Guimarães e João Condé no lançamento de Sagarana, em 1946
Prezado
João Condé,
Exigiu
você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos
deste seu exemplar de Sagarana, uma explicação, uma confissão, uma
conversa, a mais extensa, possível — o imposto João Condé para
escritores, enfim. Ora, nem o assunto é simples, nem sei eu bem o
que contar. Mirrado pé de couve, seja, o livro fica sendo, no chão
do seu autor, uma árvore velha, capaz de transviá-lo e de o fazer
andar errado, se tenta alcançar-lhe os fios extremos, no labirinto
das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.
Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que é de João Condé.
Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que é de João Condé.
Assim,
pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia... — quando chegou a
hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho,
que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu
ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia
embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo.
Tinha
de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para
mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados
caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente.
Já
pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de
novelas. E — sendo meu — uma série de Histórias adultas da
Carochinha, portanto.
Rezei,
de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum
dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques,
preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas
literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições — no
tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é
tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois:
um rio sem margens é o ideal do peixe.
Aí,
experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo
que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas
como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer
(não o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha
interpretação de uns versos de Paul Éluard: ...“o peixe avança
nágua, como um dedo numa luva”... Um ideal: precisão,
micromilimétrica.
E
riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum;
que as chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados contra
o Espírito Santo, são taperas no território do idioma.
Mas,
ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé,
realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos,
por que não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!
Àquela
altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as
minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a
China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo,
o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi.
Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor
a terra, a gente, bichos, árvores.
Porque
o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores
personagens de parábolas: lá se veem bem as reações humanas e a
ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou
contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e
cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a
seca.
Bem,
resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de
Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé,
findava a fase de premeditação. Restava agir.
Então,
passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas
sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo”
paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a
máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de
manhã.
O
livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de
100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de
deslumbramento.
(Depois,
repousou durante sete anos; e, em 1945, foi “retrabalhado”, em
cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).
Lá
por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a
31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde,
na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas,
para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à
última hora, este rótulo simples: “Contos” (título provisório,
a ser substituído) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas
viagens, logo após.
Como
já disse, as histórias eram doze:
I)
— O burrinho pedrês — Peça não profana, mas sugerida
por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o
afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio.
II)
— A volta do marido pródigo — A menos “pensada” das
novelas do Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do
lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945.
III)
— Duelo — Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou
dito para a anterior: a história foi meditada e “vivida”,
durante um mês, para ser escrita em uma semana, aproximadamente.
Contudo, também quase não sofreu retoques em 1945.
IV)
— Sarapalha — Desta, da história desta história, pouco
me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto.
V)
— Questões de família — História fraca, sincera demais,
meio autobiográfica, malrealizada. Foi expelida do livro e
definitivamente destruída.
VI)
— (Uma história de amor — Um belo tema, que não consegui
desenvolver razoavelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior).
VII)
— Minha gente — Por causa de uma gripe, talvez, foi
escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que
o autor não poderia ter, ao escrever as demais.
VIII)
— Conversa de bois — Aqui, houve fenômeno interessante, o
único caso, neste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever
um conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro.
Penosamente, urdi o enredo, e, um sábado, fui dormir, contente,
disposto a pôr em caderno, no domingo, a história (n. 1). Mas, no
domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva,
outra história (n. 2) — também com carro, bois, carreiro e guia —
totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e
me esqueci da outra, da anterior. Em 1945, sofreu grandes retoques,
mas nada recebeu da versão pré-histórica, que fora definitivamente
sacrificada.
IX)
— Bicho mau — Deixou de figurar no Sagarana, porque não
tem parentesco profundo com as nove histórias deste, com as quais se
amadrinhara, apenas, por pertencer à mesma época e à mesma zona.
Seu sentido é outro. Ficou guardada para outro livro de novelas, já
concebido, e que, daqui a alguns anos, talvez seja escrito.
X)
— Corpo fechado — Talvez seja a minha predileta. Manuel
Fulô foi o personagem que mais conviveu “Humanamente” comigo, e
cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de
existência. Assim, viveu ele para mim mais umas 3 ou 4 histórias,
que não aproveitei no papel, porque não tinham valor de parábolas,
não “transcendiam”.
XI)
— São Marcos — Demorada para escrever, pois exigia
grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens
já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro.
XII)
— A hora e vez de Augusto Matraga — História mais séria,
de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre
o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória
íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu
procurava descobrir.
Por
ora, Condé, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do Sagarana.
Se você quiser, eu poderei contar, mais tarde —, num exemplar da
2ª edição — algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia
31 de dezembro de 1937 e a data em que o livro foi entregue à
Editora Universal. Serve?
Com
o cordial abraço do
Guimarães
Rosa
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