Saímos
da Rússia em 1916 — conta Avram Guinzburg, irmão de Mayer. —
Viemos de navio, vomitando muito. . . Mas felizes, se bem me lembro.
Felizes, sim; meu pai não queria mais saber da Rússia. Depois do
pogrom de Kischinev, só pensava no Brasil. Rússia era a terra de
Seholem Aleichem, sim, e de outros grandes judeus. Mas um inferno
para nós.
Houve
uma tempestade... Durou dois dias. Vomitávamos e chorávamos,
lamentando nosso triste destino de... povo errante, e... Mas depois o
sol brilhava e falávamos sobre o Brasil. Leib Kirschblum irá bem
nos negócios, dizíamos, e de fato ele foi bem nos negócios. Avram
Guinzburg casará, diziam, e terá muitos filhos, e, de fato, eu
casei, tive muitos filhos.
Mayer
quase não falava com a gente. Ficava sentado na popa, silencioso,
olhando o mar. Pensava na Rússia. Imaginava que em outubro de 1917
haveria lá uma revolução destinada a libertar os pobres e
oprimidos. Imaginava que escreveriam sobre ele, num jornal chamado
“Pravda”: “A partida de Mayer Guinzburg foi uma grande perda
para a Rússia; tínhamos um lugar importante reservado para ele. Mas
não importa; sabemos que Mayer Guinzburg lutará sempre, ainda que
sozinho. Viva Mayer Guinzburg! Viva Birobidjan! Viva Nova
Birobidjan!” Aí Mayer levantava-se, os olhos úmidos, os cabelos
agitados pelo vento. Fazia gestos e movia os lábios; e embora não
proferisse palavra, sabíamos que discursava e que uma multidão de
homenzinhos o aplaudia. Ele discursando, nós vomitando, acabamos por
chegar ao Brasil e viemos morar em Porto Alegre, então uma pequena
cidade. Morávamos — nós, a família de Leib Kirschblum, e outros
— no Caminho Novo, em pequenas casinhas de madeira, de beirais
recortados em formas caprichosas. À noite ouvíamos a água do
Guaíba marulhar sob as janelas... Bons tempos, aqueles.
Tenho
uma fotografia desta época. Lá está Mayer, a cabeça raspada.
Tivera tifo e nossa mãe mandara o barbeiro passar-lhe a máquina
zero. Nesta fotografia Mayer Guinzburg nos fita com seus olhos
cinza-claros; embora exiba um pálido sorriso, tem os punhos
cerrados. Mayer Guinzburg, meu irmão. Nosso pai, um marceneiro,
trabalhava duro. Nossa mãe limpava a casa e fazia a comida. Nós
vendíamos peixe. Vendíamos cabides, também, quando faltava peixe,
e às vezes roupas usadas. Outras vezes saíamos com um carrinho para
recolher ferro velho. Mas eu preferia os peixes. Vendíamos bem.
Para
mim o peixe era apenas uma boa mercadoria. Para Mayer Guinzburg era
muito mais. Era o fruto do trabalho dos Companheiros Pescadores,
homens fortes e silenciosos, cuja faina diária Mayer muitas vezes
retratou em desenhos inspirados. Anos depois viria a ser grande
apreciador das canções de Dorival Caymmi que celebram a vida e os
amores dos pescadores. “É doce morrer no mar” — diz uma, “O
pescador tem dois amores” — diz outra. Nossa mãe sofria ao nos
ver de balaio na mão.
Nossa
mãe tinha projetos para nós: eu seria médico, Mayer, engenheiro;
ou, eu advogado, Mayer engenheiro; ou, eu engenheiro, Mayer
advogado... Logo ficou claro que eu não dava muito para os estudos,
e então nossa mãe concentrou seus esforços em Mayer. Com ele o
problema era outro. Mayer era magro. Rapazes magros não progridem
nos estudos. Sabia-se.
