeres da mesa, os prazeres dos olhos e o prazer dos cachorros. A vida inteira ela amou os cachorros. Um dos seus prazeres moleques é dar secretamente para os cachorros que se assentam ao seu lado pedaços de pão mergulhados no café com leite. Extasia-se com as cores das flores das árvores. Durante a florescência dos ipês-rosas, ela não se cansava de repetir: “Como são bonitos!”. Hoje ela viu a lua cheia, enorme, quase branca, redonda. Quando o entusiasmo é demais, ela diz seus sentimentos em alemão. “Wie die Welt ist doch so schön, aber Ich muss scheiden...” – como o mundo é belo, mas eu tenho de partir…
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Nenhum comentário:

Postar um comentário