quarta-feira, 8 de agosto de 2018

1970

Neste mar o Capitão Birobidjan flutua imóvel, meio afogado. Do cais os homenzinhos contemplam-no em silêncio.
A mão de Birobidjan bate em algo duro: a quilha de um barco. Instantaneamente reanimado, ele sobe a bordo do pequeno veleiro.
Não há ninguém. O Capitão prepara-se para partir. Um dia haverá de desenhar-se assim: de pé, na proa, a cabeça erguida, o olhar penetrante sondando a escuridão; um dia, quando houver tempo para a arte. Agora há muito o que fazer. Tem de voltar, subir o estuário do Guaíba, atracar em Porto Alegre e chegar ao Beco do Salso. Ali, no lugar que ele um dia chamou Nova Birobidjan, tornará a reunir os companheiros e dirá, com voz firme, mas tranquila: — Iniciamos neste momento a construção de uma nova sociedade.
É preciso voltar. Mayer Guinzburg, Capitão Birobidjan, iça sua bandeira no mastro e prepara-se para navegar.
Colocaram Mayer Guinzburg na maca de rodas. A enfermeira o levou ao Setor de Atendimentos Externos; deixou-o por um instante no corredor e entrou para falar com o médico residente.
Está aí um paciente...
Um grito interrompeu-a; correram para o corredor. Encontraram o homem com a cabeça jogada para trás, os olhos esgazeados, os lábios roxos. O médico auscultou-o rapidamente. “Parada cardíaca!” — gritou. Tentou afrouxar as correias que prendiam o paciente; não conseguindo, subiu na maca e pôs-se a massagear o tórax. — “A senhora está esperando o quê?” — gritou para a enfermeira, que continuava imóvel, paralisada de susto. — “Me ajude aqui! Faça a respiração boca a boca!” Ela vacilou um instante; trepou na maca, colou os lábios na boca murcha e começou a soprar com fúria. Mais enfermeiras chegavam correndo; o médico dava ordens: chamem o anestesista, instalem soro, coloquem o desfibrilador...
Já quatro ou cinco pessoas trabalhavam sobre o corpo inanimado, quando repentinamente a maca pôs-se em movimento. O médico perdeu o equilíbrio e caiu. A maca desapareceu no fundo do corredor escuro.
Aonde é que ele vai? — gritou alguém.
Para Nova Birobidjan! — grita o Capitão.
Os homenzinhos aplaudem com entusiasmo. O Capitão ultima os preparativos. Logo estará pronto.
A maré subirá, a vale se enfunará, o barco partirá. O Capitão Birobidjan faz-se ao mar.
Moacyr Scliar, in O exército de um homem só

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