quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Um barco cheio de vozes

Cinco mil dólares em notas grandes.
Félix Ventura rasgou o envelope num gesto rápido, nervoso, e as notas saltaram, como borboletas verdes, adejaram um momento no ar nocturno, e espalharam-se depois pelo soalho, sobre os livros, sob as cadeiras e os sofás. O albino ficou aflito. Ainda abriu a porta, disposto a perseguir o estrangeiro, mas na noite imensa, inerte, não havia ninguém.
Viste isto?!. – Falava comigo. – E agora, o que faço?
Recolheu as notas uma a uma, contou-as, e voltou a guardá-las. Só então reparou que havia um bilhete dentro do envelope. Leu-o alto:
Caro senhor, tenciono entregar-lhe mais cinco mil dólares quando receber todo o material. Deixo-lhe algumas fotografias minhas, do tipo passe, para utilizar nos documentos. Volto a passar por aqui dentro de três semanas.”
Félix deitou-se e tentou ler um livro – a biografia de Bruce Chatwin, de Nicholas Shakespeare, na edição portuguesa da Quetzal. Ao fim de dez minutos poisou-o na mesa de cabeceira e levantou-se. Girou pela casa até ao alvorecer murmurando frases soltas. As mãozinhas de viúva, ternas e minúsculas, volteavam à toa, autônomas, enquanto ele falava. A carapinha, cortada rente, irradiava em redor uma aura miraculosa. Se alguém o visse da rua, através das janelas, haveria de pensar que era uma assombração.
Não, que disparate! Não o farei.”
(...)
O passaporte não seria difícil, nem sequer arriscado, e ficaria barato. Posso fazê-lo, por que não?, um dia teria de o fazer, é o prolongamento inevitável deste jogo.”
(...)
Cuidado meu camba, cuidado com os caminhos que escolhes. Não és um falsário. Tem paciência, inventa uma desculpa, devolve-lhe os dólares e diz-lhe que não pode ser.”
(...)
Dez mil dólares não se deitam fora. Passo dois ou três meses em Nova Iorque. Vou visitar os alfarrabistas de Lisboa. Vou ao Rio, às rodas de samba, vou às gafieiras, aos sebos, ou a Paris comprar discos e livros. Há quanto tempo não vou a Paris?”
(...)
A inquietação de Félix Ventura perturbou a minha atividade cinegética. Sou um caçador noturno. Localizadas as presas persigo-as, forçando-as a subir até ao tecto. Uma vez lá em cima os mosquitos já não descem. Corro então à volta deles, em círculos cada vez mais fechados, encurralo-os num canto, e devoro-os. Já vinha nascendo a madrugada quando o albino, atirado para um dos sofás da sala, me contou a história da sua vida.
Costumo pensar nesta casa como sendo um barco. Um velho navio a vapor cortando a custo a lama pesada de um rio. A floresta imensa. A noite em volta. – Félix disse isto e baixou a voz. Apontou num gesto vago os vagos livros: – Está cheio de vozes, o meu barco.
Podia ouvir a noite a deslizar lá fora. Latidos. Garras arranhando os vidros. Olhando pelas janelas não me era difícil adivinhar o rio, as estrelas girando no seu dorso, aves esquivas escapando entre as ramagens. O mulato Fausto Bendito Ventura, alfarrabista, filho e neto de alfarrabistas, encontrou numa manhã de domingo um caixote à porta de casa. Lá dentro, estendido sobre vários exemplares d’ A Relíquia de Eça de Queirós, estava uma criaturinha nua, muito magra e deslavada, com um cabelo de espuma incandescente, e um límpido sorriso de triunfo. Viúvo, sem filhos, o alfarrabista recolheu o menino, criou-o e educou-o, seguro de que um desígnio superior armara a improvável trama. Guardou o caixote, bem como os respectivos livros. O albino falou-me disto com orgulho:
Eça foi o meu primeiro berço.


Fausto Bendito Ventura fez-se alfarrabista por distração. Orgulhava-se de nunca ter trabalhado na vida. Saia de manhã cedo a passear pela baixa, malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. Se acaso se cruzava com alguma senhora do seu tempo dedicava-lhe a luz de um sorriso galante. Soprava: bom-dia, poesia. Atirava piropos apimentados às empregadas dos bares. Conta-se (contou-me Félix) que um dia um invejoso o provocou:
Afinal, o que faz o senhor nos dias úteis?
A réplica de Fausto Bendito, todos os meus dias são inúteis, cavalheiro, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em iludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da independência, ainda não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio, e o portão estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas para ter livre acesso aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao acaso no forte soalho do salão.



Partilho com Félix Ventura um amor (no meu caso sem esperança) pelas palavras antigas. A Félix Ventura quem o educou neste sentimento foi, primeiro, o pai, Fausto Bendito, e a seguir um velho professor, dos primeiros anos do liceu, sujeito de modos melancólicos, alto, e de tal forma delgado que parecia caminhar sempre de perfil, como uma gravura egípcia. Gaspar, assim se chamava o professor, comovia-se com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los. Usava-os com ostentação e persistência, o que consternava uns e desconcertava outros. Creio que triunfou. Os seus alunos começaram por utilizar esses vocábulos, primeiro por troça, e a seguir como uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da restante juventude. Hoje, assegurou-me Félix, são ainda capazes de se reconhecerem uns aos outros, mesmo quando nunca se viram antes, às primeiras palavras.
Ainda tremo de cada vez que ouço alguém dizer edredom, um galicismo hediondo, em vez de frouxel, que a mim me parece, e estou certo que você concordará, palavra muito bela e muito nobre. Mas já me conformei com sutiã. Estrofião tem uma outra dignidade histórica. Soa, todavia, um pouco estranho – não concorda?
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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