O
quarto escuro, o casulo de cobertas, a planta do pé deslizando pelos
lençóis, semiconsciência e nenhuma demanda: perfeição quase
uterina. Então vinha um adulto abrir a janela, dizendo “olha só,
Antonio, que dia lindo, tá na hora de acordar”, como se palavras
doces pudessem edulcorar o fato de estarem me expulsando do Éden
horizontal e me jogando no Purgatório vertical, onde a vontade de
comer brigadeiro seria solapada pela obrigação de provar espinafre,
meu espaço no tanque de areia teria que ser disputado no corpo a
corpo com outras crianças — algumas violentas, até, que não se
furtariam a morder e beliscar para garantir as partes que lhes cabiam
naquele minifúndio —, as professoras ficariam perguntando quantas
perninhas tem o E, quantas corcovas tem o M, e a única corcova que
importava — a minha — teria que ser levada de lá pra cá por
frágeis perninhas, duas apenas, sob a incessante gravidade de 9,8
m/s².
Diante
desses e de todos os outros inconvenientes da vigília, não demorou
para que eu descobrisse uma maneira de adiar o mundo, um
salvo-conduto para permanecer boiando na irrealidade amniótica de
minhas cobertas. Toda manhã, à voz adulta e ao primeiro raio de sol
a entrar pela janela, me virava de um lado pro outro na cama: não
estava fugindo da luz, mas testando o corpo, na esperança de
encontrar, misturada às brumas do sono, uma pontinha de febre, um
começo de gripe, qualquer mal-estar que me permitisse pronunciar,
com um langor calculado e aflito: “Ai, tô me sentindo mal…”.
Antes
de me proclamar incapacitado para as exigências do dia, no entanto,
fazia-se necessário conferir se havia algum sintoma verdadeiro ou se
eram só fumos da sonolência a amolecer os músculos e o entusiasmo,
pois o que saísse da boca teria que ser provado pelas axilas, sob o
crivo imparcial do termômetro. Quantas manhãs não fiquei ali
deitado, grunhindo, fazendo cara de farrapo humano, para acabar
ouvindo as cinco palavras mais frustrantes da infância: “Trinta e
seis e meio”.
Após
algumas tentativas malogradas, aprendi que havia enfermidades mais
fraudáveis que outras e passei a optar por aquelas que não podiam
ser delatadas pelo inclemente mercúrio: enjoo, dor de barriga, dor
de garganta ou mesmo a alegação de algo difícil de definir, mas
fácil de simular, um vago e agudo “mal-estar”.
Claro
que, para tais blefes, era preciso ter cara de pau e arte na
encenação, coisa que nem sempre meu recém-adquirido superego —
ainda não devidamente lasseado pelo uso — permitia. Em algumas
manhãs, porém, a melancolia vencia o pudor, eu mandava a
autocrítica catar coquinhos e executava toda a via-crúcis de
lamúrias e tosses forçadas, caretas, contorções, uma ida
cambaleante até o banheiro e o pedido “por favor, por favor”
para ficar em casa.
Vez
ou outra, para minha surpresa, funcionava. Minha mãe, não sei se
por comprar a mentira ou por preguiça de investigá-la, me deixava
ali, fechava a janela, ia pro trabalho. Eu cobria a cabeça com o
cobertor, aproveitava aquela rabeira de cansaço com um prazer
subversivo e dormia o sono dos injustos — do qual acordava, uma
hora depois, remoído pela culpa. Cerrava os olhos, tentava adormecer
de novo, mas não dava, era preciso sair da cama, tomar banho, vestir
uma roupa, descer para a sala. Pensava nas outras crianças, na
escola, correndo no pátio. Pensava nas professoras, no dia seguinte,
perguntando por que é que eu tinha faltado. Pensava na minha mãe,
no trabalho, preocupada, e decidia que o mínimo que eu podia fazer,
em respeito a todos, era me comportar realmente como um enfermo.
Enrolava-me
numa manta de lã, me sentava na frente da TV com uma xícara de
leite condensado e Nescau e passava o dia por ali, vendo carros
explodirem, heróis Transformers lutarem contra macacos alienígenas,
uma senhorinha de cabelo acaju ensinando donas de casa a fazer
estrogonofe com ricota em vez de creme de leite — “seu marido nem
vai notar a diferença”.
Quando
levantava para ir ao banheiro, mesmo que a Vanda estivesse lá na
cozinha — de onde vinham os reconfortantes sons da água na pia,
das louças sendo colocadas nos armários e o intermitente apito da
panela de pressão —, eu caminhava lentamente, arrastava os pés,
não tirava a manta nem por um segundo, tentando convencer a mim
mesmo de que merecia aquele autodecretado feriado. Só de noite,
quando minha mãe voltava do trabalho, eu me autorizava alguma
melhora. “Passou o dia todo aí, enrolado no cobertor”,
confirmaria Vanda. “Mas agora já tô melhor”, eu diria,
recebendo um sorriso e um afago.
Na
manhã seguinte, faria um esforço enorme para sair da cama antes que
os pensamentos transgressores se formassem na minha cabeça e se
espalhassem pelo corpo. Na escola, a professora perguntaria o porquê
da falta. Eu diria que estava doente, nada de mais, só um mal-estar.
Então sairia correndo para o tanque de areia, faria um castelo,
cavaria um buraco e deixaria enterrados os últimos resquícios de
culpa.
Antonio
Prata, in Nu, de botas
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