Cinco
mil dólares em notas grandes.
Félix
Ventura rasgou o envelope num gesto rápido, nervoso, e as notas
saltaram, como borboletas verdes, adejaram um momento no ar nocturno,
e espalharam-se depois pelo soalho, sobre os livros, sob as cadeiras
e os sofás. O albino ficou aflito. Ainda abriu a porta, disposto a
perseguir o estrangeiro, mas na noite imensa, inerte, não havia
ninguém.
– Viste
isto?!. – Falava comigo. – E agora, o que faço?
Recolheu
as notas uma a uma, contou-as, e voltou a guardá-las. Só então
reparou que havia um bilhete dentro do envelope. Leu-o alto:
“Caro
senhor, tenciono entregar-lhe mais cinco mil dólares quando receber
todo o material. Deixo-lhe algumas fotografias minhas, do tipo passe,
para utilizar nos documentos. Volto a passar por aqui dentro de três
semanas.”
Félix
deitou-se e tentou ler um livro – a biografia de Bruce Chatwin, de
Nicholas Shakespeare, na edição portuguesa da Quetzal. Ao fim de
dez minutos poisou-o na mesa de cabeceira e levantou-se. Girou pela
casa até ao alvorecer murmurando frases soltas. As mãozinhas de
viúva, ternas e minúsculas, volteavam à toa, autônomas, enquanto
ele falava. A carapinha, cortada rente, irradiava em redor uma aura
miraculosa. Se alguém o visse da rua, através das janelas, haveria
de pensar que era uma assombração.
“Não,
que disparate! Não o farei.”
(...)
“O
passaporte não seria difícil, nem sequer arriscado, e ficaria
barato. Posso fazê-lo, por que não?, um dia teria de o fazer, é o
prolongamento inevitável deste jogo.”
(...)
“Cuidado
meu camba, cuidado com os caminhos que escolhes. Não és um
falsário. Tem paciência, inventa uma desculpa, devolve-lhe os
dólares e diz-lhe que não pode ser.”
(...)
“Dez
mil dólares não se deitam fora. Passo dois ou três meses em Nova
Iorque. Vou visitar os alfarrabistas de Lisboa. Vou ao Rio, às rodas
de samba, vou às gafieiras, aos sebos, ou a Paris comprar discos e
livros. Há quanto tempo não vou a Paris?”
(...)
A
inquietação de Félix Ventura perturbou a minha atividade
cinegética. Sou um caçador noturno. Localizadas as presas
persigo-as, forçando-as a subir até ao tecto. Uma vez lá em cima
os mosquitos já não descem. Corro então à volta deles, em
círculos cada vez mais fechados, encurralo-os num canto, e
devoro-os. Já vinha nascendo a madrugada quando o albino, atirado
para um dos sofás da sala, me contou a história da sua vida.
–
Costumo pensar nesta casa como sendo um
barco. Um velho navio a vapor cortando a custo a lama pesada de um
rio. A floresta imensa. A noite em volta. – Félix disse isto e
baixou a voz. Apontou num gesto vago os vagos livros: – Está cheio
de vozes, o meu barco.
Podia
ouvir a noite a deslizar lá fora. Latidos. Garras arranhando os
vidros. Olhando pelas janelas não me era difícil adivinhar o rio,
as estrelas girando no seu dorso, aves esquivas escapando entre as
ramagens. O mulato Fausto Bendito Ventura, alfarrabista, filho e neto
de alfarrabistas, encontrou numa manhã de domingo um caixote à
porta de casa. Lá dentro, estendido sobre vários exemplares d’ A
Relíquia de Eça de Queirós, estava uma criaturinha nua, muito
magra e deslavada, com um cabelo de espuma incandescente, e um
límpido sorriso de triunfo. Viúvo, sem filhos, o alfarrabista
recolheu o menino, criou-o e educou-o, seguro de que um desígnio
superior armara a improvável trama. Guardou o caixote, bem como os
respectivos livros. O albino falou-me disto com orgulho:
– Eça
foi o meu primeiro berço.
♦
Fausto
Bendito Ventura fez-se alfarrabista por distração. Orgulhava-se de
nunca ter trabalhado na vida. Saia de manhã cedo a passear pela
baixa, malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu
de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um
leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. Se acaso se cruzava
com alguma senhora do seu tempo dedicava-lhe a luz de um sorriso
galante. Soprava: bom-dia, poesia. Atirava piropos apimentados
às empregadas dos bares. Conta-se (contou-me Félix) que um dia um
invejoso o provocou:
–
Afinal, o que faz o senhor nos dias
úteis?
A
réplica de Fausto Bendito, todos os meus dias são inúteis,
cavalheiro, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e
gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais
que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em
iludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em
casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a
fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da independência, ainda
não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio, e o portão
estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas
para ter livre acesso aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao
acaso no forte soalho do salão.
♦
Partilho
com Félix Ventura um amor (no meu caso sem esperança) pelas
palavras antigas. A Félix Ventura quem o educou neste sentimento
foi, primeiro, o pai, Fausto Bendito, e a seguir um velho professor,
dos primeiros anos do liceu, sujeito de modos melancólicos, alto, e
de tal forma delgado que parecia caminhar sempre de perfil, como uma
gravura egípcia. Gaspar, assim se chamava o professor, comovia-se
com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à
sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los.
Usava-os com ostentação e persistência, o que consternava uns e
desconcertava outros. Creio que triunfou. Os seus alunos começaram
por utilizar esses vocábulos, primeiro por troça, e a seguir como
uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da
restante juventude. Hoje, assegurou-me Félix, são ainda capazes de
se reconhecerem uns aos outros, mesmo quando nunca se viram antes, às
primeiras palavras.
– Ainda
tremo de cada vez que ouço alguém dizer edredom, um galicismo
hediondo, em vez de frouxel, que a mim me parece, e estou certo que
você concordará, palavra muito bela e muito nobre. Mas já me
conformei com sutiã. Estrofião tem uma outra dignidade histórica.
Soa, todavia, um pouco estranho – não concorda?
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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