sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1916

Saímos da Rússia em 1916 — conta Avram Guinzburg, irmão de Mayer. — Viemos de navio, vomitando muito. . . Mas felizes, se bem me lembro. Felizes, sim; meu pai não queria mais saber da Rússia. Depois do pogrom de Kischinev, só pensava no Brasil. Rússia era a terra de Seholem Aleichem, sim, e de outros grandes judeus. Mas um inferno para nós.
Houve uma tempestade... Durou dois dias. Vomitávamos e chorávamos, lamentando nosso triste destino de... povo errante, e... Mas depois o sol brilhava e falávamos sobre o Brasil. Leib Kirschblum irá bem nos negócios, dizíamos, e de fato ele foi bem nos negócios. Avram Guinzburg casará, diziam, e terá muitos filhos, e, de fato, eu casei, tive muitos filhos.
Mayer quase não falava com a gente. Ficava sentado na popa, silencioso, olhando o mar. Pensava na Rússia. Imaginava que em outubro de 1917 haveria lá uma revolução destinada a libertar os pobres e oprimidos. Imaginava que escreveriam sobre ele, num jornal chamado “Pravda”: “A partida de Mayer Guinzburg foi uma grande perda para a Rússia; tínhamos um lugar importante reservado para ele. Mas não importa; sabemos que Mayer Guinzburg lutará sempre, ainda que sozinho. Viva Mayer Guinzburg! Viva Birobidjan! Viva Nova Birobidjan!” Aí Mayer levantava-se, os olhos úmidos, os cabelos agitados pelo vento. Fazia gestos e movia os lábios; e embora não proferisse palavra, sabíamos que discursava e que uma multidão de homenzinhos o aplaudia. Ele discursando, nós vomitando, acabamos por chegar ao Brasil e viemos morar em Porto Alegre, então uma pequena cidade. Morávamos — nós, a família de Leib Kirschblum, e outros — no Caminho Novo, em pequenas casinhas de madeira, de beirais recortados em formas caprichosas. À noite ouvíamos a água do Guaíba marulhar sob as janelas... Bons tempos, aqueles.
Tenho uma fotografia desta época. Lá está Mayer, a cabeça raspada. Tivera tifo e nossa mãe mandara o barbeiro passar-lhe a máquina zero. Nesta fotografia Mayer Guinzburg nos fita com seus olhos cinza-claros; embora exiba um pálido sorriso, tem os punhos cerrados. Mayer Guinzburg, meu irmão. Nosso pai, um marceneiro, trabalhava duro. Nossa mãe limpava a casa e fazia a comida. Nós vendíamos peixe. Vendíamos cabides, também, quando faltava peixe, e às vezes roupas usadas. Outras vezes saíamos com um carrinho para recolher ferro velho. Mas eu preferia os peixes. Vendíamos bem.
Para mim o peixe era apenas uma boa mercadoria. Para Mayer Guinzburg era muito mais. Era o fruto do trabalho dos Companheiros Pescadores, homens fortes e silenciosos, cuja faina diária Mayer muitas vezes retratou em desenhos inspirados. Anos depois viria a ser grande apreciador das canções de Dorival Caymmi que celebram a vida e os amores dos pescadores. “É doce morrer no mar” — diz uma, “O pescador tem dois amores” — diz outra. Nossa mãe sofria ao nos ver de balaio na mão.
Nossa mãe tinha projetos para nós: eu seria médico, Mayer, engenheiro; ou, eu advogado, Mayer engenheiro; ou, eu engenheiro, Mayer advogado... Logo ficou claro que eu não dava muito para os estudos, e então nossa mãe concentrou seus esforços em Mayer. Com ele o problema era outro. Mayer era magro. Rapazes magros não progridem nos estudos. Sabia-se.
