quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Quebrando a lei da selva - II

Fome, pestes e guerra provavelmente continuarão a reivindicar milhões de vítimas nas próximas décadas. No entanto, não são mais tragédias inevitáveis, além da compreensão e do controle de uma humanidade impotente. Em vez disso, tornaram-se desafios que podem ser manipulados. Isso não ameniza o sofrimento de milhões de seres humanos assolados pela pobreza; dos milhões que sucumbem todo ano à malária, à aids e à tuberculose; ou dos milhões enredados na armadilha de violentos círculos viciosos na Síria, no Congo ou no Afeganistão. A mensagem não é de que a fome, as pestes e a guerra desapareceram completamente da face da Terra nem de que devíamos parar de nos preocupar com elas. É exatamente o contrário. Como a História fazia com que fossem percebidas como insolúveis, não estava em questão tentar acabar com esses problemas. As pessoas rezavam a Deus em busca de milagres, mas não tentavam elas mesmas exterminar a fome, as pestes e a guerra. Os que alegam que o mundo em 2016 é tão faminto, doente e violento quanto foi em 1916 perpetuam essa visão derrotista antiquada. Eles pressupõem que todos os esforços empreendidos pelo homem durante o século XX de não valeram e que a pesquisa médica, as reformas econômicas e as iniciativas de paz foram todas em vão. Se assim foi, para que investir nosso tempo e nossos recursos em mais pesquisas médicas, novas reformas econômicas ou novas iniciativas de paz?
Ao reconhecer nossas conquistas no passado, estamos enviando uma mensagem de esperança e responsabilidade, que nos incentiva a mobilizar esforços ainda maiores no futuro. Tendo em vista nossas realizações no século XX , se o sofrimento com a fome, as pestes e a guerra perdurar, não será possível atribuir nenhuma culpa à natureza ou a Deus. Somos dotados da capacidade de fazer as coisas melhorarem e de reduzir ainda mais a incidência do sofrimento.
Porém, o reconhecimento da magnitude de nossas conquistas traz consigo outra mensagem: a História não tolera o vazio. Se as ocorrências de fome, pestes e guerra estão decrescendo, algo está destinado a tomar seu lugar na agenda humana. Temos que pensar com cautela a esse respeito. Caso contrário, poderemos deparar com uma vitória total nos velhos campos de batalha só para sermos pegos completamente desprevenidos em frentes novas. Quais são os projetos que vão substituir a fome, as pestes e a guerra no topo da agenda humana no século XXI?
Um projeto central consiste em proteger a humanidade e o planeta como um todo dos perigos inerentes ao nosso poder. Conseguimos controlar a fome, as pestes e a guerra graças, enormemente, a um fenomenal crescimento econômico, que nos provê de alimento, medicina, energia e matérias-primas abundantes. Mas esse mesmo crescimento desestabiliza o equilíbrio ecológico do planeta de maneiras que só estamos começando a investigar. O gênero humano atrasou-se no reconhecimento desse perigo, e até agora pouco fez para combatê-lo. A despeito de todos os discursos sobre poluição, ameaça global e mudança climática, a maioria dos países ainda terá de fazer sérios sacrifícios econômicos e políticos para melhorar a situação. Quando chega o momento de optar entre crescimento econômico e estabilidade ecológica, políticos, executivos e eleitores sempre preferem o crescimento. No século XXI, teremos de fazer melhor do que isso se quisermos evitar a catástrofe.
Por qual outra causa a humanidade deverá se empenhar? Ficaríamos satisfeitos em simplesmente contar nossas bênçãos, manter a fome, as pestes e a guerra sob controle e proteger o equilíbrio ecológico? Este poderia ser realmente o caminho mais sábio de ação, mas parece ser pouco provável que o gênero humano o siga. Raramente nos satisfazemos com o que já temos. A reação mais comum da mente humana a uma conquista não é satisfação, e sim o anseio por mais. Os seres humanos estão sempre em busca de algo melhor, maior, mais palatável. Quando estivermos de posse de novos e imensos poderes, e quando a ameaça da fome, das pestes e da guerra por fim for afastada, o que faremos? O que farão o dia inteiro cientistas, investidores, banqueiros e presidentes? Escrever poesia?
O sucesso alimenta a ambição, e nossas conquistas recentes estão impelindo o gênero humano a estabelecer objetivos ainda mais ousados. Depois de assegurar níveis sem precedentes de prosperidade, saúde e harmonia, e considerando tanto nossa história pregressa como nossos valores atuais, as próximas metas da humanidade serão provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade. Reduzimos a mortalidade por inanição, a doença e a violência; objetivaremos agora superar a velhice e mesmo a morte. Salvamos pessoas da miséria abjeta; temos agora de fazê-las positivamente felizes. Tendo elevado a humanidade acima do nível bestial da luta pela sobrevivência, nosso propósito será fazer dos humanos deuses e transformar o Homo sapiens em Homo deus.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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