terça-feira, 7 de agosto de 2018

Do novo ídolo

Em algum lugar ainda há povos e rebanhos, mas não entre nós, irmãos: aqui há Estados. Estado? O que é isso? Pois bem! Abri vossos ouvidos, pois agora vos falarei sobre a morte dos povos.
Estado é o nome do mais frio de todos os monstros frios. E de modo frio ele também mente; e esta mentira rasteja de sua boca: “Eu, o Estado, sou o povo”.
Isso é mentira! Criadores foram aqueles que criaram os povos e deixaram uma fé e um amor suspensos sobre eles: assim serviram à vida.
Destruidores são aqueles que preparam armadilhas para muitos e as chamam de Estado: deixam uma espada e cem desejos suspensos sobre eles.
Onde ainda existe povo, ele não entende o Estado e o odeia como mau-olhado e pecado contra os costumes e os direitos.
Este sinal eu vos dou: cada povo fala a sua língua do bem e do mal: o vizinho não a entende. Ele inventou para si sua língua, nos costumes e nos direitos.
Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e o que quer que diga, mente — e o que quer que tenha, roubou.
Tudo nele é falso; morde com dentes roubados, esse mordedor. Até suas entranhas são falsas.
Confusão de línguas do bem e do mal: este sinal eu vos dou, como marca do Estado. Na verdade, este sinal indica vontade de morte! Na verdade, ele acena para os pregadores da morte!
Nascem pessoas demais: para os supérfluos foi inventado o Estado!
Vede como ele atrai para si os demasiados! Como ele os devora, mastiga e rumina!
Nada existe sobre a terra que seja maior do que eu: sou o dedo ordenador de Deus” — assim ruge o colosso. E não apenas aqueles de vista curta e orelhas compridas se ajoelham!
Ah, também para vós, ó almas grandes, ele sussurra suas sombrias mentiras! Ah, ele percebe 31 os corações ricos, que gostam de esbanjar a si mesmos!
Sim, também a vós ele percebe, ó vencedores do velho Deus! Ficastes cansados na luta, e agora vosso cansaço serve ao novo ídolo!
Heróis e homens honrados ele quer ao seu redor, o novo ídolo! Gosta de aquecer-se no sol das boas consciências — o frio monstro!
Tudo dará a vós, desde que o adoreis, o novo ídolo: assim compra ele o brilho de vossa virtude e o olhar de vossos olhos altivos.
Ele quer usar-vos como isca para os demasiados! Sim, uma artimanha infernal foi aí inventada, um cavalo da morte, a retinir nos adornos das divinas honrarias!
Sim, uma morte para muitos foi aí inventada, que se gaba de ser vida: na verdade, um grande serviço para todos os pregadores da morte.
Estado chamo eu ao lugar onde todos bebem veneno, bons e ruins: Estado, onde todos perdem a si mesmos, bons e ruins: Estado, onde o lento suicídio de todos se chama — “vida”.
Vede esses supérfluos! Roubam para si as obras dos inventores e os tesouros dos sábios: “cultura” chamam a seu roubo — e tudo, para eles, torna-se doença e desventura!
Vede esses supérfluos! Sempre estão doentes, vomitam seu fel e o chamam “jornal”. Devoram uns aos outros e não conseguem digerir-se.
Vede esses supérfluos! Adquirem riquezas e com elas se tornam mais pobres. Querem o poder e, primeiro, a alavanca do poder, muito dinheiro — esses indigentes!
Vede como sobem trepando, esses ágeis macacos! Sobem trepando uns sobre os outros, e assim se empurram para a lama e a profundeza.
Todos querem chegar ao trono: esta é sua loucura — como se a felicidade estivesse no trono! Com frequência a lama se acha no trono — e, também com frequência, o trono se acha na lama.
Loucos me parecem todos eles, macacos trepadores e seres febris. Mau cheiro tem para mim seu ídolo, o frio monstro: mau cheiro têm todos eles para mim, esses idólatras.
Meus irmãos, quereis então sufocar na emanação de suas bocas e cobiças? Quebrai antes as janelas e pulai para fora!
Fugi do mau cheiro! Fugi da idolatria dos supérfluos!
Fugi do mau cheiro! Fugi da fumaça desses sacrifícios humanos!
Ainda agora a terra está livre para as almas grandes. Vazios estão ainda, para os solitários e os sozinhos a dois, muitos lugares em torno dos quais corre o cheiro dos mares quietos.
Ainda está livre, para as almas grandes, uma vida livre. Na verdade, quem pouco possui, tanto menos será possuído: louvada seja a pequena pobreza!
Ali onde cessa o Estado, apenas ali começa o homem que não é supérfluo: começa o canto do necessário, a única e insubstituível melodia.
Ali onde cessa o Estado — olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e as pontes do super-homem? —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

Nenhum comentário:

Postar um comentário