sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Saturno X Mercúrio

O quarto escuro, o casulo de cobertas, a planta do pé deslizando pelos lençóis, semiconsciência e nenhuma demanda: perfeição quase uterina. Então vinha um adulto abrir a janela, dizendo “olha só, Antonio, que dia lindo, tá na hora de acordar”, como se palavras doces pudessem edulcorar o fato de estarem me expulsando do Éden horizontal e me jogando no Purgatório vertical, onde a vontade de comer brigadeiro seria solapada pela obrigação de provar espinafre, meu espaço no tanque de areia teria que ser disputado no corpo a corpo com outras crianças — algumas violentas, até, que não se furtariam a morder e beliscar para garantir as partes que lhes cabiam naquele minifúndio —, as professoras ficariam perguntando quantas perninhas tem o E, quantas corcovas tem o M, e a única corcova que importava — a minha — teria que ser levada de lá pra cá por frágeis perninhas, duas apenas, sob a incessante gravidade de 9,8 m/s².
Diante desses e de todos os outros inconvenientes da vigília, não demorou para que eu descobrisse uma maneira de adiar o mundo, um salvo-conduto para permanecer boiando na irrealidade amniótica de minhas cobertas. Toda manhã, à voz adulta e ao primeiro raio de sol a entrar pela janela, me virava de um lado pro outro na cama: não estava fugindo da luz, mas testando o corpo, na esperança de encontrar, misturada às brumas do sono, uma pontinha de febre, um começo de gripe, qualquer mal-estar que me permitisse pronunciar, com um langor calculado e aflito: “Ai, tô me sentindo mal…”.
Antes de me proclamar incapacitado para as exigências do dia, no entanto, fazia-se necessário conferir se havia algum sintoma verdadeiro ou se eram só fumos da sonolência a amolecer os músculos e o entusiasmo, pois o que saísse da boca teria que ser provado pelas axilas, sob o crivo imparcial do termômetro. Quantas manhãs não fiquei ali deitado, grunhindo, fazendo cara de farrapo humano, para acabar ouvindo as cinco palavras mais frustrantes da infância: “Trinta e seis e meio”.
Após algumas tentativas malogradas, aprendi que havia enfermidades mais fraudáveis que outras e passei a optar por aquelas que não podiam ser delatadas pelo inclemente mercúrio: enjoo, dor de barriga, dor de garganta ou mesmo a alegação de algo difícil de definir, mas fácil de simular, um vago e agudo “mal-estar”.
Claro que, para tais blefes, era preciso ter cara de pau e arte na encenação, coisa que nem sempre meu recém-adquirido superego — ainda não devidamente lasseado pelo uso — permitia. Em algumas manhãs, porém, a melancolia vencia o pudor, eu mandava a autocrítica catar coquinhos e executava toda a via-crúcis de lamúrias e tosses forçadas, caretas, contorções, uma ida cambaleante até o banheiro e o pedido “por favor, por favor” para ficar em casa.
Vez ou outra, para minha surpresa, funcionava. Minha mãe, não sei se por comprar a mentira ou por preguiça de investigá-la, me deixava ali, fechava a janela, ia pro trabalho. Eu cobria a cabeça com o cobertor, aproveitava aquela rabeira de cansaço com um prazer subversivo e dormia o sono dos injustos — do qual acordava, uma hora depois, remoído pela culpa. Cerrava os olhos, tentava adormecer de novo, mas não dava, era preciso sair da cama, tomar banho, vestir uma roupa, descer para a sala. Pensava nas outras crianças, na escola, correndo no pátio. Pensava nas professoras, no dia seguinte, perguntando por que é que eu tinha faltado. Pensava na minha mãe, no trabalho, preocupada, e decidia que o mínimo que eu podia fazer, em respeito a todos, era me comportar realmente como um enfermo.
Enrolava-me numa manta de lã, me sentava na frente da TV com uma xícara de leite condensado e Nescau e passava o dia por ali, vendo carros explodirem, heróis Transformers lutarem contra macacos alienígenas, uma senhorinha de cabelo acaju ensinando donas de casa a fazer estrogonofe com ricota em vez de creme de leite — “seu marido nem vai notar a diferença”.
Quando levantava para ir ao banheiro, mesmo que a Vanda estivesse lá na cozinha — de onde vinham os reconfortantes sons da água na pia, das louças sendo colocadas nos armários e o intermitente apito da panela de pressão —, eu caminhava lentamente, arrastava os pés, não tirava a manta nem por um segundo, tentando convencer a mim mesmo de que merecia aquele autodecretado feriado. Só de noite, quando minha mãe voltava do trabalho, eu me autorizava alguma melhora. “Passou o dia todo aí, enrolado no cobertor”, confirmaria Vanda. “Mas agora já tô melhor”, eu diria, recebendo um sorriso e um afago.
Na manhã seguinte, faria um esforço enorme para sair da cama antes que os pensamentos transgressores se formassem na minha cabeça e se espalhassem pelo corpo. Na escola, a professora perguntaria o porquê da falta. Eu diria que estava doente, nada de mais, só um mal-estar. Então sairia correndo para o tanque de areia, faria um castelo, cavaria um buraco e deixaria enterrados os últimos resquícios de culpa.
Antonio Prata, in Nu, de botas

Nenhum comentário:

Postar um comentário