E Mayer era muito magro. Seu crânio se revelava debaixo da pele esticada do rosto, sob o couro cabeludo raspado — seu duro crânio branco. Tão mal forrada, nenhuma cabeça poderia pensar direito. Na busca de alimentos para Mayer, nossa mãe revelava diligência, argúcia, arrojo, destemor; perícia e espírito de improvisação; carinho. Perseguia tenras galinhas, suas e dos vizinhos; levava-as em pessoa ao schochet (*Encarregado de matança ritual.), assistia ao sacrifício ritual, cuidando assim que a carne (especialmente a do peito, que era a que Mayer abominava menos) recebesse as bênçãos divinas. Viajava quilômetros para conseguir de certa mulher, uma bruxa do Beco do Salso, leite de cabra — único preventivo contra a tuberculose que ameaçava os meninos magros. Mais tarde, quando nos mudamos para a Rua Felipe Camarão, ela ia bem cedo à venda comprar maçãs para Mayer. Por mais que madrugasse, contudo, já lá achava as vizinhas, comprando maçãs. Para entrar na luta pelas maçãs maiores e mais maduras nossa mãe desenvolveu habilidades especiais; seus cotovelos, mergulhando nas barrigas das outras, impulsionavam-na como remos; sua voz ressoava como uma sirena no nevoeiro; e seu peito rompia o mar de gente como a dura quilha de um barco. Finalmente ela chegava ao caixote de maçãs. De posse das frutas corria para casa — e lá encontrava a cara de nojo de Mayer. O arroz saboroso, Mayer recusava; os Kneidlech (*Bolinhos) quentinhos, recusava; os biscoitos doces, a boa sopa, recusava. Chegava a se esconder no sótão para não, comer. Um dia, em desespero, nossa mãe jogou-se nos pés dele: — Diz, meu filho, diz o que tu queres comer! O que quiseres, a mamãe traz! Nem que seja preciso viajar até São Paulo, mamãe traz! Houve um silêncio, só cortado pelos soluços de nossa mãe.
Porco — disse finalmente Mayer, os olhos fixos no prato.
O quê? — nossa mãe levantou a cabeça.
Quero comer costeletas de porco. Todo o mundo diz que é muito bom.
Todo o mundo diz?...
Todo o mundo.
Porco?...
Porco.
Aqui, falemos um pouco de nosso pai. O sonho de nosso pai era ser rabino; não o conseguira, naturalmente, mas era um crente fervoroso. Ia todos os dias à sinagoga; guardava cuidadosamente o sábado; e jejuava várias vezes por ano. Era para a mulher deste homem que Mayer Guinzburg pedia porco.
Nossa mãe levantou-se e saiu de casa sem dizer nenhuma palavra. Naquela noite ela trouxe da cozinha uma travessa fumegante.
Que é isto? — perguntou nosso pai, intrigado.
Costeletas de porco — respondeu nossa mãe.
Nosso pai deixou cair o garfo e ficou pálido. Lentamente levantou-se da mesa.
Senta aí! — gritou nossa mãe. — Não vês que é só isto que ele quer comer? Este guri magro, fraco, este desgraçado? Se é isto que ele quer, é isto que ele comerá!
Porco! — gritou nosso pai. — Porco em minha casa! Na casa de Schil Guinzburg! Porco!
Senta! — gritou nossa mãe.
Mas nosso pai já tinha ido para o quarto; de lá nós ouvíamos o ruído de móveis destroçados e urros de raiva. Depois a porta da rua bateu. Fez-se silêncio.
Nossa mãe despejou as costeletas de porco no prato de Mayer.
Come — disse simplesmente.
Não quero — resmungou Mayer. — Com este barulho todo, perdi o apetite.
Come — repetiu nossa mãe.
Não quero. Pode ser que amanhã...
Come.
Mas eu não quero, não vê?
Come! — berrou nossa mãe. — Come! Come!
Arrancava os cabelos da cabeça, lanhava o rosto com as unhas. Apressadamente Mayer engoliu as costeletas, eu o ajudando como podia.
Desde este dia minha mãe não lutava mais por maçãs. Servia arroz frio: — Come.
Batatas cozidas: — Come.
Pão, bolachas mofadas: — Come!
E Mayer Guinzburg comia. Mas de vez em quando, na mesa, espicaçava a família: “Ai que saudades das costeletas de porco...”.
Aquele rebelde!
Moacyr Scliar, in O exército de um homem só

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