segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Antônio, o Contador

Ilustração: Fernando Vilela 

Diante de tamanha falta de delicadeza, a Antônio só restava botar sua máquina nas costas, pegar Karina pela mão e ir-se embora pro seu canto.
Não sei de onde ainda tirou coragem pra apresentar seu derradeiro argumento: “Esperem. O tempo há de passar e então vocês vão ver se eu não vou chegar lá, de hoje a 25 anos, seis meses e 17 dias exatos, aqui no meio da praça, por volta do meio-dia.”
Uma prova indiscutível, a de Antônio, com o único defeito que só ia servir dali a muito tempo.
Paciência.
Os dois saíram de cabeça levantada, sem se importar com calúnia ou risadagem, eita povinho pra cometer injustiça era aquele.
Já em casa, depois de matarem a saudade sem nenhuma pena da coitada, Antônio e Karina atravessaram três dias conversando, ela só ouvindo e ele só contando.

Assim como ficou famoso, Antônio foi logo sendo esquecido.
Só se lembravam dele poucas vezes por dia, na hora do café, ou na hora de dormir, ora sem a menor consideração, ora com a maior curiosidade.
E o mais engraçado não foi justamente isso?
Acreditando ou não na sinceridade de Antônio, por via das dúvidas todo mundo ficou com vontade de conhecer o seu próprio destino. Primeiro vinha um, em seguida outro, eles todos indagando por notícias do futuro e a todos eles Antônio respondia.
Contou que no meio da praça ia nascer um pé de caju que daria flor o ano todo, que onde tinha a estação iam construir um cinema, e que ali, onde agora ficava a bica, ia ter até estátua de Antônio.
Anunciou que, no futuro, medo tinha virado lenda, falta tinha virado sobra, Nordestina tinha virado livro, palavra tinha virado fato e alegria tinha virado moda.
Fez saber, a quem se mostrava interessado, que lá na frente as noites eram sempre claras devido à enorme quantidade de luzes.
Preveniu a vizinha do lado, a senhora abandonou de vez esse negócio de cozinhar pra fora, dedicou-se ao corte e costura e tornou-se pessoa bem-sucedida.
Avisou pro fiteiro que este tinha ingressado na Marinha.
Pra quem se considerava desiludido, Antônio surpreendeu a todos contando a quantidade de feito que eles haviam de fazer ainda.
Tudo quanto era moça vitalina queria saber de uma coisa somente e algumas ficavam muito felizes. “Você casou, sim. Teve até cinco meninas.” “Já você casou sete vezes e estava com cara que ia completar uma dezena ainda.”
Pra uma mãe recém-parida com o menino no braço, Antônio disse sorrindo: “Seu filho também há de se chamar Antônio e será Ministro da Fazenda”, no que a mãe correu até o cartório pra ver se chegava a tempo de impedir que o pai o registrasse Edmílson.
Dona Nazaré foi a única que não quis saber o seu destino, “Se ele quisesse que eu o conhecesse, se apresentava mais cedo”, e toda vez que tocavam no assunto tapava os ouvidos e saía cantando.

O tempo foi passando no seu próprio tempo, seis meses, um ano, dez anos, e deu de acontecer algo muito interessante. Mesmo duvidando que aquilo fosse verdade, o povo se agradou tanto das histórias que se pôs a copiar as ideias de Antônio.
Cada um foi arrumando sua própria vida de acordo com o que ele contava: “Como é que eu não pensei nisso antes? Mas olhe que burrice a minha”, cada qual mais decidido a ser feliz a todo custo.
Foram, bem aos pouquinhos, fazendo o mundo ficar assim, ficar assado, justo como Antônio dizia, até que foi ficando igualzinho.
De vez em quando se ouvia um comentário:
Veja só que coincidência, mas não é que aconteceu mesmo o que Antônio disse?”
No meio da praça plantaram um pé de caju com mania por flor de nascença, a aparição de luz novata na noite deu pra afugentar o medo do escuro, a vizinha do lado dedicou-se ao corte e costura, o fiteiro decidiu ingressar na Marinha, um monte de desiludidos por vida se decretou fazedor, a mãe de Antônio Domingos de Lima, ex-Edmílson, obrigou o filho a varar não sei quantas noites estudando economia.
Depois os comentários foram virando conversa, que foram virando assunto, que foram virando palestra, até que não se falava em outra coisa no mundo e não havia quem tomasse decisão nenhuma sem ouvir Antônio primeiro.
Quanto mais o tempo passava, mais o mundo se parecia com o que Antônio contava. Virou contador, Antônio, quem diria?
Adriana Falcão, in A máquina

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