E
Mayer era muito magro. Seu crânio se revelava debaixo da pele
esticada do rosto, sob o couro cabeludo raspado — seu duro crânio
branco. Tão mal forrada, nenhuma cabeça poderia pensar direito. Na
busca de alimentos para Mayer, nossa mãe revelava diligência,
argúcia, arrojo, destemor; perícia e espírito de improvisação;
carinho. Perseguia tenras galinhas, suas e dos vizinhos; levava-as em
pessoa ao schochet (*Encarregado de matança ritual.), assistia ao
sacrifício ritual, cuidando assim que a carne (especialmente a do
peito, que era a que Mayer abominava menos) recebesse as bênçãos
divinas. Viajava quilômetros para conseguir de certa mulher, uma
bruxa do Beco do Salso, leite de cabra — único preventivo contra a
tuberculose que ameaçava os meninos magros. Mais tarde, quando nos
mudamos para a Rua Felipe Camarão, ela ia bem cedo à venda comprar
maçãs para Mayer. Por mais que madrugasse, contudo, já lá achava
as vizinhas, comprando maçãs. Para entrar na luta pelas maçãs
maiores e mais maduras nossa mãe desenvolveu habilidades especiais;
seus cotovelos, mergulhando nas barrigas das outras, impulsionavam-na
como remos; sua voz ressoava como uma sirena no nevoeiro; e seu peito
rompia o mar de gente como a dura quilha de um barco. Finalmente ela
chegava ao caixote de maçãs. De posse das frutas corria para casa —
e lá encontrava a cara de nojo de Mayer. O arroz saboroso, Mayer
recusava; os Kneidlech (*Bolinhos) quentinhos, recusava; os biscoitos
doces, a boa sopa, recusava. Chegava a se esconder no sótão para
não, comer. Um dia, em desespero, nossa mãe jogou-se nos pés dele:
— Diz, meu filho, diz o que tu queres comer! O que quiseres, a
mamãe traz! Nem que seja preciso viajar até São Paulo, mamãe
traz! Houve um silêncio, só cortado pelos soluços de nossa mãe.
— Porco
— disse finalmente Mayer, os olhos fixos no prato.
— O
quê? — nossa mãe levantou a cabeça.
— Quero
comer costeletas de porco. Todo o mundo diz que é muito bom.
— Todo
o mundo diz?...
— Todo
o mundo.
— Porco?...
— Porco.
Aqui,
falemos um pouco de nosso pai. O sonho de nosso pai era ser rabino;
não o conseguira, naturalmente, mas era um crente fervoroso. Ia
todos os dias à sinagoga; guardava cuidadosamente o sábado; e
jejuava várias vezes por ano. Era para a mulher deste homem que
Mayer Guinzburg pedia porco.
Nossa
mãe levantou-se e saiu de casa sem dizer nenhuma palavra. Naquela
noite ela trouxe da cozinha uma travessa fumegante.
— Que
é isto? — perguntou nosso pai, intrigado.
— Costeletas
de porco — respondeu nossa mãe.
Nosso
pai deixou cair o garfo e ficou pálido. Lentamente levantou-se da
mesa.
— Senta
aí! — gritou nossa mãe. — Não vês que é só isto que ele
quer comer? Este guri magro, fraco, este desgraçado? Se é isto que
ele quer, é isto que ele comerá!
— Porco!
— gritou nosso pai. — Porco em minha casa! Na casa de Schil
Guinzburg! Porco!
— Senta!
— gritou nossa mãe.
Mas
nosso pai já tinha ido para o quarto; de lá nós ouvíamos o ruído
de móveis destroçados e urros de raiva. Depois a porta da rua
bateu. Fez-se silêncio.
Nossa
mãe despejou as costeletas de porco no prato de Mayer.
— Come
— disse simplesmente.
— Não
quero — resmungou Mayer. — Com este barulho todo, perdi o
apetite.
— Come
— repetiu nossa mãe.
— Não
quero. Pode ser que amanhã...
— Come.
— Mas
eu não quero, não vê?
— Come!
— berrou nossa mãe. — Come! Come!
Arrancava
os cabelos da cabeça, lanhava o rosto com as unhas. Apressadamente
Mayer engoliu as costeletas, eu o ajudando como podia.
Desde
este dia minha mãe não lutava mais por maçãs. Servia arroz frio:
— Come.
Batatas
cozidas: — Come.
Pão,
bolachas mofadas: — Come!
E
Mayer Guinzburg comia. Mas de vez em quando, na mesa, espicaçava a
família: “Ai que saudades das costeletas de porco...”.
Aquele
rebelde!
Moacyr
Scliar, in O exército de um homem
só
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